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PARTE II – O DEBATE PÚBLICO NOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO

6.6 O viés na comunicação mediada

Ao identificar determinados vieses na construção de imagens sociais pelos media – que podem significar desde uma representação imprecisa de certas posições quanto a exclusão, voluntária ou não, de algumas vozes do espaço público –, nota-se via de regra uma preocupação com as suas consequências para a forma como nos vemos a nós mesmos e a forma como os demais nos consideram, assim como para os resultados do processo político e das práticas democráticas. Essa noção, portanto, não está relacionada apenas com as disputas partidárias no sistema político, mas se aplica igualmente ao conflito entre sistemas de valores, à representação de gênero e etnia, e às prioridades estabelecidas no agendamento de temas e em seu enquadramento. Ela se estende da cobertura jornalística às demais representações propagadas, nos best-sellers, em telenovelas, músicas e filmes.

A inclinação na comunicação mediada pode se manifestar de diversas maneiras, não sendo necessariamente relacionada com a busca deliberada de favorecimento de determinado sistema de valores, preferências políticas ou interesses econômicos149. Street (2011) sugere a distinção entre quatro tipos de vieses, diferenciados pelo seu lugar em uma matriz bidimensional. Na primeira dimensão, considera-se a medida em que a parcialidade é explícita, se aberta ou oculta; na segunda, a sua intencionalidade, se corresponde a uma intenção deliberada ou se resulta de um processo inconsciente150.

(1) Viés partidário: este caso corresponde a um viés aberto que é fruto de uma escolha deliberada, como ocorre quando uma reportagem ou um editorial sugere claramente o apoio a determinada ideia ou o endosso a uma causa qualquer;

(2) Viés propagandístico: esta forma de viés se identifica com a defesa velada de uma causa a partir de uma escolha deliberada; em exemplo seria uma matéria que se pretende imparcial mas que guarda subjacente o suporte a uma política pública específica (como a liberdade de mercado);

(3) Viés inconsciente: este tipo envolve a escolha relacionada à importância de um tema, isto é, a decisão é explícita mas as suas consequências não são deliberadamente perseguidas, sendo provenientes dos constrangimentos, identificados acima, envolvidos nas rotinas do jornalismo;

(4) Viés ideológico: este, por fim, se caracteriza por não ser nem intencional, nem deliberado; para

149

Como, aliás, é comumente sugerido na literatura. Cf. Baker, 2004; Herman & Chomsky, 1988.

identificá-lo, portanto, é necessário olhar com cuidado para os pressupostos e valores ocultos, e colocar em relevo as normas que influenciam a construção das narrativas (STREET, 2011: 20-2).

Tabela 1: Viés na Comunicação Mediada

Intencional Não-intencional

Deliberado Partidário Inconsciente

Não-deliberado Propaganda Ideológico

O Grupo de Media da Universidade de Glasgow (GUMP – Glasgow University Media Group) realizou uma análise bastante detalhada sobre a cobertura televisiva, abrangendo tópicos tão distintos quanto a representação dos sindicatos, economia e conflitos armados no exterior. Aplicando uma série de ferramentas de pesquisa, tais como a semiótica e a análise de discurso, além de uma observação cautelosa da rotina jornalística, encontraram resultados significativos no que toca à inclinação dos meios de comunicação britânicos. Na análise econômica, a despeito da disponibilidade de diversas linhas explicativas sobre a crise que se abateu sobre a ilha nos anos 1970, houve uma opção clara dos canais por uma abordagem específica, qual seja, a que implicava a ação sindical e o pensamento trabalhista como principais responsáveis. Porém, segundo a avaliação de Street (2011), as inclinações encontradas no estudo se encaixam nos quadrantes 2 e 4 da tabela acima, i.e. não foram explícitas e podem ser consideradas deliberadas apenas na medida em que seguiram as rotinas jornalísticas – os hábitos profissionais e o treinamento, e não a intenção, são, portanto, os principais fatores a contribuir para o desequilíbrio na cobertura (Ibidem: 26-8).

