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A formas de organização dos sistemas mediáticos

PARTE II – O DEBATE PÚBLICO NOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO

6.4 A formas de organização dos sistemas mediáticos

O que cotidianamente denominamos, um tanto vagamente, de “comunicação de mediada” corresponde a uma série de fenômenos que se desenvolveram paulatinamente mediante a emergência de “instituições” mistas, de natureza, a um só tempo, política, econômica, cultural e social, que buscaram explorar oportunidades no setor responsável por produzir e reproduzir formas simbólicas140, e para transmitir conteúdos para uma audiência diversa sob a expectativa de receber algum tipo de remuneração, especialmente financeira (THOMPSON, 1998: 31).

Boa parte das informações a que estamos expostos sobre eventos que ocorrem mundo afora, bem como as linhas interpretativas sobre eles, chegam até nós através dos meios de comunicação de massa. Mas não apenas isso, parte da literatura sustenta que os media estão em geral relacionados também à nossa exposição a pontos de vista distintos dos nossos. Dado o crescente isolamento residencial baseado em critérios ligados à partilha de estilos de vida comuns141, tem se tornado premente uma preocupação com a comunicação entre sujeitos que professam preferências políticas opostas. Cada vez mais, recai sob a responsabilidade dos meios de comunicação estabelecer alguma forma de diálogo entre visões de mundo divergentes. Calhoun, sustenta que “nas sociedades modernas, a maior parte das informações que temos sobre pessoas diferentes de nós vem não por meio de relações diretas, mesmo as relações casuais que se formam constantemente nas ruas e no comércio. Antes, essas informações vêm dos media impressos e eletrônicos” (1988: 225)142.

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Tornando-os, assim, bens com valor de produção, valor de troca etc.

141 Fenômeno que ficou conhecido na literatura como “balcanização residencial” (MUTZ & MARTIN, 2001: 97). 142 No original: “in modern societies, most of the information we have about people different from ourselves comes not

through any direct relationships, even the casual ones formed constantly in urban streets and shops. Rather it comes from printed and electronic media”.

Todavia, muito do que se tem afirmado sobre os meios de comunicação a partir de pesquisas empíricas que se dedicam a avaliar a estrutura e as práticas dos meios ao redor do mundo sugere que eles não atendem a essa expectativa. Antes, o que se costuma indicar é que a estrutura dos meios e as práticas de enquadramento dos eventos tendem a tornar a opinião pública mais homogênea, promovendo certos valores e princípios em detrimento de uma visão mais ampla e complexa dos fenômenos sociais (MORAES, 2013).

6.4.1 Comparando os sistemas mediáticos

Por um lado, poder-se-ia argumentar que a tendência geral no jornalismo, relativamente à comunicação interpessoal, é a de permitir maior diversidade de pontos de vista. Uma das orientações mais convencionais da prática jornalística é a de exigir, via de regra, a exposição de pontos de vista distintos sobre um mesmo tema. É comum que os repórteres ilustrem as suas narrativas fazendo referência a indivíduos ou grupos que expressam visões políticas conflitantes. Senão por motivos estritamente vinculados às boas práticas jornalísticas, como uma forma de se atrair um público mais amplo, que não poderá rechaçar um veículo motivados por suas preferências políticas. A arte e o entretenimento são ainda mais livres para refletir a respeito da estrutura de preferências presente em uma sociedade, de modo a fomentar o debate sobre questões espinhosas, como o preconceito racial e outras formas de discriminação. Além disso, a exposição seletiva pode ser dificultada quando boa parte dos media se esforça para ampliar e manter uma audiência composta por leitores e espectadores proveniente de diversos campos ideológicos e políticos (MUTZ & MARTIN, 2001: 98-9).

Por outro lado, contudo, é preciso admitir que essa não é uma característica de todo e qualquer veículo, nem tampouco reflete a situação do sistema mediático em muitas sociedades democráticas. Hallin e Mancini (2004) estudaram, em uma perspectiva comparada, o sistema formado pelos meios de comunicação em diversos países da Europa ocidental. Nessa avaliação empírica, os autores lançaram luz sobre quatro variáveis inter-relacionadas, quais sejam: (a) o desenvolvimento do mercado de comunicação, com ênfase sobre o desenvolvimento da imprensa de grande circulação; (b) o paralelismo político, ou seja, o grau e a natureza em que o sistema reflete as divisões políticas da sociedade (por exemplo, os partidos políticos e os grupos sociais mais revelantes); (c) o estágio de desenvolvimento do jornalismo profissional; e, por fim, (d) a natureza e o grau de intervenção do Estado (Ibidem: 21)143.

