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– PósGraduação em Letras Neolatinas

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Academic year: 2018

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LA 31 E OS LIMITES DA F ORMA:

Imaginários urbanos, fragmentação e inespecificidade do discurso

na narrativa argentina recente

RENATA DORNELES LIMA

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LA 31 E OS LIMITES DA F ORMA:

Imaginários urbanos, fragmentação e inespecificidade do discurso

na narrativa argentina recente

Por

Renata Dorneles Lima

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos – Literaturas Hispânicas).

Orientador: Professor Doutor Ary Pimentel

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LA 31 E OS LIMITES DA FORMA:

Imaginários urbanos, fragmentação e inespecificidade do discurso na narrativa argentina recente

Renata Dorneles Lima

Orientador: Professor Doutor Ary Pimentel

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos quesitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos – Literaturas Hispânicas).

Examinada por:

______________________________________________________________________ Prof. Dr. Ary Pimentel (orientador)

______________________________________________________________________ Prof. Dr. João Camillo Penna – UFRJ

______________________________________________________________________ Prof. Dr. Paulo Roberto Tonani do Patrocínio – UFRJ

______________________________________________________________________ Prof. Dr. Victor Manuel Ramos Lemus – UFRJ, Suplente

_____________________________________________________________________ Prof. Dr. Renato Cordeiro Gomes – PUC, Suplente

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Lima, Renata Dorneles.

LA 31 E OS LIMITES DA FORMA: Imaginários urbanos, fragmentação e inespecificidade do discurso na narrativa argentina recente / Renata Dorneles Lima. - Rio de Janeiro: UFRJ / Faculdade de Letras, 2016.

xi, 97f.; 31 cm.

Orientador: Ary Pimentel

Dissertação (Mestrado) – UFRJ / Faculdade de Letras / Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, 2016.

Referências Bibliográficas: f. 96-101

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AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador Ary Pimentel pelo carinho e dedicação durante todo o percurso desde a graduação, além da amizade que ultrapassa as portas da academia.

Aos amigos que estiveram presentes em cada momento de dificuldade e exaustão, oferecendo-me mooferecendo-mentos de alegria e relaxaoferecendo-mento.

A minha grande amiga Flavia Coutinho Ferreira Sampaio pela amizade de longa data e pelo colo e apoio fundamentais no último ano para seguir o percurso.

Ao professor Paulo Roberto “Beto” Tonani do Patrocínio pelos diálogos tão enriquecedores e fundamentais ao longo desses dois anos de curso.

A Ariel Magnus pela gentileza de conceder-me uma tarde encantadora de papos literários apaixonados acompanhados de um bom café quente em Buenos Aires.

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Una ciudad siempre es heterogénea, entre otras razones, porque hay muchos imaginarios que la habitan. Estos imaginarios no corresponden mecánicamente ni a condiciones de clase, ni al barrio en el que se vive, ni a otras determinaciones objetivables. Aparecen aspectos subjetivos, aunque a mí no me resulta muy convincente reducir lo imaginario a lo subjetivo, porque también la subjetividad está organizada socialmente. Pueden hacerse muchas variaciones desde la perspectiva del sujeto, pero siempre están condicionadas, existe un horizonte de variabilidad que no es enteramente arbitrario.

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RESUMO

LIMA, Renata Dorneles. LA 31 E OS LIMITES DA FORMA: Imaginários urbanos, fragmentação e inespecificidade do discurso na narrativa argentina recente. Rio de Janeiro, 2016. Dissertação de Mestrado em Literaturas Hispânicas. (Mestrado em Letras Neolatinas. Área de Concentração: Estudos Literários Neolatinos.) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ. Rio de Janeiro, 2016.

Esta pesquisa, que trata da fragmentação no romance La 31 (una novela precaria), de Ariel Magnus, orienta-se no sentido de pensar em que medida as possibilidades encontradas pelo autor para a representação do espaço urbano se inserem em um conjunto de produções (suas e de outros autores) que problematizam determinadas fronteiras estabelecidas no campo literário e nos levam ao questionamento da própria noção de romance a partir da noção de inespecificidade, proposta por Florencia Garramuño. Outro ponto explorado é o diálogo que o autor trava com o cânone, reivindicado de modo direto ou indireto a relação de pastiche ou paródia com o estilo de autores e obras clássicas, sem endossar as grandes narrativas e o modelo do romance tradicional. Em La 31 (una novela precaria), Magnus produz uma obra fragmentada e plural não apenas na composição de narrativas descontínuas, mas também na estrutura não linear e na linguagem em que lança mão de gêneros textuais diversos, como a fábula, o relato curto, o discurso jornalístico e o texto teatral. O autor joga ainda com uma profusão de vozes que operam nas narrativas como o burburinho ou os murmúrios de uma comunidade popular, propondo um diálogo instigante entre território e fatura ficcional. São narrativas fragmentadas que contam o cotidiano de sujeitos que vivem em um território labiríntico que se esparrama pela cidade e a recebe dentro de si, levando à representação de uma sociedade fragmentada tal qual a obra. Para a figuração de tal diversidade de sujeitos e histórias, Ariel Magnus vale-se de uma radical experimentação narrativa, produzindo uma espécie de romance-collage que permite aprofundar as discussões sobre os limites da literatura e da concepção tradicional de romance.

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RESUMEN

LIMA, Renata Dorneles. LA 31 E OS LIMITES DA FORMA: Imaginários urbanos, fragmentação e inespecificidade do discurso na narrativa argentina recente. Rio de Janeiro, 2016. Tesis de Maestría en Literaturas Hispánicas. (Maestría en Letras Neolatinas. Área de Concentración: Estudios Literarios Neolatinos.) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ. Rio de Janeiro, 2016.

Esta investigación, que trata de la fragmentación de la novela La 31 (una novela precaria), de Ariel Magnus, se orienta en el sentido de pensar de qué forma las posibilidades encontradas por este narrador para la representación del espacio urbano se incluyen en un conjunto de producciones (suyas y de otros autores) que problematizan determinadas fronteras establecidas en el campo literario y nos hacen cuestionar la propia noción de novela a partir de la noción de inespecificidad, propuesta por Florencia Garramuño. Otro punto experimentado es el diálogo que el autor tiene con el canon, reivindicado de forma directa o indirecta la relación de pastiche o parodia con el estilo de autores y obras clásicas, sin endosar las grandes narrativas y el modelo de la novela tradicional. En La 31 (una novela precaria), Magnus produce una obra fragmentada y plural no solo en la composición de narrativas discontinuas, así como en la estructura no linear y en el lenguaje en que se vale de géneros textuales diversos, como la fábula, el relato corto, el discurso periodístico y el texto teatral. El autor juega aun con una profusión de voces que actúan en las narrativas como el bullicio o los murmurios de una comunidad popular, proponiendo un diálogo estimulante entre territorio y factura ficcional. Son narrativas fragmentadas que cuentan lo cotidiano de sujetos que viven en un territorio laberíntico que se desparrama por la ciudad y la recibe dentro de sí, llevando a la representación de una sociedad fragmentada tal como la obra. Para la figuración de esa diversidad de sujetos e historias, Ariel Magnus produce una radical experimentación narrativa, produciendo una especie de novela-collage que permite profundizar las discusiones acerca de los límites de la literatura y de la percepción tradicional de novela.

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ABSTRACT

LIMA, Renata Dorneles. LA 31 E OS LIMITES DA FORMA: Imaginários urbanos, fragmentação e inespecificidade do discurso na narrativa argentina recente. Rio de Janeiro, 2016. Master's thesis in Hispanic Literatures. (Master Tesis in Hispanic Literatures. Concentration Area: Neolatin Literary Studies.) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ. Rio de Janeiro, 2016.