6.7 Conclusão

As possibilidades oferecidas pelo desenvolvimento dos meios de comunicação tornaram a política moderna uma arena mais aberta e acessível aos cidadãos em geral, fazendo com que os discursos produzidos nas diversas arenas da sociedade possam ascender ao espaço público. Mais recentemente, as tecnologias digitais e a convergência entre imprensa, telecomunicações e informática, contribuiu para a dispersão das oportunidades de comunicação e, de certa forma, para a quebra o monopólio do jornalismo profissional e dos grandes meios de comunicação na produção e distribuição de informações, argumentos e pontos de vista. Tornou-se sobremaneira mais implausível, com isso, o exercício secreto do poder, o que intensifica a capacidade de responsabilização e a necessidade de se prestar contas e justificar as decisões vinculantes (MANIN,

1995; THOMPSON, 1998).

A legitimidade democrática exige um processo constante de justificação pública e julgamento por parte dos cidadãos. É a isso que me refiro ao sustentar a necessidade de se oferecerem razões aceitáveis para as decisões coletivas, um elemento central da ideia de igual consideração e respeito tal como a entendo neste trabalho. Nesse sentido, os media, de forma ampla, podem ser vistos como um advento que contribui para a realização das funções comunicativas necessárias à democracia. O espaço público mediático permite a exposição de questões que surgem no mundo da vida – e que ficariam restritas a ele, de outro modo.

Porém, como venho argumentando neste capítulo, as atividades de mediação podem ser vistas sob uma luz menos otimista no que concerne aos incentivos gerados pelo sistema mediático. Assumindo algum grau de subjetividade na construção de narrativas nos canais de mediação tradicionais, característica inevitável de qualquer forma de relato e divulgação de informações e valores, resta compreender a estrutura de incentivos que opera no sistema e de que forma ela afeta as oportunidades de agência política, bem como a realização das autonomias pública e privada dos cidadãos.

Segundo Schattschneider, a definição dos termos e das alternativas em jogo é um instrumento fundamental de poder (1975: 66). Os media exercem uma forma de poder discursivo ao privilegiar determinados formatos e conteúdos na construção da realidade política e social. Uma forma de avaliar o processo de produção do poder discursivo dos meios de comunicação consiste em investigar quais discursos, identidades e preferências ocupam o espaço público mediático. Tendo em vista que os meios oferecem recursos importantes à comunicação de argumentos e visões de mundo, a sua influência também se relaciona à estrutura decisória que define a distribuição de acesso aos arranjos de exposição pública.

Decerto que as entidades mediáticas orientam-se, em boa medida, por uma estrutura de incentivos mercantil, sendo uma das suas principais metas garantir a lucratividade das empresas que lhes controlam. Os mercados não são, decerto, mecanismos adequados para distinguir quais conteúdos são, e quais não são, mais importantes para a democracia. Todavia, esta não é a sua motivação única e o seu comportamento não pode ser reduzido ao “nexo monetário”. Como vimos, os meios de comunicação são organizações complexas, que dispõem de burocracia interna e uma lógica política e profissional específica. A forma como se estruturam tem implicações profundas sobre o conteúdo produzido. Ademais, a atual diversidade de meios e tecnologias torna no mínimo pouco preciso

falar sobre as características dos meios de comunicação em um sentido genérico.

Embora os incentivos econômicos sejam uma característica importante na compreensão do comportamento dos media, eles não esgotam os elementos que concorrem para a estruturação do seu esquema produtivo. Para analisar adequadamente as feições da comunicação mediada, precisamos levar em conta outros fatores estruturais que completam o contexto operacional dos veículos de comunicação. A economia política da comunicação mediada envolve pressões orçamentárias provenientes de fatores comerciais, como a necessidade de atrair anunciantes, mas também os atores políticos e sociais que empregam técnicas de gerenciamento de imagens para moldar a difusão de valores e preferências.

Segundo Schudson (2000), a compreensão das práticas jornalísticas nos meios tradicionais deve considerar as rotinas naturalizadas e os hábitos dessas organizações. É preciso entender, destarte, a dinâmica de inclusão e exclusão da comunicação pública como uma atividade cultural comercialmente mediada. Os meios técnicos e os valores que lhes informam não são fenômenos descontínuos, mas extensões uns dos outros, que interagem e se interpenetram ao longo de todo o processo de mediação. Em qualquer contexto, os elementos de estrutura e agência são parte necessária das explanações plausíveis para as ações comunicativas.

