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PARTE 1 – DEMOCRACIA E COMUNICAÇÃO

3.3 Participação e democracia local

suficiência. Embora consonante com alguns pressupostos da teoria clássica da antiga pólis grega, a tese da suficiência não é, definitivamente, idêntica a esta. Enquanto na República de Platão e em outros textos fundantes da filosofia política clássica expressava-se, vez por outra, um desprezo pela política, ou a convicção de que a prática política não pode ser mais do que um mal necessário – dado o fato inevitável do convívio entre os homens (ARENDT, 2008) –, para Barber a política é uma “forma de viver” (em oposição a uma “forma de vida”), mais precisamente uma forma em que os homens, com interesses distintos mas possivelmente sobreponíveis, podem conviver entre si sem que nenhum deles exerça domínio sobre os demais. A competição de interesses privados e o conflito que eventualmente surge dessa competição não têm nessa ideia forte de democracia uma forma de resolução, mas supõem uma maneira de criar uma linguagem pública capaz de reformular a defesa desses interesses em termos susceptíveis de serem acomodados publicamente (BARBER, 1984: 119).

É possível entender o mundo político como circunscrito por condições que tornam obrigatória a ação pública, por extensão uma escolha pública razoável, em um contexto cujo conflito não pode ser resolvido em campo privado ou independente do julgamento da comunidade autogovernante. Dessa forma, é preciso agir e tomar decisões que afetam a todos em uma coletividade, ainda que haja discordância tanto em relação aos fins quanto em relação aos meios, e em que não há um campo de julgamento independente. Nessa formulação destaca-se a ideia de que mesmo a inação se torna uma força de decisão e tem, portanto, consequências politicas. Na política, as decisões não deverão ser arbitrárias ou apenas autointeressadas, mas não contam com o guia de uma verdade imparcial. Segundo o Barber, se existe alguma verdade na política é aquela derivada da própria experiência política: “a política é o que os homens fazem quando a metafísica falha; não é a metafísica reificada como uma Constituição” (1984: 128-9)46. Haveria, de acordo com Barber, seis conceitos-chave sobre os quais está assentada a definição de política: ação, publicidade, necessidade, escolha, razoabilidade e ausência de um terreno independente (Ibidem).

Barber nega, portanto, a base hegeliana segundo a qual uma comunidade política não pode prescindir de uma base ética comum. De inspiração rousseauniana, essa tese sustenta que o fundamental é que os cidadãos estejam unidos por um prática comum. Qualquer sistema político emerge, nesse aspecto, de uma resposta tentativa aos seis componentes da condição política mencionados acima. A democracia poderia ser, assim, formalmente descrita como a política na forma participativa

where conflict is resolved in the absence of an independent ground through a participatory process of ongoing, proximate self-legislation and the creation of a political community capable of transforming dependent, private individuals into free citizens and partial and private interests into public goods” (Ibidem: 131-2).

Segundo essa ideia, a política é algo feito pelos cidadãos e não algo feito para eles; a sua principal virtude é a atividade, sendo a deliberação, a decisão e o trabalho comuns a sua marca distintiva. Outra característica essencial dessa teoria é a ideia de que a criação de uma comunidade política ocorre concomitantemente à criação de bens e outros fins públicos. Teóricos como Bejamin Barber conferem centralidade à agência e à responsabilização, pois as reconhecem como centrais à ação dos cidadãos em face aos conflitos inerentes às sociedades. Ao mesmo tempo, porém, em uma visão de inspiração tocquevilleana, rejeitam a conclusão liberal de que o conflito é intratável e só pode ser passível de tolerância ou adjudicação. Com isso, desenvolvem uma forma de política capaz de tornar o conflito uma forma de cooperação através da participação dos cidadãos, da deliberação e da educação cívica. Se a política nessa teoria se inicia no conflito, ela não termina com uma mera acomodação do mesmo, mas propõe uma ação transformadora (BARBER, 1984: 134-5).

A legitimidade de um valor é, portanto, função de seu caráter público, de como é refinado e modificado quando confrontado com o público e as normas públicas previamente definidas e legitimadas no processo político. Assim, as preferências e interesses ganham legitimidade apenas através da deliberação e do julgamento públicos, legitimidade esta que emerge da transformação que ocorre no processo ao qual estão sujeitos. Nessa interpretação, a legitimação política é compreendida em termos de uma autocompreensão ética da coletividade. Ao contrário da barganha em que se define entre opções previamente definidas, na política de transformação os atores políticos são levados a modificar e ampliar as suas opções ao entrar em contato com novas opiniões e pontos de vista.

Mill não foi o primeiro a chamar atenção também para a importância dos arranjos institucionais em nível local, nos quais os indivíduos se preparam para participar das instituições em mais larga escala. O autor avança, além do governo local, na hipótese dos efeitos educativos da participação ao abranger uma área da vida social que até então permanecia intocada pela teoria participativa: a das indústrias. A participação nessas instâncias também poderia, segundo ele, servir de aprendizado para a participação na comunidade mais geral. Embora rejeitasse o caráter centralista das teorias socialistas, Mill ressaltava o potencial de aprendizado contido nos esquemas socialistas que dependem de organização voluntária em pequenas comunidades. Essas formas de participação teriam em seu pensamento um efeito de democratização das relações de autoridade (PATEMAN, 1992: 50-1).

Essa forma de “democracia forte” exige uma cidadania ativa, que participe tanto ao nível local quanto nacional, que se engaje na discussão pública e nas decisões – uma forma de autogoverno que dispensa, em boa medida, as instâncias de mediação. Assim, a legitimidade das leis não pode ser desvinculada do processo de sua gênese: há uma conexão interna entre as práticas de autodeterminação pública e o império das leis. Os direitos são, em última instância, determinações da prática política prevalecente. Essa posição, que pode ser encontrada nos trabalhos de Hannah Arendt (2003; 2007; 2008) e Charles Taylor (1979; 200), guarda sua origem no pensamento moral grego, que se funda em duas premissas básicas: (a)a de que os homens são seres morais com certos propósitos caracteristicamente humanos; e (b) a de que o homem é um animal naturale, sociale et

politicum, sendo os seus propósitos essencialmente sociais. De acordo com essa ideia, os homens só

são genuinamente livres quando engajados naquelas atividades que conduzem ao florescimento humano (eudaimonia) (SKINNER, 1986).