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PARTE 1 – DEMOCRACIA E COMUNICAÇÃO

4.4 Os valores públicos e a democracia

A política democrática não consiste tão somente no conflito e na competição que serão decididos através da contagem de votos, ela se configura também como uma arena em que se dá o processo de formação do juízo, dos interesses, das opiniões dos cidadãos sobre os temas que lhes afetam como indivíduos e como uma coletividade. A distinção entre os estágios da barganha e do intercâmbio argumentativo é importante para a política democrática e construiríamos um quadro incompleto

quando apresentássemos a democracia apenas como a expressão de preferências através do voto, deixando em segundo plano a formação dessas preferências (OFFE, 2011: 458-9).

Estou assumindo que as preferências políticas não são dadas ou “naturais”, mas formadas e motivadas por considerações cognitivas e morais. Destarte, ganha importância crucial a configuração do processo comunicativo no qual são estabelecidas as condições para a formação reflexiva das preferências. A formação de preferências e valores, insisto, não é um processo individual ou “intrapessoal” que se dá em alguma espécie de forum internum: a construção e a elaboração dos interesses e das crenças é um processo eminentemente social, no qual as pessoas tomam conhecimento, preferencialmente através do intercâmbio de informações e argumentos, do que os demais consideram mais adequado e justo para a sociedade, e, mediante um processo reflexivo, acabam constituindo as suas próprias preferências (OFFE, 2011). Assim, são elaboradas e reelaboradas as identidades individuais e coletivas, dando norte e sentido à agência política. Nos discursos fragmentados, constituídos de múltiplos narradores e vozes, compõe-se uma linguagem aparentemente caótica, na qual a sociedade mobiliza a sua capacidade de criar sentido, instaurando e reinstaurando as construções sociais da realidade. Nos termos de Dryzek (2004), o sistema deliberativo democrático se configura pela competição de discursos que são gerados nas arenas periféricas e são capazes de ganhar a adesão de parte da sociedade em um dado momento. Os que aderem a um dado discurso são “capazes de reconhecer e processar os estímulos sensoriais em histórias ou relatos coerentes, os quais, por seu turno, podem ser compartilhados de uma maneira intersubjetivamente significativa” (DRYZEK, 2004: 49). Os discursos são centrados em enredos, que envolvem opiniões sobre fatos e valores, e, embora não sejam dotados de agência, gozam da capacidade de subscrever ou não resultados coletivos – o que, do ponto de vista da justificação pública, é fundamental. Essa perspectiva não implica a aceitação e a acomodação em relação à constelação de discursos ora existente. Tal constelação segue indefinidamente aberta a críticas e novas inserções, o que permite expor o grau em que os próprios discursos são permeados de interesses pessoais e parciais, assim como lançar luz sobre a forma como a competição discursiva é manipulada estrategicamente pelo poder político ou financeiro.

Ocupam o espaço público discursos produzidos tanto em instituições e grupos mais fortemente comunicativos, como algumas organizações da sociedade civil e os fóruns participativos institucionalizados, quanto os que são elaborados por métodos basicamente agregativos ou que não estimulam a discussão pública, como as pesquisas de opinião, no primeiro caso, e as expressões perlocucionárias, no segundo64. Não se pode deixar de lado, no entanto, a potencial desigualdade

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Mansbridge et al. (2012) argumentam que as ações comunicativas interessadas realizam um papel fundamental no sistema deliberativo quando sinalizam aos cidadãos a importância de determinadas questões, pois tais discursos

inerente à diferença entre as instituições que elaboram os discursos públicos. Não há, portanto, somente uma desigualdade no que concerne à distribuição de recursos entre os cidadãos, mas também um efeito político da desigualdade de posições de acordo com a arena em que se expressam. Cidadãos e representantes formulam as suas preferências políticas mais imediatas e os seus valores individuais e coletivos, mediante um processo que envolve o desenvolvimento de laços de confiança. As avaliações a respeito das motivações e da competência dos emissores exercem um papel demasiado importante na formação das opiniões públicas para serem desconsideradas. Na medida em que essa iniquidade corresponde a uma distribuição desigual de oportunidades para influenciar a comunicação pública, torna-se necessário compreender a natureza e os resultados potenciais desse fenômeno para o caráter democrático da sociedade. Algumas perspectivas, elaboradas em arenas públicas consideradas – por qualquer motivo – mais confiáveis, passam exercer um papel preponderante na formação das opiniões públicas e da vontade democrática (PARKINSON, 2012)65.

De alguma maneira, esse processo poderá enfraquecer a capacidade de influência das inserções mais intensamente partidárias ou claramente autointeressadas, pois estas são vistas como iminentemente pouco confiáveis. Por outro lado, todavia, ele permite uma hierarquização dos discursos cuja ordem corresponde a crenças pouco fundamentadas, à tradição e a determinados processos não responsivos aos cidadãos. Isso abre espaço para o predomínio, ainda, de motivações não compromissadas ou contrárias à igualdade, o que contribui para consolidar um contexto opressivo a certas identidades, para não dizer abertamente preconceituoso em relação às minorias.