This research is about fragmentation in the novel La 31 (una novela precaria) by Ariel Magnus. It analyzes how the alternatives found by the novel’s narrator to represent the urban space compose along with other works (both by Magnus and by other writers) a set of productions that problematize some of the frontiers established in the literary field and make us question the form of the novelitself due to its unspecificity. This study also throws light on the direct or indirect dialogues established by La 31 with the canon through pastiche or parody, techniques that do not reinforce grand narratives or the traditional form of the novel. In his book, Magnus produces a fragmented and plural work not only as to the composition of independent narratives, but also toits non-linear structure and its blurring of genres – suchas the fable, the short story and the language of the newspaper and the theater. The writer also plays with a number of voices that function as whispers or murmurs of a popular community, proposing an instigating dialogue between territory and fiction. These are fragmented narratives that tell us of the everyday life of subjects that live in a labyrinthic territory that is spread all over the city and that receives the city inside it, representing a society as fragmented as the book. To the figuration of such a diverse amount of subjects and stories, Ariel Magnus makes use of a radical narrative experimentation, producing a sort of novella-collage that allows the discussion over the limits of literature and the traditional idea of the novel to be taken further.

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SUMÁRIO

1.

I

NTRODUÇÃO... 11

2.

A

S IMPOSSIBILIDADES DA FORMA NO ROMANCE PRECÁRIO... 15

2.1.Experimentações estéticas na Villa 31 de Magnus ... 43

3. TERRITÓRIO EM MOVIMENTO

:

O FOCO SE DESLOCA PELA CIDADE... 52

4. A VIOLÊNCIA INVISÍVEL ECOA NOS DISCURSOS DA CIDADE... 75

5.

C

ONCLUSÕES

... 94

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1. INTRODUÇÃO

Diante do fenômeno contemporâneo da fragmentação do sujeito e do território urbano que se reproduz por meio de fracionamentos e da segregação residencial, escritores latino-americanos das últimas duas décadas produzem uma literatura que narra a cidade como um espaço geográfico segmentado e não homogêneo, ou seja, uma literatura que não propõe a urbe como uma unidade geográfica, mas como uma pluralidade de territórios fragmentados que podem apagar ou rearticular as referências identitárias, atuando como lócus de pertencimento de grupos ou tribos. A obra que é objeto desta pesquisa e base para pensar a fragmentação da cidade de Buenos Aires é a ficção de Ariel Magnus La 31 (una novela precaria), que narra um dos “microterritórios” da capital argentina – a villa miseria que dá nome à obra – em contraponto a outras áreas da cidade. Pretende-se pensar aqui a representação da villa e de seus moradores por meio da Babel de discursos e imagens que se difundem a partir de e sobre a favela. Este trabalho propõe uma reflexão acerca do modo como, mediante a fragmentação e a pluralidade de olhares, a ficção de Ariel Magnus consegue representar a outridade e o território periférico “desde afuera”, mas sem o recurso ao exotismo e ao essencialismo.

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Ariel Magnus faz parte de um grupo de escritores argentinos que “nacieron después de 1960 y surgieron a partir de los años 90” (Drucaroff, 2011, p. 17), os quais produzem uma narrativa que está na fronteira entre o real e o ficcional, ao mesmo tempo em que estabelecem uma clara relação com as microgeografias da cidade de Buenos Aires. Os autores são diversos: alguns narram o microterritório do qual fazem parte ou com o qual mantêm algum tipo de relação afetiva; outros narram microterritórios com os quais não têm nenhuma relação de proximidade, mas que se mostram como espaços com grande potencial para pensar cidade/sociedade por meio da representação. Magnus insere-se no último grupo.

A discussão acerca da fragmentação dos sujeitos e da cidade é fundamental para essa literatura que valoriza a narração das identidades locais, deixando explícita a crise dos relatos nacionais e dos imaginários mais estreitamente relacionados às narrativas do Estado-Nação.

No ensaio Los prisioneros de la torre: política, relatos y jóvenes en la postdictadura (2011), Elsa Drucaroff analisa essa literatura argentina recente, que foi nomeada como Nueva Narrativa Argentina, ou NNA, por conceber-se como uma literatura estruturada dentro e fora da literatura tradicional e com seus próprios recortes narrativos, em um processo em que a realidade cotidiana passa a figurar como base para a narrativa.

Cuando hablo de “nueva” narrativa para la obra de las generaciones de postdictadura me refiero a que encuentro en ella cierta entonación, ciertas “manchas temáticas” y ciertos procedimientos que en general no aparecen así en otra parte, al menos no como tendencia

generalizada. Es esperable que lo “nuevo” (…) no aparezca sólo en las generaciones de

postdictadura, pero eso nuevo que intentaré describir y delimitar sí las caracteriza particularmente a ellas, al menos como tendencia comprobable. (DRUCAROFF, 2011, p. 18)

Essa nova tendência literária argentina caracteriza-se por uma narrativa que pretende “ficcionalizar” o presente, propondo narrativas que têm como tema o cotidiano dos sujeitos desses microterritórios. Conquanto a elucidação de Elsa Drucaroff relacione essa nova literatura à crise política, econômica e social ocorrida na Argentina em 2011, a autora também aclara as características dos narradores que a produzem: são escritores da pós-ditadura que já não necessitam das antigas estruturas de consagração e pertencimento para construir seu lugar no campo literário. Por outro lado, tampouco essas narrativas denominadas “novas” por Drucaroff são escritas inéditas, uma vez que muitas lançam mão de estéticas já utilizadas por escritores do cânone, como veremos no capítulo a seguir.

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que compõem a cidade fragmentada de Buenos Aires, entre eles os territórios periféricos. Ariel Magnus é um desses autores inseridos no grupo que escolhe trabalhar os territórios como uma temática cara para sua produção literária. Propomos para o desenvolvimento deste trabalho uma das obras do autor na qual o território, a fragmentação e a inespecificidade têm um papel fundamental.

Embora pareça assumir um aspecto inacabado ou imperfeito, a obra mantém uma unidade narrativa baseada na representação de um território periférico, o assentamento irregular que dá nome à obra, a Villa 31, localizada no bairro do Retiro. Essa articulação imperfeita dos fragmentos narrativos, bem como dos fragmentos da cidade, é alcançada a partir da forma como circulam os personagens da obra pelos diferentes espaços. Em vários pontos da narrativa, é possível encontrar os mesmos personagens que, guiados por diferentes motivações, vão se encontrando e se chocando com outros para construir uma teia de micronarrativas a partir da qual é possível ter uma imagem da realidade e da cidade.

O livro divide-se em sessenta e dois fragmentos narrativos, que podem constituir uma unidade em si mesmos, apresentar-se aos pares ou mesmo em blocos de três ou quatro, como uma espécie de continuação do relato. A possibilidade de o leitor entrar em contato com a obra a partir da escolha da continuidade dos relatos só ocorre ao final do livro quando, ao se deparar com o índice, percebe que há uma estrutura por meio da qual o autor propõe um caminho alternativo de leitura que une os diferentes fragmentos constitutivos dos 32 capítulos do romance (31 capítulos + o capítulo 31 bis), que remete ao nome de uma das partes mais recentes da Villa 31).

Em La 31, como em outras obras suas, Ariel Magnus propõe experimentações estéticas bastante engenhosas não apenas na narrativa, afetando em particular a estrutura da linguagem, que muitas vezes assume um lugar de protagonismo que suplanta qualquer personagem, como ocorre na obra que estudamos.

Lançando outro olhar para a cidade e para o ato de narrar o presente, o autor inspira-se na imagem dominante da precariedade do espaço parasubverter as concepções estabelecidas sobre o Outro e sobre a própria fatura narrativa. A estética do precário torna visível a complexidade e a multiplicidade de facetas da favela, bem como a pobreza, e suas representações centradas nos estigmas da violência e da miséria ou nas imagens da falta.