A partir dos dados coletados, os autores sugerem a distinção entre três modelos de organização dos sistemas mediáticos, quais sejam: (1) liberal, caracterizado pela relativa dominância de mecanismos de mercado e dos media comerciais; com pouca atuação do Estado, favorece a diversidade interna dos veículos, que buscam a audiência a partir de um jornalismo catch all; (2) democrático- corporativista, que se estrutura na coexistência histórica de meios comerciais e meios ligados a organizações sociais e grupos políticos, e por um papel relativamente ativo, embora legalmente limitado, do Estado; nesse modelo coexistem a pluralidade interna e externa, a depender da natureza do canal de comunicação; e (3) plural-polarizado, no qual se observa a integração orgânica dos meios de comunicação com os partidos políticos mais tradicionais, o fraco desenvolvimento histórico do mercado mediático e um papel forte do Estado na regulação do sistema, em geral favorecendo os partidos políticos ora ocupando o governo; nesse modelo, a diversidade externa tende a refletir quase de forma especular a polarização das principais forças políticas da sociedade (HALLIN; MANCINI, 2004).

6.4.2 Breve análise dos modelos de organização do sistema mediático

Nesse sentido, poder-se-ia argumentar que o modelo liberal, cujo sistema mais próximo do “tipo ideal” seria o estadunidense, favorece a exposição a pontos de vista mais dispersos no espectro político-ideológico. Ao se ver forçado a buscar uma audiência entre pessoas com preferências distintas, os meios de comunicação acabam por institucionalizar a prática de cobrir de forma, tanto quanto possível, imparcial e equilibrada, de modo a parecer palatável a sujeitos com preferências e interesses distintos e, por vezes, conflitantes. Ademais, o próprio ethos predominante no jornalismo “liberal” pressupõe a redução da influência político-partidária sobre os veículos de comunicação e, além da adoção de certo modus operandi que atenua a linha que dividia politicamente os media144145. Mesmo que os media estadunidenses não se caracterizem por exibir uma vasta gama de opiniões e

padrão de relações entre interesses políticos e econômicos, e o desenvolvimento da sociedade civil para compreender a natureza e o caráter da estrutura do sistema mediático. No entanto, eles não assumem com tanta pressa a ideia de que os

media sejam simplesmente um reflexo dessas estruturas; os meios de comunicação de massa são elementos importantes

para a formação e a transformação das características simbólicas e políticas da sociedade (HALLIN; MANCINI, 2004).

144 O ideal liberal foi largamente difundido ao redor do mundo e influenciou mudanças em diversas regiões. Nos

sistemas que historicamente se organizavam a partir de uma dinâmica corporativa, houve uma ampliação do espaço de meios comerciais e do ethos da comunicação social profissionalizada (HALLIN; MANCINI, 2004: 13).

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Essa avaliação teria de ser amplamente revista no contexto atual. Dez anos depois da publicação do estudo de Hallin e Mancini, o panorama nos EUA parece ter se transformado no que diz respeito à neutralidade dos principais meios de comunicação. Com a difusão dos blogs de opinião, mas também devido ao que parece um recrudescimento da

polarização entre democratas e republicanos, a audiência migrou em larga escala para canais como Fox News e MSNBC, cuja posição política é mais bem definida do que um canal que busca uma posição mais imparcial, como a tradicional rede de notícias CNN.

argumentos, Mutz e Martin (2001) sugerem que esta gama é mais ampla do que a que os indivíduos estão habitualmente expostos em conversas interpessoais.

Compared to most interpersonal networks, they are hotbeds of diversity, not because media is doing such an exemplary job pursuing diversity, but because individuals are doing such a poor one, in part because of the desire to avoid conflict in interpersonal situations. The media send multiple conflicting messages, and in doing so they advance an important aspect of the democratic process (MUTZ; MARTIN 2001: 110).