Se a democracia se sustenta no grau em que o sistema político inclui equitativamente os diversos pontos de vista e o sistema comunicativo age em sentido oposto, há uma objeção de princípio a esse sistema. Na concepção contribucionista, tendo em vista essa potencialidade, é preciso descartar a comunicação pública como componente à garantia de legitimidade do arranjo político66. Parece-me que esse movimento corresponde ao que metaforicamente dizemos de “jogar fora o bebê com a água do banho”. Ora, a comunicação pública, como procurei demonstrar nos capítulos anteriores, é um elemento inevitável da ordem democrática67. Ela é o fermento e também a válvula de escape do

incrementam o conjuntos de pontos de vista disponíveis na esfera pública.

65 Dentre essas instituições por certo figura com destaque o sistema formado pelos meios de comunicação de massa. Em

certa medida, a própria construção do contexto social está inextricavelmente relacionado ao que ocupa o espaço pública mediático. Na parte 2, vou tratar deste problema de forma específica.

66 Przeworski (1998) particularmente aborda o problema da manipulação ideológica em contextos comunicativos

marcados pelo predomínio de oportunidades desiguais de expressão. O argumento central de Przeworski é o de que a deliberação pode levar as pessoas a sustentar crenças que não são em seu melhor interesse. Portanto, dado que a deliberação tem o potencial de levar à manipulação das decisões, seria arriscado basear a legitimidade da democracia na comunicação.

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Não é por mera coincidência que os regimes autoritários recorrem ao expediente de bloquear a comunicação como um dos primeiros movimentos para garantir a obediência.

pluralismo de valores. Conforme defenderam diversos autores da perspectiva deliberativa da democracia, a comunicação pública, dadas certas condições, favorece o desenvolvimento de concepções públicas de justiça que permitem lidar de maneira mais justificável com a discordância moral envolvida na política, promove uma visão mais ampla das questões de interesse comum e contribui para avançarmos na compreensão individual e coletiva dos temas em públicos. A partir dos processos comunicativo, criar-se-ia um marco de tolerância para a cooperação nas relações sociais, através do qual se daria o efetivo exercício de direitos e o reconhecimento da multiplicidade de valores e filosofias de vida. Todavia, como tenho procurado destacar, o exercício deliberativo não poderia, sozinho, garantir a legitimidade das decisões vinculantes. Entre outras razões por que, em determinados contextos, ele pode ser objeto de distorções e manipulações, como sugerem Przeworski e Stokes, discutidos no capítulo II, que se contrapõem e o impedem, por si só, de gerar legitimidade.

Tendo em vista o risco potencial de os processos comunicativos promoverem um viés contrário ao valor equitativo das liberdades políticas, cabe à literatura pensar formas de evitar ou minimizar a capacidade de atores poderosos de restringir as oportunidades comunicativas dos cidadãos. Bohman (2012: 88) sugere a promoção de um “pluralismo institucional”, no qual uma diversidade de procedimentos sobrepostos se controlam mutuamente de acordo com o seu papel na divisão das funções epistêmicas e decisórias68. Mais adiante essa questão ficará mais clara. Cabe aqui apenas mencionar que o entendimento geral que sustenta a tese da necessidade é o de que a justificação da autoridade democrática exige um contexto comunicativo de debate e argumentação sobre as questões públicas; todavia, não basta para a legitimidade democrática que se promova a discussão pública ou qualquer discussão pública. Também é fundamental que se associe publicamente o exercício da autoridade à comunicação por meio de um diálogo interinstitucional capaz de assegurar os direitos e liberdades constitutivos da política democrática, que envolvem tanto os valores integrais ao processo político, como afirma Dahl (1989), quanto os relacionados à “liberdades dos modernos”, no sentido de Constant (1985). Tal concepção não se fia no valor igual atribuído aos interesses de todos, mas em uma ideia de igual consideração e respeito, que implica um dever moral de oferecer publicamente razões aceitáveis a todos ao justificar as decisões vinculantes.

Dessa forma, estou de acordo com a perspectiva sistêmica da democracia deliberativa, que, considerando a necessidade de um processo comunicativo qualificado para a legitimidade da ordem

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Segundo Parkinson, “a deliberative system is more democratic when it hears what (the inclusive) people say – that is, takes their communication seriously – but in an imperfect context it may (often) be necessary that people try different means of communicating, even deliberatively disruptive means, before decision-makers start listening. It is yet more democratic when the decision-makers themselves are authorized and accountable, or chosen in a random way that improves judgments about good motivations and thus trust” (2012: 158).

política, contudo não se concentra em fóruns discursivos mais restritos, mas lança luz sobre a interdependência entre estas arenas. O argumento se concentra em afirmar que nenhum desses espaço discursivos mais restritos seria capaz, por si só, de justificar a autoridade democrática. Assim, para compreender a finalidade mais ampla da comunicação pública em uma democracia, é fundamental dar um passo adiante e compreender a interação entre as diversas instâncias deliberativas. Isso significa reconhecer que a complexidade das democracias contemporâneas exige que uma enorme variedade de arenas e instituições, formais e informais, realizem funções comunicativas, dentro de cada uma delas e, também, no intercâmbio entre elas (MANSBRIDGE et al., 2012: 1-2).