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narrativa que traduza o espaço (o que se observa também em outras obras do autor, como A Luján), o autor investe na perspectiva da pluralidade lacunar dos fragmentos que, como um enorme quebra-cabeças do qual faltam inúmeras peças, compõem a cidade e a villa miseria. Objetivamos analisar a importância desse olhar que coloca em xeque a própria forma do romance ao privilegiar o fragmento e a não linearidade em sua composição narrativa, em uma textualização constituída por gêneros diversos. Colocamos como problema o modo como o autor leva o leitor a ler a representação de uma realidade fragmentada por meio dessa obra-mosaico, que expande a discussão dos limites da literatura e da concepção tradicional de romance, bem como a imagem uniforme que se tem do sujeito que habita o referido território. Buscamos ler a obra de Ariel Magnus em diálogo com os textos teóricos e das categorias propostas por Elsa Drucaroff (2011), Néstor García Canclini (2008), Josefina Ludmer (2010), Jesús Martín-Barbero (2008), Beatriz Sarlo (2009), Teresa Pires do Rio Caldeira (2000), Zygmunt Bauman (2005), entre outros.

Quanto à estrutura escolhida para escrever este trabalho, optamos por iniciar cada capítulo com a tradução de fragmentos de La 31 (una novela precaria) mais relevantes para as discussões propostas. Objetivamos, com essa forma de organização do texto, que o leitor deste trabalho possa ter contato direto com a obra de Ariel Magnus sem que haja ruídos entre nossas discussões e o corpus escolhido. Ao final de cada fragmento traduzido, colocamos o relato completo, tal qual se encontra na obra, caso o leitor opte por lê-los no idioma original.

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2. AS IMPOSSIBILIDADES DA FORMA NO ROMANCE PRECÁRIO

Fragmento 1:

31 (Bis). O céu dos favelados

Fabricio T. aos 54 de cirrose, diziam que chupava até a água das jarras de flores se não fosse pelo fato de a favela quase não ter flores; Eugenio Aníbal H. aos 16 anos por um tiro na cabeça, mais especificamente na glândula pineal, aí onde segundo Descartes se unem o corpo e a alma; Olga Úrsula V. aos 37 de câncer de mama, ela dizia de mamãe e jogava a culpa nos desgostos que seus filhos lhe haviam dado; Cinthia Jessica D. aos 25 atropelada por um ônibus, dizem que ela não estava batendo bem da cabeça mas a verdade é que nunca a viram de outra forma; María Amalia F. aos 3 de tuberculose, uma doença já erradicada no primeiro mundo mas que ainda se conserva no terceiro, essa grande reserva natural para infecções em extinção; N. N. aos três ou quatro dias por asfixia, embora a causa seja hipotética porque não lhe fizeram uma autópsia, tampouco lhe deram uma sepultura, do contêiner passou ao caminhão e dali ao aterro sanitário, a única pessoa que o viu preferiu permanecer anônima e voltou a cobri-lo; Manuel R. alcunha “o Frango” aos 15 anos como consequência de uma surra, a polícia diz que foi na saída da discoteca mas seus amigos dizem que foi dentro do camburão; Jessica S. também aos 15 mas em decorrência de um aborto clandestino, a família diz que a culpa é do menino que a engravidou e o menino que a engravidou diz que a culpa é da enfermeira que a atendeu, na realidade a culpa é do Estado e da Igreja mas isso ninguém diz. [Ariel Magnus. La 31 (una novela precária)]1

Fragmento 2:

18. Favelalegoria

FAVELA: Meus muito estimados, eu os reuni para lhes pedir por favor que os senhores vão embora daqui.

DOENÇA MAL TRATADA(surpresa): Mas, Dona Favela, a senhora não tem o direito de nos pedir uma coisa dessas, muito menos com tão boas maneiras.

FOME(taxativa): A Doença Mal Tratada tem toda razão. Aqui não se trata de tratar-nos bem, mas de combater-nos.

MORTE EVITÁVEL(irritada): Concordo com a Fome. E nem preciso dizer que, se elas não vão embora, eu também não vou.

FAVELA(virando-se em direção ao Desemprego): Bom, então comecemos pelo senhor, senhor Desemprego. O senhor não gostaria de ir trabalhar em outra parte?

1“Fabricio T. a los 54 de cirrosis, diríase que se chupaba hasta el agua de los floreros si no fuera porque en la

villa no hay casi flores; Eugenio Aníbal H. a los 16 de un tiro en la cabeza, más específicamente en la glándula pineal, ahí donde según Descartes se juntan el cuerpo y el alma; Olga Úrsula V. a los 37 de cáncer de mama, ella

decía ‘de mamá’ y le echaba la culpa a los disgustos que le habían dado sus hijos; Cinthia Jessica D. a los 25

atropellada por un colectivo, dicen que no estaba en sus cabales pero lo cierto es que nunca se le conocieron otros; María Amalia F. a los 3 de tuberculosis, una enfermedad ya desaparecida en el primer mundo pero que aún se conserva en el tercero, esa gran reserva natural para infecciones en extinción; N. N. a los tres o cuatro días por asfixia, aunque la causa es hipotética porque no se le hizo una autopsia, tampoco se le dio sepultura, del container pasó al camión y de ahí al relleno sanitario, la única persona que lo vio prefirió quedar igual de

anónima y volvió a cubrirlo; Manuel R. alias “el Pollo” a los 15 como consecuencia de una golpiza, la policía

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DESEMPREGO (com voz fatigada, desenganada): Eu já trabalho em outras partes, senhora. Trabalho em quase todos os lados. E aqui mais do que em nenhum outro. Pode acreditar que se fosse por mim eu deixaria de fazer isso, mas não posso, é o meu trabalho.

SUJEIRA (quase ofendida): Todos nós também trabalhamos fora, embora seja verdade que aqui somos mais produtivos.

ANALFABETISMO: Eu me vejo nessa mesma encruzilhada paradoxal que o Desemprego, só que no meu caso não é preciso fazer grandes investimentos para me tirar daqui, apenas boa vontade. Na verdade, a presença do senhor Desemprego deveria fazer com que eu não tenha mais trabalho, e meu desaparecimento deveria por sua vez levar ao desaparecimento dele também. Mas bom, já sabemos que há coisas que se interpõem entre nós.

DROGADIÇÃO (queixosa): Depois vão se ver comigo. Como se esquece fácil, senhor Analfabetismo, de que no fundo eu sou uma consequência da ação aqui do senhor Desemprego e da senhora Falta de Oportunidades, que pelo visto aproveitou a oportunidade para faltar.

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: Quer dizer que eu sou apenas uma consequência da sua ação, senhora Drogadição.

FAVELA: Mas então eu não entendo, por onde devo começar para poder mandá-los embora daqui?

ANALFABETISMO: Pela Fome, naturalmente. Se ela não vai embora, é difícil que eu vá, e se eu não vou, tampouco irá o Desemprego, nem a Drogadição, nem ninguém. E quando digo ninguém me refiro a uns quantos, porque a Falta de Oportunidades não é a única ausente aqui.

FOME: Exatamente. Onde estão Desamparo Jurídico, Ausência Estatal, Amontoamento, Frio e todos os outros companheiros?

FAVELA: Eu achei conveniente não marcar com todos ao mesmo tempo, pois tive medo de não convencê-los. E já podem ver que não estou conseguindo nem mesmo com os senhores.

FOME: Já lhe disse que não tem que pedir amavelmente para a gente sair daqui, mas sim nos combater.

ARMAMENTO ILEGAL: O problema é que ela não tem armas para fazê-lo. FALTA DE PLANEJAMENTO: Que se arme então.

FAVELA: O verdadeiro problema é que não sei por onde começar.

MORTE EVITÁVEL: Por que não tenta começar pelo final e vai embora a senhora mesma? RESIGNAÇÃO: É isso aí, e nós a seguimos. Somos Fuenteovejuna: ou va mos embora todas, ou não vai nenhuma. [Ariel Magnus. La 31 (una novela precária)]2

2“VILLA MISERIA: Mis muy estimados, los he reunido para pedirles por favor que se vayan de aquí.

ENFERMEDAD MAL TRATADA (sorprendida) Pero, Doña Villa Miseria, usted no tiene derecho a pedirnos algo así, mucho menos de tan buenas maneras.

HAMBRE (taxativa): Enfermedad Mal Tratada tiene toda razón. Acá no se trata de tratarnos bien, sino de combatirnos.

