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PARTE 1 – DEMOCRACIA E COMUNICAÇÃO

3.2 Ética e política democrática

O que está em jogo é um movimento que vai de encontro ao privatismo de uma sociedade despolitizada. Uma comunidade política deve ser uma comunidade ética culturalmente integrada: são essas características que garantem unidade social e solidariedade e possibilitam o autogoverno. Seria impossível, segundo essa perspectiva, a formulação de uma ideia coerente da moral sem uma concepção abrangente do bem como télos, ou seja, não seria concebível uma comunidade política na ausência de um ideal da boa vida comum. Rejeita-se, assim, não apenas a moral universalista desligada do contexto social, cultural e político de uma sociedade, mas também a própria possibilidade de se fundamentar a comunidade política no pluralismo de valores. Nesse sentido, os

deveres perante a coletividade devem ter primazia em relação à concepção moral supostamente neutra, bem como sobre os pontos de vista parciais.

Uma comunidade política 'autêntica' deve apresentar uma forma de práxis comunitária ancorada na tradição moral na qual os indivíduos podem se reencontrar. A narrativa da vida individual de ver parte de uma narrativa de ordem superior. O télos eticamente desejável da vida deriva dessa trindade de práxis, tradição e biografia subjetiva: desejável é um 'valor interno' às práticas sociais (FORST, 2010: 132).

Assim também considera-se que a relação de pertencimento comunitário é inevitavelmente constitutiva das identidades privadas, da qual deriva, ainda, o dever de reconhecer o bem público compartilhado, que identifica e reforça a identidade coletiva. Bellah (1991), em uma versão da doutrina do interesse bem compreendido44, sustenta que, mesmo em uma sociedade que conviva com o pluralismo de valores razoáveis, faz-se necessário o reconhecimento de um “pluralismo aprofundado” a que os cidadão possam recorrer no intuito de formular o bem comum como parte de seu próprio bem.

A identificação dos cidadãos com a comunidade, que em alguns casos se traduziu como a virtude do patriotismo, se dá na medida em que a coletividade incorpora certos valores necessários à sua autocompreensão, bem como normas com as quais os cidadãos são capazes de se identificar em “avaliações fortes” – portanto, a comunidade se constitui na inclusão de valores particulares e universais (TAYLOR, 1979). Seria inconcebível, dessa maneira, a existência de liberdades formais na ausência de uma identificação dos indivíduos com a coletividade, pois este é o fato gerador da solidariedade indispensável à crença na promoção do bem comum como a virtude por excelência da cidadania democrática. Poderíamos identificar dois critérios essenciais para que haja uma identificação forte no sentido pensado pela tese da suficiência como condição necessária à autodeterminação pública. A primeira delas seria o reconhecimento das formas participativas da política para a determinação do próprio sentido da comunidade. A segunda, menos “discursiva”, seria um senso forte de comunalidade que se sustenta e se mantém comum na participação45.

A identificação do primeiro tipo se realiza primordialmente mediante o exercício das liberdades políticas, dentre as quais a comunicação pública entre iguais encontra lugar privilegiado. No segundo caso, porém, parece mais difícil encontrar uma nação que compartilhe uma concepção abrangente do bem. Nesse sentido, a esfera pública deve ser revitalizada ao ponto de possibilitar a ascensão de uma cidadania capaz de se apropriar, mediante práticas descentralizadas de

44 Ver Tocqueville (2004), Livro II, segunda parte.

45 O exemplo sugerido por Taylor (2000: 220) seria o Canadá. Todavia, o autor encontra apenas a primeira dessas

condições no país. A segunda, porém, uma identidade nacional eticamente constituída, não se faz presente no país, que convive com um pluralismo de valores éticos, etnias e preferências.

autogoverno, do poder estatal burocraticamente alienado. A separação entre Estado e sociedade pode ser superada uma vez que a formação democrática da vontade tem o papel de constituir a sociedade como uma comunidade política. Em um contexto de práticas argumentativas descentralizadas, o autogoverno democrático se assenta em unidades políticas mais nitidamente constituídas.

