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PARTE 1 – DEMOCRACIA E COMUNICAÇÃO

2.5 A democracia e a formação das preferências

Na visão de Sartori (1994a), a comunicação tem um papel muito bem definido na democracia: fornecer informações a partir das quais os cidadãos possam punir ou recompensar os seus

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E aí surge uma questão fundamental, que seria definir quem ou que conjunto de pessoas seria legitimamente responsável por estabelecer esses critérios de justiça. Para uma discussão sobre o tema, ver Francisquini, 2013.

representantes. O núcleo da democracia, assim, é o controle, a influência e a possibilidade de restringir os líderes políticos. Para isso, sugere o autor, é necessário que o demos desfrute de poder pleno e irrestrito de escolhê-los através de eleições regulares e periódicas. O princípio das reações antecipadas garante a associação do voto com a representação, mantendo-os em sintonia. Pois se o líder está sujeito ao afastamento em eleições periódicas, ele deve preocupar-se com a reação dos eleitores a suas decisões. O resultado é, portanto, que os representantes passam a ser controlados por antecipação da reação dos eleitores. Assim, “a democracia de larga escala é um procedimento e/ou mecanismo que (a) gera uma poliarquia aberta cuja competição no mercado eleitoral (b) atribui poder ao povo e (c) estabelece, especificamente, a responsividade dos líderes para com os liderados” (SARTORI, 1994a: 213-14 – grifos no original).

No entanto, se as eleições agregam as escolhas dos cidadãos, cabe também à teoria democrática debruçar-se sobre processo mediante o qual os cidadãos defendem os interesses que desejam promover na sociedade e como se formam as preferências expressas através do sufrágio. Para tanto, é preciso compreender como se dá a gênese da opinião individual em vontade política, processo que as eleições têm a função de registrar. Existem quatro razões por que os governos poderiam representar os interesses dos cidadãos: (1) apenas pessoas com espírito público se apresentam para as posições políticas e se mantêm incorruptíveis enquanto em seus cargos; (2) os cidadãos usam seus votos para escolher os bons candidatos, em um cenário em que estes se distinguem em relação a suas motivações e competência; (3) os cidadãos usam seus votos efetivamente para ameaçar aqueles que se afastam do padrão mínimo de virtude; (4) a separação de poderes estabelece um sistema de freios e contrapesos de modo que, juntos, os poderes acabam agindo nos melhores interesses dos cidadãos (SARTORI, 1994: 31). Embora seja difícil – ou mesmo indesejável – controlar os governos prospectivamente, os cidadãos podem fazê-lo retrospectivamente na medida em que sejam capazes de discernir se e em que grau os governantes estão agindo de acordo com os seus melhores interesses. Contudo, se os eleitores não estão adequadamente informados, o voto retrospectivo não funciona como mecanismo de accountability, pois os cidadãos não têm um conhecimento adequado das condições em que operam os governos e tampouco poderão fazer um julgamento informado sobre os resultados das políticas implementadas em relação aos seus interesses (Ibidem: 37-8).

O sufrágio envolve necessariamente, portanto, uma experiência prévia de formação das opiniões, um momento que não pode ser desconsiderado. Segundo a perspectiva em debate, esse é o momento por excelência da comunicação no processo democrático. Enquanto o direito de escolher os representantes seria uma “garantia mecânica” da democracia política, a garantia mais essencial

seria dada pelas condições em que se formam as opiniões que subsidiam as decisões políticas de cidadãos e governantes. O fundamento de todo governo democrático deve ser a opinião dos governados; dessa maneira, as eleições são um meio para o verdadeiro fim, que é um governo responsivo e accountable perante a opinião pública (Ibidem).

Sartori (1994) apresenta uma compreensão da opinião pública a partir de três processos, respectivamente: (a) disseminação de opiniões no nível das elites; (b) borbulhar de opiniões nas bases do sistema; e (c) identificação com grupos de referência. O modelo de cascata sustenta uma formação de opiniões que parte das elites e sofre reformulações horizontalmente em cada degrau do sistema. Cada nível reinicia uma dialética de opiniões e contra-opiniões que vedaria a qualquer fonte isolada de influência a capacidade de determinar de maneira irresistível o resultado global. Para o autor, dois níveis são de especial importância para as sociedades contemporâneas: os formadores de opinião e os meios de comunicação de massas. Sartori alerta, porém, para os riscos potenciais envolvidos com o processo descendente de formação de opiniões, em especial no que se refere aos media. Por vezes, uma vontade “informada” pode ser uma vontade menos autêntica dos cidadãos, e não o contrário. Quanto mais central forem os meios de comunicação para as informações que recebemos, potencialmente mais vulneráveis estaremos à sua influência/manipulação (Ibidem: 132-3)34.