MUERTE EVITABLE (enojada): Adhiero a Hambre. Y de más está decir que si ellas no se van, yo tampoco. VILLA MISERIA (girando hacia Desempleo): Bueno, entonces empecemos por usted, don Desempleo. ¿No quiere irse a trabajar a otra parte?

DESEMPLEO (con voz cansina, desahuciada ): Yo ya trabajo en otras partes, doña. Trabajo en casi todos lados. Y acá más que en ninguno. Créame que si por mí fuera dejaría de hacerlo, pero no puedo, es mi trabajo.

MUGRE (casi ofendida): Todos trabajamos también fuera, aunque es verdad que acá somos más productivos. ANALFABETISMO: Yo me encuentro en la misma paradoja encrucijada que Desempleo, solo que en mi caso no harían falta grandes inversiones para echarme, sino apenas un poco de voluntad. En rigor, la presencia del señor Desempleo debería favorecer que yo no tenga más trabajo, y que yo desaparezca debería a su vez favorecer a que también lo hiciera él. Pero bueno, ya sabemos que hay cosas que se interponen entre nosotros.

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Iniciamos este capítulo com a reprodução de dois relatos que integram a complexa estrutura de La 31 (una novela precaria) porque queremos compartilhar com o leitor brasileiro o texto do romance e porque acreditamos que eles nos ajudam a pensar duas das estratégias centrais de um projeto literário cujos contornos se definem a partir da desmontagem da trama e da desestabilização da própria ideia de romance pela pluralização e mistura de fragmentos. As duas estratégias a que nos referimos seriam: a) a utilização do fragmento como elemento rector de um projeto romanesco que considera central a descontinuidade da experiência urbana, e b) o tratamento dos personagens que povoam os territórios fragmentados da cidade por meio da mescla de técnicas narrativas, recorrendo a múltiplas estruturas que possibilitam contar a rede interminável de relatos que visibiliza momentos de suas vidas.

O que nos interessa neste capítulo é discutir o modo como Ariel Magnus, por intermédio de suas narrativas, trava um embate com o modelo de romance tradicional, sem, contudo, negá-lo integralmente, mas pensando as diversas alternativas de escrita para estruturar seus “romances” – romances aqui entre aspas porque é exatamente essa denominação que se coloca em xeque diante de estruturas com tão pouca relação em comum com o que se convencionou chamar de romance.

A ambição desse projeto narrativo é claramente distanciar-se de uma história (ou relato) total. É importante ressaltar que o romance dialoga com uma obra central do cânone nacional argentino que já lançara em 1963 o germe desse projeto. Rayuela, obra escrita por Julio Cortázar em 1963, talvez seja o primeiro passo no questionamento desse modelo, abrindo um caminho que levará a La 31. A produção do Novo Romance Hispano-americano

VIOLENCIA DOMÉSTICA: Entonces yo soy nada más que una consecuencia de su accionar, señora Drogadicción. VILLA MISERIA: Pero entonces no entiendo, ¿por dónde tengo que empezar para poder echarlos?

ANALFABETISMO: Por Hambre, naturalmente. Si él no se va, difícil que vaya yo, y si yo no me voy, tampoco se va Desempleo, ni Drogadicción, ni nadie. Y con nadie me refiero a unos cuantos, porque Falta de Oportunidades no es la única ausente aquí.

HAMBRE: Eso. ¿Dónde están Desprotección Jurídica, Ninguneo Estatal, Hacimiento, Frío y todos los otros compañeros?

VILLA MISERIA: Creí conveniente no citarlos a todos a la vez, pues temía no convencerlos. Y ya ven, no lo estoy logrando ni con ustedes.

HAMBRE: Ya le dije que a nosotros no hay que pedirnos amablemente que nos vayamos, sino que hay que combatirnos.

ARMAMENTO ILEGAL: El problema es que no tiene armas para hacerlo. FALTA DE PLANIFICACIÓN: Que las arme, pues.

VILLA MISERIA: El verdadero problema es que no sé por dónde empezar. MUERTE EVITABLE: ¿Y si prueba empezando por el final y se va usted misma?

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e, em particular, a de Julio Cortázar, com especial destaque para a obra citada, provocou diversas discussões sobre os caminhos da escrita romanesca. Trabalhando sempre na tensão com o modelo que se manteve em vigor até meados do século XX, Ariel Magnus incorpora elementos de uma nova tradição que se afirma a partir de Rayuela e La casa verde (1966)3, de Mario Vargas Llosa. Outros autores enfrentam problemas semelhantes. Trata-se de narradores que compartilham elementos de uma poética do presente e em cujas obras se observam o abandono da dimensão totalizadora, além de constantes referências ao cânone nos procedimentos que adotam.

Em toda a obra de Ariel Magnus há uma fronteira bastante diluída entre a forma tradicional do romance e outras formas de discurso. Na fatura de La 31, em particular, observamos a experimentação com novas maneiras de narrar a cidade. São páginas compostas por materiais heterogêneos – narrativas, dramas, descrições, passagens dialogadas – que se distribuem pelo livro de modo absolutamente descontínuo. A fragmentação surge como uma perspectiva do real que produz realidade; não é apenas o espaço urbano que se rompe, mas também, e sobretudo, a linguagem, gerando uma profusão de enunciados desde distintos lugares e em diferentes gêneros: relatos sem terminar, pedaços de histórias, personagens de identidade indefinida, narrativas despedaçadas. Em alguns casos, a intriga propriamente dita é quase nula de tão fragmentada ou prejudicada que é pela opção de gênero textual do autor.

O primeiro fragmento transcrito intitula-se, no texto original, “31 (bis). El cielo de los villeros” e está estruturado a partir da proliferação de um modelo de gênero textual não narrativo: o obituário. O gênero em questão registra alguns dados básicos para informar a morte de um indivíduo particular. Geralmente, junto com um resumo de suas realizações em vida, aparece o nome e a idade da pessoa falecida, bem como, em alguns casos mais raros, a causa da morte. Apesar de se espelhar na estrutura desses simples comunicados publicados nos diários, o texto de Magnus apresenta uma diferença significativa que salta aos olhos quando o comparamos com os obituários tradicionais. O conjunto de informes de falecimento reunidos no fragmento citado traz um elemento uniformizador: há uma voz narradora que perpassa todas as notas de falecimento. O ponto que as une é o tom irônico que problematiza a causa dessas mortes e faz eco, com uma inusitada virada crítica, do senso comum. Embora não se tenha conhecimento de qualquer fato relativo à vida dessas pessoas, há um coro de

3 A obra La casa verde (1966), do escritor peruano Mario Vargas Llosa (1936- ), narra a história de um

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vozes anônimas que colocam em circulação as experiências: vida e morte chegam-nos a partir dos relatos de terceiros, como podemos observar no trecho citado; os testemunhos, ecos e murmúrios chegam de todos os grupos sociais, de todos os cantos da cidade: “dicen que no estaba en sus cabales (…); la policía dice que (…) pero sus amigos dicen que (…); la familia dice que (…) el chico que la embarazó dice que (…), pero eso nadie lo dice.” (MAGNUS, 2012, p. 93).

Silviano Santiago, em seu livro Nas malhas da Letra (2002), dedica um capítulo para discutir a importância do narrador na composição dos relatos e a diferença que há entre o narrador exterior à ação concreta – caso exemplificado no parágrafo anterior – e o narrador participante ativo, no que diz respeito à autenticidade do relato:

o narrador pós-moderno é aquele que quer extrair a si da ação narrada, em atitude semelhante à de um repórter ou de espectador. Ele narra a ação enquanto espetáculo a que assiste (literalmente ou não) da plateia, da arquibancada ou de uma poltrona na sala de estar ou na biblioteca; ele não narra enquanto atuante. (SANTIAGO, 2002, p. 45)

Na leitura dos relatos de La 31, fica perceptível que o narrador de Magnus não se insere em nenhuma das duas classificações apresentadas por Silviano, assemelhando-se apenas à ideia de narrador externo à ação. Como no exemplo citado, o narrador não é um espectador interno da ação, mas uma voz não identificada que absorve informações de terceiros para narrar a partir desse olhar externo que se forma com base nos dados que chegam a ele, sem se importar com a autenticidade ou a proveniência de tais vivências. Por meio de uma estratégia que abdica de qualquer caráter testemunhal, faz sobressair as marcas de modulação desse narrador e desse lócus de enunciação.