Se venho apresentando questões relacionadas à inclinação dos meios de comunicação e aos incentivos comerciais, isso se deve às dificuldades que a distorção e a economia política destes meios impõem para a distribuição das oportunidades comunicativas, essencial à garantia do valor equitativo das liberdades comunicativas. Quando as representações sociais que ascendem ao espaço público dos meios de comunicação marginalizam indivíduos e grupos, a estrutura básica está lhes negando igual consideração e respeito. As liberdades comunicativas pressupõem o reconhecimento de um valor igual a todos. Negar tal reconhecimento impede que alguns sujeitos sejam participantes plenos do autogoverno coletivo. A democracia, segundo o valor que lhe emprestamos neste trabalho, deve ser compreendida como uma forma de governo na qual o debate público tem papel essencial. Nesse sentido, ela deve ser avaliada em termos da capacidade das instituições da sua estrutura básica, e dos meios de comunicação de massa, em especial, de enriquecer a comunicação pública mediante a disponibilidade informacional e das oportunidades de interação discursiva, assim como pela medida em que as vozes das diversas partes da população possam ser ouvidas (SEN, 2009: 15).

para a ação bem-sucedida ou exitosa na qual J. L. Austin concentrou o seu trabalho sobre atos discursivos” (2007: 175)151. Um sistema comunicativo que ofereça espaço para as diversas vozes da sociedade e cujo controle não seja concentrado em quaisquer atores, sejam estatais ou mercantis, contribui fundamentalmente para a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa, oferece condições para a comunicação entre sujeitos e grupos com interesses e valores distintos e permite, com isso, uma compreensão mais ampla e fundamentada do mundo em que vivemos. Para assegurar igual consideração e respeito por todos é fundamental que a todos sejam atribuídos os direitos e as condições efetivas de exercer as liberdades comunicativas. O acesso aos meios através dos quais o exercício da livre expressão ganha ressonância no espaço público e, portanto efetividade enquanto um exercício da liberdade comunicativa, torna-se, assim, de crucial importância. Nas palavras de Feintuck, “faz pouco sentido falar de 'livre discurso' sem uma referência aos métodos por meio dos quais a comunicação (de massa) ocorre. A capacidade de discursar livremente depende do acesso aos meios de comunicação” (2006: 28-9 – destaque no original)152.

A imprensa, além disso, tem um papel importante na produção e distribuição de informações, elementos centrais para a difusão do conhecimento e para a possibilidade de análise crítica. Um jornalismo investigativo de qualidade funciona como sistema de controle eficaz das ações dos representantes. Ao dar visibilidade a diversas atividades do sistema político, os media facilitam o

accountability eleitoral e incentivam a tomada de decisões responsável por parte dos atores

políticos.

Em um sentido mais profundo, o intercâmbio argumentativo no espaço público mediado pode contribuir para a difusão e a formação fundamentada de valores essenciais à tolerância com a diferença e a promoção da equidade entre etnias, gêneros etc. As preferências e escolhas mutuamente tolerantes são cruciais para que as liberdades e direitos “liberais” contem com o apoio das maiorias e minorias ocasionais, pois a avaliação essencial à ponderação da justiça política e social envolve inevitavelmente a discussão pública (SEN, 2009: 370-1).

Poder-se-ia argumentar, em parte, que os meios tradicionais, com a sua estrutura de incentivos e a orientação ética dos jornalistas não seria capaz, por si só, de contribuir satisfatoriamente para a realização das tarefas que lhes exige uma sociedade democrática. No entanto, segue o argumento, em conjunto com outros modelos de mediação, em especial a partir do desenvolvimento e da

151 No original: “in matters of communication, accessibility is analogous to the requirements for successful or felicitous

action on which J. L. Austin concentrated in his work on speech acts”.

152

No original: “It makes little sense to talk of 'free speech' without reference to the methods by which (mass) communication occurs. The ability to speak freely depends on access to the means of communication”.

expansão do acesso às tecnologias digitais, torna-se possível à comunicação mediada sustentar as bases comunicativas da democracia. Parte da literatura afirma que o impacto desse desenvolvimento tem forjado as condições para uma ordem política mais democrática, na qual os cidadãos terão oportunidades maiores de se engajar em discussões públicas, o que poderia facilitar o exercício de autodeterminação. Por ser relativamente independente do controle mercantil, a rede seria um fórum aberto ao livre intercâmbio de ideias (STREET, 2011: 216). Ademais, a riqueza das dinâmicas discursivas dos espaços de diálogo online facilita o acesso a um pano de fundo mais amplo e permite a interseção entre formas diversas de comunicação, “de modo a construir diálogos que permitam a expressão das diferenças e a reflexão sobre aspectos da identidade e da alteridade” (MARQUES, 2009: 29).