Até a década de 1920 não havia distinção, do ponto de vista teórico, entre, de um lado, a opinião difundida entre o público e, de outro, a opinião formada de maneira autônoma pelo público. Considerava-se, para os fins do debate acadêmico, que a opinião pública poderia ser aferida por meio da análise dos dados eleitorais ou de pesquisas de opinião que aplicavam técnicas de agregação que simulavam o mecanismo do sufrágio. Após os anos 1930 a literatura se deparou com fenômenos como o do nazismo alemão, em que os consensos populares eram promovidos, heteronomamente, pelo Estado e o seu aparato de comunicação e propaganda. A realidade política, nesse caso, impôs à teoria a necessidade de elaborar tal distinção, tendo como norte uma ideia de “autonomia” da opinião pública. Ao mesmo tempo em que lhe coube incorporar a possibilidade de uma formação inautêntica da vontade dos cidadãos, a teoria democrática pôs-se a delinear estruturas institucionais com vistas a proteger um processo menos enviesado de construção das opiniões. Para Sartori,

as condições que permitem uma opinião pública autônoma podem ser resumidas em dois títulos: (a) um sistema de educação que não seja um sistema de doutrinação; e (b) uma

34 Curiosamente, este argumento pode remeter ao ponto de vista rousseauniano em seu ceticismo quanto à capacidade de

a discussão pública promover decisões mais racionais ou mais bem fundamentadas. Em ambos os casos, sustenta-se a ideia de que a razão autônoma prescinde do reconhecimento da perspectiva alheia.

estrutura global de centros de influência e informação plurais e diversos … A essência do argumento é que uma opinião pública livre deriva de uma estruturação policêntrica dos meios de comunicação e de sua interação competitiva, e é sustentada por elas. Em síntese, a autonomia da opinião pública pressupõe condições semelhantes às condições de mercado (1994: 138 – grifos nossos).

Essa visão sobre o processo de formação da opinião pública se assenta necessariamente sobre uma suposição, que vou chamar de madisoniana, segundo a qual o resultado inevitável da comunicação pública em uma sociedade pluralista, na qual está assegurada a liberdade de associação e a liberdade de imprensa, seria um sistema comunicativo diversificado e autocontrolado pela pressão mutuamente anulada dos grupos em disputa pelo poder. Mas por que importam os processos comunicativos mediados de acordo com as teses da contribuição? Nesse caso, o roteiro não se modifica. A relevância de se estruturar um sistema de livre imprensa repousa no oferecimento de informações adequadas para que os cidadãos formem preferências autônomas, que serão expressas no fórum oportuno. Dada a impossibilidade de proteger os eleitores da exposição ao ambiente informacional promovido pelos meios de comunicação, a forma mais adequada de se garantir a o autogoverno em condições autônomas é constituir um sistema de informação que anule a si mesmo. Isto é, que a participação dos cidadãos como audiência da dinâmica comunicativa se contribua como uma experiência adequada à tomada de decisões a partir das próprias preferências.

Portanto, o que garante a legitimidade de um arranjo político e de suas decisões segue sendo o voto, ainda que se admita a influência da comunicação para a formação de opiniões não distorcidas. A presença ou a ausência de uma forma de comunicação pública que contribua para a construção de preferências autônomas não é o ponto central à legitimidade da ordem política; i.e. a opinião pública, ainda que moldada de maneira livre de forças arbitrárias, não autoriza o governo a governar. O que garante e justifica a autoridade dos governos a tomar decisões vinculantes é o sufrágio. O resultado deste processo é o que configura o equilíbrio contingente que resulta dos ajustamentos espontâneos e automáticos próprios da operação dos mecanismos que asseguram a competição política aberta. Aqui, trata-se efetivamente de um ajuste de interesses, da barganha justa entre grupos de indivíduos que se associam livremente para a defesa de seus valores e preferências frente a outros grupos reunidos no mesmo intuito. A democracia, assim, prescinde da referência a normas e a sua legitimidade é, também, um contexto dependente de contingências que podem a qualquer momento se desfazer (PRZEWORSKI, 2010: 141-2).