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território narrado. Aborto clandestino, alcoolismo, doenças extintas em muitos países considerados desenvolvidos ou violência policial ganham lugar na representação da villa por meio das notas do obituário, assim como os outros problemas que se transformam em personagens no fragmento dramatúrgico.

Já o segundo fragmento, intitulado “Alegoría miseria”, diferencia-se do primeiro exemplo em um aspecto fundamental: o autor já não se vale de um formato típico da imprensa escrita como os comunicados de falecimento publicados em jornais. O modelo, nesse caso, é o gênero dramatúrgico, mais especificamente, as peças de teatro alegóricas que fizeram tradição no teatro ibérico dos séculos XVI e XVII. Magnus, nesse fragmento, recorre ao cânone literário espanhol do Siglo de Oro espanhol ao construir personagens que remetem às figuras alegóricas de Pedro Calderón de La Barca (1600-1681) e Tirso de Molina (1579-1648). Poderíamos dizer que tanto a Favela (“Villa Miseria”, no texto original) como os demais interlocutores dessa cena são personagens alegóricos, um tipo de personagem simbólico que encarna um conceito abstrato como a Morte, a Soberba, a Beleza ou a Culpa. A releitura da tradição literária pode ser observada de duas formas: primeiro, na estrutura da obra teatral com personagens abstratos que desencadeiam uma discussão sobre os problemas da favela, tal qual Calderón de la Barca no auto sacramental A Dios por razón de Estado. Essa peça tem na dimensão alegórica seu principio estruturador, o qual se explicita em particular na utilização de personagens abstratos, como El Ingenio, El Pensamiento, La Gentilidad, El Ateísmo, La Confirmación, La Penitencia, La Extremaunción, El Orden Sacerdotal, El Matrimonio, La Ley Natural, La Ley Escrita y La Ley de Gracia.

Magnus elabora esse fragmento de sua narrativa a partir de um texto canônico, servindo-se também de personagens alegóricos para estrutura um diálogo protagonizado por alguns dos problemas mais concretos da villa. O fragmento inicia com o pedido da personagem Villa Miseria para que os outros personagens configurados como problemas sociais deixem esse território da “falta”, o que desencadeia uma discussão entre os personagens para saber qual deles seria o mais nocivo para esse ambiente e qual seria o primeiro a ser erradicado.

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elementos que “nos brindarán una oportunidad de percibir la especificidad de la experiencia posmodernista del espacio y el tiempo” (2002, p. 18).

Reciclando estilos do passado ou formas discursivas clássicas, Magnus abdica da pretensão de originalidade, ao mesmo tempo em que introduz um dado novo com a pluralidade de formas dos múltiplos fragmentos de seu “romance”. Fredric Jameson recorda -nos que, ao contrário dos modernistas que buscavam inventar um estilo pessoal e inconfundível como uma impressão digital, nas obras dos artistas e escritores do período atual o que impera é o pastiche, o diálogo reverente, a citação explícita ou implícita, a apropriação e a releitura de estilos do passado:

De allí, una vez más, el pastiche: en un mundo en que la innovación estilística ya no es posible, todo lo que queda es imitar estilos muertos, hablar a través de máscaras y con las voces de los estilos del museo imaginario. Pero esto significa que el arte contemporáneo o postmodernista va a referirse de un nuevo modo al arte mismo. (JAMESON, 2002, p. 22).

No entanto, como observado na citação, Jamenson faz ponderações bastante negativas em relação a essa releitura e apropriação dos estilos do passado, argumentando que são imitações aleatórias de estilos mortos. Linda Hutcheon, em sua obra Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção, também discorre acerca do uso desse passado estético, observando nesse movimento de apropriação uma relação mais positiva. Segundo Hutcheon, “a paródia é uma forma pós-moderna perfeita, pois, paradoxalmente, incorpora e desafia aquilo a que parodia. Ela também obriga a uma reconsideração da ideia de origem ou originalidade, ideia compatível com outros questionamentos pós-modernos (...)” (1988, p. 28).

Outro diálogo com a tradição literária travado por Magnus, no mesmo fragmento, é com a peça Fuenteovejuna (1619), de Lope de Veja (1562-1635). A obra, que se destaca no teatro barroco espanhol, trata da história do povoado homônimo, durante o reinado dos Reis Católicos, que se vê diante de um governante militar que usa seu poder para cometer abusos e arbitrariedades com a população local. Em dado momento, esse militar é morto e nenhum dos habitantes de Fuenteovejuna delata o assassino; ao contrário, quando questionados sobre o autor do crime, todos gritam que o povoado é o culpado, em uma espécie de protagonismo coletivo, desafiando os poderes instituídos.

JUEZ: A Fuente Ovejuna fui

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una hoja no se ha escrito que sea en comprobación; porque conformes a una, con un valeroso pecho, en pidiendo quién lo ha hecho,

responden: “Fuente Ovejuna.” (VEGA, 1980, p. 105)

No fragmento de La 31, não ocorre um crime cometido por um dos personagens de forma individual, mas sim conjunto de crimes cometidos pelo que poderíamos chamar “sistema” contra uma coletividade. Essa figura coletiva está ausente no fragmento de Magnus, surgindo apenas à medida que são afetados pela ação de cada um dos personagens abstratos que se nega a deixar o território. Pode-se ler, portanto, uma clara alusão à coletividade da obra de Lope de Vega.

Na última fala da obra teatral estruturada por Magnus, ocorre essa clara referência à obra de Lope de Vega: Resignación, uma das personagens nocivas à villa, cita o título da obra de Lope, provocando um efeito de humor resultante da correspondência fonética entre os vocábulos “Fuenteovejuna” e “ninguna”. Motivada pela possibilidade da rima, Resignación diz que todas as personagens-problema são “Fuenteovejuna” e que, por isso, terão de sair do território todas juntas:

VILLA MISERIA: El verdadero problema es que no sé por dónde empezar. MUERTE EVITABLE: ¿Y si prueba empezando por el final y se va usted misma?

RESIGNACIÓN: Eso, que nosotros la seguimos. Somos Fuenteovejuna: o nos vamos todas, o no se va ninguna. (MAGNUS, 2012, p. 49)

Nesse final do fragmento, após a discussão ocorrida entre todos os personagens nocivos ao território e a própria Villa, a personagem Muerte Evitable propõe que Villa Miseria resolva os problemas que acometem o território indo ela mesma embora. Desta forma, sem que haja qualquer referência direta, aparece a discussão sobre a remoção de favelas como combate à própria favela identificada não como um território onde existem problemas, mas como um problema em si.

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no fragmento traduzido e reproduzido neste capítulo, que o autor se vale de um gênero textual não literário para elaborar um dos fragmentos de sua obra, trazendo para o texto os ecos dos meios massivos de comunicação e as vozes anônimas que constroem uma nebulosa de relatos importantes para construir uma noção do urbano e da própria vida dos sujeitos que povoam a cidade. Já no segundo fragmento, o autor lança mão do cânone tanto em sua estrutura como na referência direta e indireta a obras clássicas da literatura espanhola.

Assim como observamos em autores como Pedro Juan Gutiérrez, com sua obra

Trilogía sucia de La Habana4, ou Junot Díaz, com sua obra Afogado5– que têm em comum o uso do fragmento como recurso formal ao ponto de alguns de seus livros ocuparem a fronteira entre o romance e a coletânea de contos –, essa estratégia narrativa acaba por atuar em tensão com a própria estrutura tradicional de romance, colocando a obra de Ariel Magnus no limite do romanesco, embora ele a sublinhe na informação paratextual que figura na capa a identificação de seu livro como romance. Essa necessidade de aclarar, no próprio título da obra, que se trata de um romance [La 31 (una novela precaria)] já é por si só significativo da sua condição deslizante ou da instabilidade desse status.