Os domínios da linguagem são obviamente fundamentais para o reconhecimento simbólico das identidades coletivas e, portanto, da própria comunidade política. No entanto, muito embora a participação no processo comunicativo seja essencial à solidariedade democrática, ela guarda a sua origem em um fundamento último, pré-político, que garante um objetivo comum subjacente à ação. Assim, apenas na possibilidade da reencarnação do momento fundacional e na perspectiva do renascimento mantêm-se acesas as brasas democráticas (HABERMAS, 1995b). A participação, nesse sentido, não cria o propósito comum; antes, a sua realização pressupõe a existência de tal consenso. Contra o que se considera uma abstração típica do liberalismo clássico em relação aos contextos sociais concretos, essa literatura destaca o enraizamento das concepções de bem nas autocompreensões e nas tradições constitutivas da comunidade autogovernante. A comunidade, com seus valores e práticas amadurecidos historicamente, dá origem a um horizonte valorativo que é a própria urdidura das identidades de seus membros. Assim, a integração política se configura como a afirmação de um uno social que se ampara nos valores ético-culturais compartilhados. Dessa maneira, as questões concernentes aos princípios do autogoverno só podem ser colocadas nos limites desse quadro.

O liberalismo, nesse contexto, eliminaria a própria comunidade democrática ao deixar de lado os pressupostos político-culturais essenciais à mesma. A tese da contribuição, portanto, destrói as bases de sua própria teorização quando pressupõe um sujeito livre dos deveres sociais, que acaba por tornar-se impotente frente às relações de dominação, deixando a preocupação com o bem comum ou a defesa de suas convicções ao encargo de um potencial despotismo político-burocrático. Foi precisamente o ponto que Tocqueville (2004) destacou em relação aos perigos da democracia: quando os cidadãos passam a compreender a si mesmos unicamente como “pessoas de direito” e negligenciam as suas obrigações políticas – tomadas equivocadamente como o oposto dos direitos liberais subjetivos –, põem em risco as próprias liberdades negativas. Seria uma ilusão imaginar a permanência destas últimas na ausência das liberdades políticas; estas, por sua vez, não se realizam sem o cidadão democrático e virtuoso (FORST, 2010: 114-7).

pela tradição liberal para erguer uma barreira a proteger o eu individual contra a ameaça coletivista do Estado, a tese da suficiência muda o foco e indaga sobre os critérios necessários à realização de uma comunidade democrática, que considera condição de possibilidade para o exercício dos direitos individuais abstratos. A resposta dessa perspectiva se sustenta na ideia de uma comunalidade forte, uma vez que considera que uma associação que reconhece tais direitos, mas consiste de várias indivíduos separados entre si, sucumbe a uma espécie de despotismo administrativo (TOCQUEVILLE, 2004). Tornar-se-ia uma impossibilidade prática o surgimento, em uma comunidade centrada no indivíduo, das virtudes políticas capazes de se contrapor e frear o risco de um individualismo burocrático. Faltaria, em tal circunstância, o ethos democrático constituído a partir da reunião dos cidadãos em uma forma de comunicação orientada ao bem comum. Mesmo a igualdade política só faz sentido quando remete à pertença de todos a um mundo compartilhado intersubjetivamente. Por igualdade, não se entende que todos sejam iguais perante a lei, nem tampouco que a lei seja igual para todos; antes, a igualdade deve ser compreendida como a concessão dos mesmos direitos e condições efetivas de realizar as atividades tipicamente humanas, i.e. as ações políticas – e, por desfrutar de tais condições em um contexto comunitário de normas compartilhadas, os cidadãos de fato exercem o direito à liberdade como ação (ARENDT, 2007).

Contudo, a perspectiva em análise parece carregar a tinta em uma concepção ética de cidadania e de comunidade política – no intuito de evitar o paradigma liberal da pessoa de direito –, que bloqueia o caráter reflexivo das identidades individuais e comunitárias. A comunidade política, da forma como interpreto este ideal, para afirmar a sua história, deve contar com a possibilidade perene de refletir sobre ela, de questioná-la em todos os seus sentidos. Do contrário, a ideia de comunidade se torna um dogma (no pior sentido da palavra) que pode, por um lado, perpetuar uma tendência de exclusão ou, por outro, tornar-se inócua para as novas gerações. Seguindo a interpretação de Forst, considero que “a representação de uma identidade ética comum não deixa espaço para a necessidade de fluidificação da compreensão daquilo que pertence ou não à identidade comum” (2010: 137). No entanto, se a sociedade pluralista não se resolve nem no modelo liberal de separação entre identidades éticas e políticas, nem na concepção comunitarista que supõe e necessidade de identidade ética unitária, torna-se premente a busca por uma forma de integração que promova o intercâmbio entre o particular e o universal.