Correndo o risco de subestimar o impacto das novas tecnologias, seria de todo modo razoável afirmar que as redes sociais e outras plataformas semelhantes não virão em qualquer tempo a substituir os meios convencionais, sejam impressos ou eletrônicos. Assim como o rádio suplementou, mas não suplantou, os jornais impressos, e assim como a televisão não concorreu para a falência de outros media, parece plausível afirmar que as novas tecnologias tendem a fomentar e preencher um novo nicho no sistema mediático, formando uma nova ecologia de instituições mediadoras, sem, contudo, excluir os meios estabelecidos (FEINTUCK, 2006).

Além disso, como discuti acima, as novas tecnologias apresentam problemas próprios, como a concentração transnacional e o seu potencial de homogeneização cultural, a fragmentação do discurso e a sua consequente interrupção do diálogo e da tolerância entre concepções distintas e valores em disputa (MORAES, 2013: 23). Embora haja na rede uma dinâmica de negociação entre diferentes perspectivas políticas, não se pode afirmar que a arquitetura discursiva dos espaços

online levarão necessariamente ao diálogo e à comunicação entre linhas divergentes de pensamento.

A dispersão das vozes e pontos de vista nesse espaço pode contribuir para a formação de uma multiplicidade de públicos fragmentados que não discutem entre si e, portanto, não têm potencial comunicativo mais amplo. Para Marques, essa estrutura deliberativa privilegia a diversidade de opiniões entre pessoas que compartilham as mesmas perspectivas, mas não necessariamente o diálogo entre opiniões adversas. As pessoas, assim, tendem apenas a confirmar e reafirmar ideias pré-concebidas ao invés de questionarem as suas suposições tendo em vista os pontos de vista contrários (2009: 22-3).

De qualquer maneira, se cada destes espaços, os meios tradicionais, catch all, os veículos partidários e o espaço virtual, não são capazes de oferecer suporte à comunicação democrática, é

possível que, em conjunto, conformem um sistema que contribua para a exposição de informações e pontos de vista diversificados, para a ampliação do acesso ao espaço público e para um equilíbrio maior das oportunidades comunicativas.

A discussão apresentada nos capítulos V e VI sugerem que a estrutura da comunicação mediada representa vetores distintos em relação à potencialidade dos media de assegurar o valor equitativo das liberdades comunicativas e realizar as funções que a democracia exige da comunicação social. As liberdades comunicativas não são e não podem ser absolutas; elas não são, por assim dizer, naturalmente garantidas. Antes, o que se espera é que estejam limitadas, de forma justificada, por fatores políticos, econômicos e culturais que devem ser contestados em termos de direitos e liberdades.

A garantia de direitos e condições efetivas de exercer as liberdades comunicativas impõe a distribuição equitativa das oportunidades de sustentar publicamente argumentos e pontos de vista distintos; de afirmar uma identidade e defender uma concepção do bem sem por isso sofrer ameaças ou represálias; de oferecer razões e tê-las tomadas em pé de igualdade na definição dos rumos da sociedade; de, por fim, exigir razões aceitáveis para as decisões coletivas. Tais direitos e condições só se realizam mediante a organização do sistema mediático a partir de critérios e parâmetros sustentados em bases valorativas cuja justificação subjacente não pode ser banal. A relevância dos

media para a realização das autonomia pública e privada e para uma distribuição equitativa das

oportunidades de se influenciar as políticas públicas também destaca como as estruturas institucionais e as regras que tangem a discussão pública podem alterar o exercício da razão pública. De acordo com Sen, “a imediatez e a força da argumentação pública dependem não só das crenças e tradições historicamente herdadas, mas também das oportunidades de discussão e interação que as instituições e as práticas proporcionam” (2009: 371). Na próxima parte, vou apresentar três interpretações normativas sobre o princípio da liberdade de expressão, buscando discutir como cada uma delas se materializa em distintos regimes regulatórios para os meios de comunicação. Se bem sucedida, essa discussão mostrará como cada um deles contribui para a realização das funções comunicativas necessárias à democracia.

PARTE III – LIBERDADE DE EXPRESSÃO E O VALOR DAS