A condição de “não cabe de todo”, como diria Cortázar, no universo do que se convencionou chamar romance no século XIX parece ser um exercício programático para Ariel Magnus e muitos outros escritores contemporâneos. Não há, porém, a pretensão de colocar o cânone em xeque, mas sim o desejo de repensar a estrutura linear, acabada e fechada do romance, de modo a “brincar” com as (im)possibilidades da narrativa e abrir um sem número de caminhos para narrar as tramas do cotidiano. Para ilustrar a importância dessa discussão para toda uma geração de autores que enfrentam problemas semelhantes, poderíamos recorrer à obra Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, publicada em 2001.

4 Pedro Juan Gutiérrez nasceu em 1950, em Matanzas, Cuba. Trabalhou em atividades diversas, como vendedor

de sorvetes, cortador de cana e jornalista; atualmente, é pintor, escultor e escritor. Escreveu diversas obras reconhecidas e traduzidas em vários países, entre elas está Trilogía Sucia de La Habana, El Rey de La Habana y El insaciable hombre araña. Trilogía sucia de La Habana é composto por um conjunto de três relatos: “Anclado

em Tierra de Nadie”, “Nada que hacer” e “Sabor a mí”. Todas essas narrativas ocorrem em um período da sociedade cubana em que a economia e a política estavam em um de seus momentos mais preocupantes por consequência do colapso da União Soviética. O resultado desse período foi narrado nesses textos autobiográficos com a uma grande carga de sexo, rum e música. Gutiérrez coloca como centro de sua narrativa grupos marginais da sociedade cubana a partir do olhar do narrador e protagonista dos relatos, propondo uma espécie de colagem de fragmentos da capital miserável de Cuba.

5 Junot Díaz nasceu em Santo Domingo, República Dominicana, em 1968. Trabalha como professor e escritor

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Em seu primeiro romance, Ruffato cria um texto super fragmentado que se estrutura a partir de diversas composições textuais como uma espécie de experimento artístico baseado na proliferação de “formas inespecíficas” (GARRAMUÑO, 2014).

Assim como ocorreria com Ariel Magnus perante a Villa 31, Luiz Ruffato já se propusera, interpelado pela complexidade da cosmópolis de São Paulo, a problematizar a construção da realidade em seu primeiro romance. No texto intitulado “Até aqui, tudo bem! (como e por que sou romancista – versão século 21)”, o autor fala sobre os dilemas que lhe propõe a busca de uma nova forma romanesca que dialogasse diretamente com o corpo da cidade.

Esse romance nasceu da necessidade de tentar entender o que estava acontecendo à minha volta – e para isso tomei a cidade de São Paulo como síntese da sociedade brasileira. Um dia, caminhando pelos corredores de uma das bienais de arte de São Paulo, deparei com uma curiosa instalação: um amontoado aparentemente aleatório de calçados abandonados (tênis, chinelos de dedo, sapatos masculinos e femininos, infantis e adultos, botas, sandálias, pantufas etc.), que me provocou uma série de reflexões. A sola daqueles calçados percorrera o asfalto e a poeira das ruas, tomara chuva e sol, fora feliz e infeliz, enfim, nas curvas deformadas pelo uso imprimira-se uma individualidade, que recolhida e rearranjada tornara-se depoimento coletivo. Ali, de uma maneira singular e criativa, o artista reconstruíra a História. (RUFFATO, 2008, p. 321)

Antes do livro, vêm as narrativas da cidade (os calçados que percorrem o texto do urbano), as formas de produção e reprodução do urbano, nas quais a arquitetura popular ocupa um papel espacial. Ao pensar a villa como um texto desordenado que se constrói pela acumulação de fragmentos e objetos refugados, Ariel Magnus recorre também à imagem da

instalação que por sua vez remete à ideia da cidade – e suas partes – como texto:

Lo que no se puede negar, en todo caso, es la acumulación de cachivaches de origen desconocido y fines inescrutables en las casas que cuentan con el beneficio de un patio

delantero (…). Y a la vez es eso – el tiempo de almacenamiento y de intemperie – lo que le confiere a esa suma de objetos disímiles y aun incompatibles un aire de obra, de instalación que aventaja a las que se exponen en los museos (…). (MAGNUS, 2012, p. 55)

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fragmento, de ahí que tampoco haya nada que no sea un todo, no sé si me explico” (MAGNUS, 2010, p. 84).

Percebemos, por conseguinte, mais uma característica que esteve presente na literatura ao longo de boa parte do século XX: a referência ao processo de representação no interior da própria obra. A crítica canadense Linda Hutcheon já sinalizou, em Uma teoria da paródia, que esse discurso narrativo que se vira para si mesmo foi uma tendência dominante da arte moderna, multiplicando as imagens especulares no interior de relatos nos quais se observa uma profunda autoconsciência narrativa (Cf. HUTCHEON, 1989).

A obra, a partir da descontinuidade de espaços e histórias, promove uma reflexão sobre a aparente incomunicabilidade da narração fragmentada e sobre a condição estanque das “ilhas urbanas”. Isso faz com que os fragmentos textuais se identifiquem aos fragmentos da cidade, surgindo uma espécie de arquipélago de ilhas narrativas, dentre as quais se destacariam as que de algum modo se vinculam à Villa 31 criada por Ariel Magnus.

Assumidamente inspirado em obras cinematográficas, Ruffato privilegia a ideia de montagem e remete o leitor a uma situação em que este deve lançar mão da edição de imagens e cenas soltas para tentar construir alguma unidade imperfeita de relato e de cidade:

Eles eram muitos cavalos é uma proposta de reflexão sobre o meu tempo. Nele tento recriar um dia na megalópole: uma visada panorâmica pela cidade, cujos atores, embora reconhecíveis, são apresentados como fantasmagoria em capítulos estanques. A deterioração das relações sociais emerge na precariedade formal do livro, que avança sem avançar, que tartamudeia em espasmos, numa espiral de solidão, abandono e denegação, ruínas, forma e conteúdo, apenas ruínas... (RUFFATO, 2008, p. 322. Grifo nosso.)

Inserindo-se numa linha de escritores contemporâneos que encaram a fragmentação como parte de um projeto estético, Magnus faz também, de maneira bastante engenhosa, experimentações estéticas que se assemelham à montagem de cinema, utilizando cenas soltas nas quais o leitor, em dado momento, terá contato com uma continuação do que foi narrado – embora alguns relatos ou personagens não apareçam novamente ao longo de toda a obra –, construindo assim, uma precária unidade dos relatos a partir da trama formada pela trajetória dos personagens.

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apenas pedaços de histórias, como a do sobrevivente da crise de 2001 que abre uma imobiliária na favela, a do catador de papel que acredita ter encontrado um projeto para remoção da villa, a do travesti que resolve fazer ponto numa rua próxima e tantas outras.

Mais que uma solução narrativa que reflete a descontinuidade dos espaços da cidade e da favela, a fragmentação é a própria condição de qualquer relato, como, por exemplo, o relato de um crime. Isso é o que podemos concluir da fala do narrador de outro romance de Ariel intitulado Doble crimen: “la reconstrucción de una vasija o de un manuscrito es lo mismo que la reconstrucción de un crimen, son más los pedazos que se inventan que los pedazos que se juntan y el todo termina diciendo menos que sus partes” (MAGNUS, 2010, p. 84).

Como peças parcialmente dispersas de um quebra-cabeça incompleto, vão acumulando-se os componentes dessa obra de resumo impossível. Pode-se conjecturar que o conjunto de relatos que compõem o “romance precário” pressupõe um leitor participativo que se disponha a montar alguma trama ou tecido possível enquanto desfruta de uma atmosfera que o convida ao humor como forma de deslocamento do olhar e à viagem de quem se disponha a perder-se: perder-se no romance, na villa e na cidade.