Os autores sustentam, portanto, que o fato de os meios de comunicação de massa exporem os cidadãos a pontos de vista distintos dos seus próprios contribui para a formação da opinião pública e, especialmente, para o reconhecimento da diversidade de concepções do bem e a legitimidade das decisões coletivas em uma sociedade plural. Segundo essa perspectiva, potencial democrático dos

media estaria, hoje, ameaçado, especialmente devido a dois fatores: o primeiro tem a ver com a

tendência à proliferação e à popularização do acesso a canais especializados em detrimento dos meios catch all; o segundo, mais propriamente com o desenvolvimento de fontes noticiosas na internet, um meio que permite e encoraja a exposição seletiva, oferecendo incentivos para o surgimento de meios menos preocupados com a diversidade de pontos de vista do que com a defesa de determinados valores e interesses, além de um compromisso menor com a apuração dos eventos e a fidelidade da narrativa (Ibidem: 111).

Em uma abordagem como a proposta pela tese da necessidade, todavia, o sistema comunicativo deve ser avaliado como um todo – mesmo que cada parte possa ser julgada separadamente segundo critérios particulares. O sistema, de forma ampla, apresenta várias instituições que realizam as funções de pesos e contrapesos, de modo que os desequilíbrios de algumas partes são contrabalançados pela operação das demais. Nessa perspectiva, os media “partidários” podem ter, tomados isoladamente, pouca qualidade deliberativa; no entanto, em conjunto com outros meios com características semelhantes, podem dar forma a um ambiente comunicativo rico em informações e perspectivas plurais, em um sentido tornando o sistema mais deliberativo do que se constituído apenas por canais de televisão e pela imprensa escrita imparciais (MANSBRIDGE et al., 2012: 5-7)146.

Na proposta “sistêmica”, os meios de comunicação são responsáveis por diversas tarefas que envolvem a mediação do diálogo entre as diversas arenas do sistema. Parte majoritária dos cidadãos nas democracias modernas têm nos diversos meios de comunicação a sua principal fonte de informação sobre os temas de interesse público. A crescente diversidade de meios torna

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Ao mesmo tempo, seria possível afirmar que a partidarização, se estendida para outras partes do sistema comunicativo, pode ser prejudicial à qualidade da discussão.

sobremaneira importante a discussão sobre as suas funções em um sistema democrático. Nesse contexto, ganha cada vez mais relevância a dinâmica que organiza a visibilidade de determinadas questões que, ao ascenderem ao espaço público, geram a movimentação de pontos de vista diferenciados, que se enfrentam reflexivamente e contribuem para aprimorar as instituições e sua organização estrutural, assim como as formas de entender e reconhecer as demais concepções em jogo (MARQUES, 2009: 22-5).

Os profissionais que atuam nos meios, ao lado dos demais cidadãos que vêm ganhando preponderância cada vez maior através das novas oportunidades abertas pelo advento das redes de debate nos suportes digitais, ora se colocam no papel de vigilantes dos atos realizados pelos atores políticos institucionalizados, ora se afirmam como representantes dos cidadãos, em geral, e de determinados grupos, em particular, noutras ainda se supõem tradutores de conhecimento, educadores, defensores de causas etc. Os media que definem uma linha menos imparcial, sem deixar de lado o compromisso com outros princípios do jornalismo, se situam dentro desse emaranhado de estruturas de mediação; eles alimentam a discussão pública organizada em linhas conflitivas – o que me parece natural em uma sociedade marcada pelo fato do pluralismo – na medida em que contribuem para o fluxo de argumentos e opiniões que é o sangue vital de um sistema comunicativo democrático. Por outro lado, é claro, o fortalecimento do partidarismo mediático provoca preocupações acerca da qualidade e até da veracidade das informações publicizadas. Decerto que a desconsideração imprudente em relação à confiabilidade dos fatos que ganham o espaço público mediático pode se apresentar como uma patologia. Mas o caráter partidário das notícias e principalmente do enquadramento e crítica das mesmas não leva necessariamente à desinformação. Os meios de comunicação que atuam na defesa de causas ou na promoção de valores de toda sorte, tomados no sistema mais amplos, podem conter a própria solução para tal problema, pois fortalecem a transparência e o sistema de pesos e contrapesos ao encorajar a publicidade de críticas às diversas partes do sistema político (MANSBRIDGE et al., 2012: 20-2).