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PARTE 1 – DEMOCRACIA E COMUNICAÇÃO

2.8 Discussão pública e desigualdade política

Uma das razões pelas quais Mill (2000) defendeu de maneira tão enfática a importância da discussão para a vida pública tem a ver justamente com a possibilidade que ela cria para que dissidentes exponham convenções erradas e preconceito ortodoxos. Contudo, alega a versão constribuicionista, a dinâmica argumentativa das democracias contemporâneas afasta-se cada vez mais do ideal de discurso público projetado por Mill, especialmente devido ao grau em que este processo está maculado pela influência do poder econômico (SHAPIRO, 2003: 225-6).

O argumento central, nesse caso, é o de que a deliberação pode levar as pessoas a sustentarem crenças que não são em seu melhor interesse. Segundo Przeworski, “a deliberação pode levar à 'dominação ideológica', no sentido de Gramsci” (1998: 140)38. Se as pessoas são capazes de escolher entre políticas públicas ou planos de governo oferecidos pelos partidos, elas devem ter crenças sobre as consequências de seu voto para as alternativas políticas que preferem. Essas crenças seriam de dois tipos: (a) crenças técnicas ou modelos de relação causal; e (b) crenças de equilíbrio, que se referem às crenças a respeito das crenças das outras pessoas sobre essa relação causal. O conjunto dessas duas formas de crença dá forma ao que, em linguagem gramsciana, se denomina ideologia (Ibidem: 143).

A ideologia, nesse sentido, se configura como um mapa cognitivo a orientar as decisões das pessoas em sua relação com as duas formas de crença. As preferências que servem de base para a tomada de decisões políticas são, portanto, inexoravelmente endógenas ao processo político, elas são formadas e adaptadas por uma discussão sobre razões. Estas razões, todavia, justificam a escolha de determinado curso de ação em detrimento de outros, tenham os objetivos que lhe subjazem resultado de uma argumentação pública ou não. Em um contexto de pluralismo valorativo, é preciso considerar criticamente os argumentos apresentados na discussão pública, tendo em conta, entre outras coisas, os interesses dos emissores. Grande parte das teorias que se voltam à apresentação e à troca de razões para justificar decisões políticas não cogitam que a qualidade cognitiva do procedimento democrático possa ser afetada pelo pluralismo de valores. Nenhuma dessas abordagens prevê a possibilidade de que uma pessoa que professe uma crença técnica correta possa ser persuadida a defender uma crença falsa por meio da comunicação (Ibidem: 144-5).

A informação produzida enquanto a sociedade considera a sua auto-organização exerce, portanto, influência direta sobre as crenças dos cidadãos sobre o que é melhor para eles e para os demais

membros da sociedade. Tais crenças tipicamente dependem de modelos causais que nos orientam na avaliação dos efeitos de determinadas decisões sobre o bem-estar da sociedade e seus membros. Para Stokes (1998), a comunicação pública que influencia as nossas crenças causais é tão ou mais importante do que a deliberação acerca de questões normativas, sendo talvez ainda mais sujeita a manipulação.

A comunicação pública, portanto, pode induzir as pessoas a sustentar crenças que são, a um só tempo, pouco acuradas e mais favoráveis aos interesses dos que dispõem de recursos que lhes permitam ocupar a posição de líderes de opinião. Embora este não seja um ponto incomum, ele tampouco pode ser considerado banal, devendo ser levado em conta no debate sobre a relação entre comunicação e democracia. Da mesma forma, é fundamental considerar a capacidade da comunicação de influenciar a forma como os indivíduos veem a si mesmos. Nas palavras de Stokes, “raramente estas discussões [que tomam a comunicação como índice fundamental à garantia do autogoverno] consideram o potencial da deliberação de reduzir o senso de um sujeito sobre as suas próprias capacidades, ou impingir neles um senso de si em desacordo com as suas reais necessidades e interesses” (STOKES, 1998: 123-4)39.

Ao defender a necessidade da comunicação pública, os autores da vertente mais radical da democracia deliberativa parecem confundir dois argumentos: uma coisa é dizer que não podemos justificar as nossas decisões apelando aos interesses particulares, pois eles não têm a qualidade persuasiva necessária; outra, distinta, é sustentar que a descoberta de que não posso oferecer razões persuasivas para uma proposta me levará a modificar as minhas preferências. As pessoas comumente chegam à conclusão de que os seus argumentos não são convincentes, ouvem os argumentos contrários de outras pessoas, e mesmo assim permanecem com as suas preferências iniciais (PRZEWORSKI, 1998).

Seria possível afirmar que as crenças individuais que representam incentivos mais fortes ao comportamento eleitoral são endógenas à estrutura comunicativa da sociedade, que é condicionada por desigualdades em relação à distribuição de renda, às instituições políticas e aos mecanismos que controlam o acesso do dinheiro a essas instituições. Se tais condições fossem distintas, as crenças com base nas quais as pessoas agem politicamente também se modificariam. Mas crenças endógenas não podem ser usadas para fazer avaliações normativas de estados do mundo contrafactuais. Nesse sentido, Przeworski sustenta a descrença na capacidade da deliberação de induzir legitimidade: “a deliberação coordena crenças e prende os indivíduos a equilíbrios. Mas

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No original: “rarely do these discussions consider the potential of deliberation to reduce the subject's sense of his or her capabilities or to foist on them a sense of self at odds with his or her real needs and interests”

estes equilíbrios têm consequências distributivas...Os indivíduos são trancados naquele equilíbrio, incapazes de desviar” (1998: 155)40.

Há exemplos que se afastam ainda mais do modelo downsiano tradicional de preferências autônomas e da perspectiva milliana de deliberação como caminho à descoberta da “verdade”. A comunicação pública pode transformar mais do que preferências acerca de partidos políticos ou políticas públicas. Em alguns casos, ela também pode mudar identidades. Os partidos políticos se esforçam por influenciar as preferências de acordo com a sua ideologia política, os Estados o fazem no intuito de manter o seu domínio e a sua legitimidade. Decerto que as identidades são resultado parcial de laços comunitários e autodefinições incompletas, mas não podemos descartar a sua face pública, maleável às representações sociais nas quais estão imersos os indivíduos (Ibidem).

Algumas identidades manufaturadas podem até ser úteis a algum propósito. Todavia, certas “pseudo-identidades” agem contra os interesses daqueles que se identificam com as mesmas. Consideremos, por exemplo, narrativas abstratas sobre determinadas categorias de indivíduos, construídas com propósitos políticos, que acabam sendo adotadas por essas mesmas pessoas como suas – muito embora as suas próprias experiências de vida pudessem levá-los a pensar de forma distinta. Tais narrativas se configuram como concepções do mundo, no sentido que Gramsci atribuiu a este termo ao se referir às nossas crenças sobre o funcionamento da sociedade, sobre a nossa própria capacidade de influenciar os rumos das decisões e sobre as dos demais membros da associação de fazê-lo (STOKES, 1998: 133-5)41.