Esta literatura, pensada por Ariel Magnus, que se vincula a algum território particular da cidade para falar de seres abandonados e à deriva, como se pode constatar em suas obras

La 31 e A Luján, por exemplo, ou cujas identidades foram esfaceladas e se tornaram quase indefinidas (La cuadratura de la redondez, Cazaviejas) responde a uma experiência e a uma sensibilidade compartilhada por um conjunto de artistas que assumiram o desafio de representar o contemporâneo. Em La 31, de modo particular, temos seres desterritorializados que, apesar de tudo, não perderam a relação com seu espaço.

Por outro lado, romances como La 31, A Luján ou La cuadratura de la redondez

trazem à tona as tensões da narrativa recente com a forma de figurar os personagens e com a maneira de construir a sequência das ações no romance tradicional. Essas obras não apresentam mais uma unidade ou uniformidade de ação que permita associá-las ao gênero romance, ficando os frouxos vínculos entre os personagens e as histórias a cargo do espaço ou do território simbólico (no caso de La cuadratura de la redondez, as letras de Los Redondos). A marca unitária do romance é desconstruída pela dispersão de formas diversas e despedaçadas.

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como uma unidade sem que se perceba que essa pretensa totalidade está estruturada a partir de fragmentos de territórios por onde o sujeito circula e a partir de textos que os representam e dão realidade, permitindo que o sujeito entre em contato com esses lugares ainda que não os frequente nunca.

A discussão sobre a crise da identidade na cultura pós-moderna insere-se com absoluta pertinência na leitura da obra que Ariel Magnus vem construindo ao longo da última década. A opção por narrar a partir dos fragmentos textuais dialoga com as questões propostas por Stuart Hall em A identidade cultural na pós-modernidade (2005), obra na qual analisa a mudança ocorrida no conceito de identidade ao longo da história. Para introduzir a discussão acerca do que seria a identidade pós-moderna, o sociólogo traça o percurso histórico que passa antes pelo perfil do sujeito iluminista e do sujeito sociológico.

Hall inicia sua obra descrevendo a concepção de sujeito iluminista, que estava baseada na ideia do indivíduo “centrado, unificado” e dotado de razão (2011, p. 10). O centro fundamental desse indivíduo era ele mesmo e isso derivava em uma concepção bastante individualista da existência. Com a mudança nas sociedades modernas, a mentalidade também se modificou. Surge, consequentemente, a ideia do sujeito sociológico, que já não se caracteriza pelo sujeito autônomo e autossuficiente, mas sim pelo homem formado na relação com outras pessoas, no diálogo com o “exterior”.

Embora as duas sejam concepções distintas do indivíduo atualizadas em momentos diferentes, ambas sinalizam a busca por identidades fixas e estáveis. Hall argumenta que, no momento que corresponderia ao que Jameson chama de “capitalismo tardio”, as formas construídas de identidade estão fragmentadas, sendo, na prática, compostas de várias outras identidades. Esse processo de fragmentação do indivíduo é o que produzirá o sujeito pós-moderno e que colocará em crise a ideia de identidade nacional forjada na modernidade.

O fenômeno da globalização é, segundo Stuart Hall, um ponto fundamental para compreender a ideia de “deslocamento” de identidades, uma vez que possibilita ao indivíduo reforçar outras relações de lealdade cultural para além daquela que se estabelecia, antes de modo exclusivo, com a cultura nacional. Ganham força, nesse âmbito, as identidades locais e grupais, como as das diferentes tribos urbanas. Esse movimento ocorre na medida em que, com a globalização, as culturas nacionais recebem profundas influências externas, diminuindo sua força de conservação. Hall detalha o modo como se configura o sujeito pós-moderno a partir desse “deslocamento” de identidades:

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vezes contraditórias ou não resolvidas. (...) Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. (HALL, 2011, p. 12-13)

Essa discussão proposta por Hall acerca da concepção do sujeito fragmentado da pós-modernidade é de suma importância para compreender a estrutura narrativa escolhida por Ariel Magnus para tratar de um território também resultante de um processo de fragmentação, sendo, nesse caso, a fragmentação socioespacial.

Ponderando a discussão proposta por Hall no âmbito das realidades das megalópoles latino-americanas, essa concepção de fragmentação do homem pós-moderno pode ser apreciada por meio da obra Culturas híbridas, de Néstor García Canclini. O antropólogo argentino vale-se da ideia de “hibridação cultural” – ideia essa que nega o caráter absoluto da concepção de identidades “puras” – para pensar um processo verificado durante a decadência dos projetos nacionais de modernização na América Latina.

Para Canclini, não somente o processo de globalização – em uma esfera social mais ampla – explicaria a origem da hibridação e, por conseguinte, da fragmentação do sujeito, mas o próprio processo de expansão urbana ocorrido na capital argentina. Durante o processo de expansão no início do século XX, ocorreu a formação de bairros populares em Buenos Aires, resultando em uma mobilização social profundamente fragmentada em suas demandas e nas experiências vivenciadas pelos moradores:

Os estudos sobre a formação de bairros populares em Buenos Aires, na primeira metade do século, registraram que as estruturas microssociais da urbanidade – o clube, o café, a associação de vizinhos, a biblioteca, o comitê político – organizavam a identidade dos migrantes e dos criollos, interligando a vida imediata com as transformações globais que buscavam na sociedade e no Estado. (GARCÍA CANCLINI, 2013, p. 286-287)

A estética narrativa adotada por Magnus pode ser vista como uma estrutura que apresenta a mesma fragmentação do sujeito pós-moderno em sua existência social marcada por práticas e dinâmicas espaciais de mobilidade e deslocamento, dentro e fora da urbe. É a condição de descontinuidade que também afeta a cidade e, no limite, a própria villa. A obra não é construída de forma linear tradicional. Ao contrário: assemelha-se à própria estrutura da

villa 31 – a real e a da narrativa de Magnus –, com suas moradias visivelmente inacabadas e com seus corredores e becos labirínticos.

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trinta e dois capítulos, com as mais variadas estruturas e gêneros textuais – dois deles exemplificados no início deste capítulo –, que podem se desdobrar em até quatro fragmentos, como uma forma de continuação de uma mesma história, totalizando 62 fragmentos. Ariel, em uma entrevista que nos concedeu em agosto de 2015, sublinhava o papel da estrutura em sua obra:

Cada libro tiene una estructura distinta. Es una especie de negociación entre lo que yo quiero hacer y lo que después termina pidiendo el libro. La 31 yo quería hacer 31 historias que nunca se cruzaran y percibo que no se sostenían y empiezan a imbricar un poquito. Si no, no se sostiene. Es una negociación, un regateo. Hay una estructura matemática. Pero, incluso ese orden se rompe. (A. Magnus, entrevista pessoal, 29 de agosto de 2015)

O romance La 31 é composto, portanto, a partir de episódios fragmentários e armada sem muita preocupação com a construção de uma trama global, embora alguns fragmentos se reúnam sob um mesmo título em blocos de dois ou três. Aparecem, contudo, dispersos ao longo do livro, mantendo, apesar disso, a sequência cronológica dos acontecimentos. Isso obriga o leitor a estar atento a todo instante para retomar o ponto em que ficaram os fatos no fragmento anterior. O que parece conduzir esse desenho como verdadeiros fios que possibilitam alguns nós necessários à construção de uma trama são os personagens. A articulação entre as diferentes histórias é construída a partir do movimento dos personagens pelo corpo da cidade, dando coesão a um conjunto de pequenas trajetórias que, em um primeiro momento, pareciam isoladas. Soltas e desarticuladas, aparecem as histórias de Agustina, a colaboradora da ONG que se perde na Villa e o episódio do Dr. Aldo, cuja empregada joga no lixo um roteiro de filme de propaganda. Temos ainda o diálogo dos “violadores recolectos”, a visita dos turistas no fragmento “Villa tour” e a história do catador de papel. À medida que esses personagens se deslocam pela cidade, o leitor percebe que todas essas histórias vão se cruzando, embora nunca se chegue a uma história maior que as congregue e dê um sentido unívoco.

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O mesmo sucede com os personagem Juan Manuel Baigorria e Cirilo Sánchez, de A Luján (una novela peregrina), de 2013. O primeiro tem seu tênis roubado pelo segundo em um momento que antecede à peregrinação religiosa. Baigorria lastima ter que pagar sua promessa com um par de tênis novos, enquanto não muito longe dali Sánchez caminha com os tênis roubados. O que une as duas histórias não é o encontro anterior na condição de vítima e criminoso, mas o fato de compartilharem o território: ambos percorrem a mesma rota de peregrinação sem ao menos encontrar-se. O que dá sentido à trama é o deslocamento dos personagens que se cruzam em um dado território, mas que não necessariamente mantêm qualquer tipo de relação. É um movimento que se dá entre um sem número de personagens, sendo priorizado como fundamental na narrativa esse território de deslocamento.

Cirilo Sanchéz camina a Luján con zapatillas robadas y Juan Manuel Baigorria camina con las nuevas zapatillas que se compró luego de que Cirilo le robara las suyas, en cambio Eustaquio Comodoro Álvez marcha descalzo y Herminio Piccio marcha doblemente calzado, en los pies unas 43 y en el cinto un 38, Eustaquio dice que si lo dejaran

peregrinaría desnudo para presentarse a la Virgen tal como vino al mundo (…). (MAGNUS, 2013, p. 13)

Não encontramos, portanto, na narrativa de Magnus, nenhuma visão totalizante de mundo; ao contrário, em cada fragmento temos apenas um pequeno pedaço de mundo. Em La 31 (una novela precaria), o autor aborda sempre um aspecto da realidade a partir de um recorte de tempo muito pontual que oferece ao leitor situações enxergadas de um ponto de vista bastante circunscrito no tempo e no espaço. Em lugar de um “escritor-Deus”6 onipotente e onisciente, temos um narrador precário que não conta com os requisitos básicos para montar a trama total que envolveria a trajetória das personagens. O narrador onisciente e onipotente que emerge no microcosmo das narrativas romanescas mais tradicionais é substituído por um “eu” narrador “incompetente”, que domina apenas um recorte muito restrito da realidade e não tem controle sobre a vida dos personagens. O narrador nunca domina os fatos, nunca sabe completamente, conseguindo, no máximo, iluminar um momento específico na vida desses sujeitos, situando-os no tempo e no espaço. Cada fragmento narrativo oferecido por esse narrador é uma espécie de flash que ilumina o recorte particular da realidade do qual emerge o personagem, ou seja, ilumina apenas um único momento quase sempre desarticulado de um “antes” e de um “depois”, e também dos outros fragmentos.

6“Escritor-Deus” é como refere-se Severo Sarduy a esse narrador que tudo vê e tudo sabe no âmbito da história

narrada. Em De dónde son los cantantes, as personagens Auxilio e Socorro interrompem o narrador com a

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A estrutura desta obra articula-se com a concepção desse narrador, e ambas são análogas à estrutura precária do território narrado. Também dialogam com a reconfiguração da cidade em sua estrutura contemporânea: uma cidade marcada pela fragmentação socioespacial. Josefina Ludmer, em sua obra Aquí América Latina (2010), argumenta que a produção do campo literário no momento presente acaba por caracterizar-se pelo que ela denomina “literatura pós-autônoma”. Essa forma do fazer literário estaria baseada em uma escrita de territórios do presente e se constrói a partir de narrativas do cotidiano, cruzando a fronteira do que se convencionou chamar “literatura”. A discussão proposta por Ludmer ajuda a elucidar essas novas estruturas textuais encontradas em textos de Ariel Magnus e de outros escritores, como Luiz Ruffato, citado anteriormente. Segundo a pesquisadora,

estas escrituras diaspóricas no solo atraviesan la frontera de “la literatura” sino también la de “la ficción”, y quedan afuera-adentro en las fronteras. Y esto ocurre porque reformulan la categoría de realidad: no se las puede leer como mero realismo, en relaciones referenciales o verosimilizantes. Toman la forma del testimonio, la autobiografía, el reportaje periodístico, la crónica, el diario íntimo, y hasta de la etnografía (muchas veces

con algún “género literario” injertado en su interior: policial o ciencia ficción, por ejemplo). (…) Fabrican presente con la realidad cotidiana y esa es una de sus políticas. (LUDMER, 2010, p. 151)

De acordo com Ludmer, essa forma de narrar já não distingue a realidade da ficção e estaria baseada na narração do presente de uma sociedade que não se estrutura mais de maneira uniforme, da mesma maneira que não se apresenta mais uma polarização entre o campo e a cidade. A narrativa de Magnus constrói-se em um dos territórios do presente em que os sujeitos se “desdiferencian” (LUDMER, 2010), ou seja, têm anulada, de algum modo, a divisão social que a cidade – externa à ilha – lhes impõe. É o que Josefina Ludmer denomina, na obra citada, “islas urbanas”. Para Ludmer,

la isla urbana es una construcción precisa: un adentroafuera verbal y narrativo, y no solamente social y humano. La subjetividad central aparece, desde el punto de vista social, como interna-externa a ella misma, que repite perpetuamente el mecanismo de la isla. (... En el interior de la literatura ligan, entre otras, las formas de narrar – de la tv, del periodismo del documentalismo y del melodrama. Y son una de las formas narrativas dominantes de los años 2000). (LUDMER, 2010, p. 134)

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urbanas” de sujeitos que fazem parte de uma comunidade que se reconhece por semelhanças e estratégias afetivas englobadoras de todas as categorias sociais.

A partir dessa realidade social, aparecem obras que propõem novas representações dos vários territórios que compõem a cidade, entre eles os territórios da alteridade, como a villa

31. Ludmer define essas representações territoriais da seguinte forma:

Desde una posición afuera-adentro (de la ciudad, de la clase social, de la familia o de la nación), la narración delimita la topología exacta del territorio y su régimen de

significación, y pone en escena los sujetos de la isla urbana. (…) Si la isla urbana en América Latina es la ficción de un territorio que se puede desterritorializar, abandonar y destruir, la literatura ya no es una manifestación de identidad nacional. Se trata de una forma de territorialización que es el sitio y el escenario de otras subjetividades o identidades y de otras políticas. (LUDMER, 2010, p. 135)

A obra de Magnus afina-se a essa ideia de “escritura diaspórica” e lança mão de estruturas textuais diversificadas, tal qual argumenta Ludmer. No entanto, o autor, durante uma entrevista conosco em Buenos Aires, garante que a eleição de gêneros textuais distintos não é algo pensado previamente ao projeto da obra. O gênero textual fábula (estrutura utilizada no relato intitulado “Fábulas de favela”), por exemplo, passa a compor a obra em consequência da visita de Magnus à Villa 31 real (já depois de iniciada a escritura do livro), partindo da percepção do autor de um número alto de animais nesse território, além da sujeira que ele encontrou nesse território. Em “Fábulas de favela” lê- se:

Cuando alguien está muy contento se dice que está como un perro de dos colas, pero lo cierto es que el perro Pedro tenía dos colas y no sabía cuál atender y más que contento parecía bastante enculado. Cada vez que quería perseguirse a sí mismo (su juego preferido) no sabía si girar para la derecha o girar para la izquierda. Como buen perro lleno de peros a veces giraba hacia la izquierda y a veces hacia a la derecha, o a veces hacia la izquierda y

enseguida hacia la derecha (…)

Hasta que un día vino la culebra Eva, que trabajaba de puntera a dos puntas en las manzanas 2 y 3, y le propuso afiliarse al Partido.

–¿Qué Partido?– le preguntó inocentemente el perro Pedro.

-El Partido partido – contestó la culebra Eva-. Parte hacia la izquierda y parte hacia la derecha.

–¿Y adónde llega?

–No llega. Va y viene y va y viene.

Convencido así de las ventajas de poder girar hacia cualquier lado sin contradecirse (o de contradecirse sin que eso fuera considerado un giro, ni aun una desventaja) Pedro se afilió. Desde ese día es un perro peronista y está contento como hombre que no tiene que hacer la cola. (MAGNUS, 2012, p. 117-118)

Referências

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