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Das possibilidades da comunicação na democracia

PARTE 1 – DEMOCRACIA E COMUNICAÇÃO

1.5 Das possibilidades da comunicação na democracia

A teoria política tem se debruçado cada vez mais sobre o papel da comunicação, em sentido lato, nas democracias contemporâneas. Parte da literatura sustenta que as decisões democráticas devem

ser precedidas e estar substanciadas em um amplo processo de discussão pública. A comunicação teria a capacidade de transformar, modificar e tornar mais claras as nossas opiniões e preferências sobre um largo espectro da vida em sociedade20. De modo geral, a dinâmica comunicativa está associada nessa literatura a três valores específicos. O primeiro deles seria relacionado aos resultados a que ela conduz. Tradicionalmente, o processo comunicativo seria responsável por um aumento da qualidade da legislação produzida, pois tende a elevar a compreensão dos cidadãos acerca de sua sociedade e dos princípios morais que devem orientá-la. Assim, as leis e a estrutura básica da sociedade tendem a tornar-se mais justas. Um segundo resultado associado à comunicação pública concerne à legitimidade das decisões políticas mais importantes. Isto é, a discussão tende a tornar as leis mais racionalmente justificáveis aos olhos dos que a elas se submetem. Os cidadãos, ao tomar parte no processo de autogoverno coletivo, se sentem membros de uma comunidade de iguais e tendem a comportar-se enquanto tal. Tipicamente, associa-se a deliberação a acordos fundamentados entre os cidadãos acerca dos méritos e qualidades de uma decisão vinculante. Por fim, é comum se afirmar que determinadas qualidades desejáveis aos cidadãos são fomentadas quando estes participam dos processos discursivos. Afirma-se, assim, que a participação em pé de igualdade no espaço público comunicativo fomenta uma inclinação à formação de cidadãos mais virtuosos em termos de autonomia, racionalidade e moralidade. Ao oferecer aos cidadãos uma oportunidade de expor e ouvir argumentos sobre a vida política, os processos comunicativos promovem a independência, a autoconfiança e o espírito público nos membros de uma comunidade21. Segundo Mill,

The first element of good government … being the virtue and intelligence of the human beings composing the community, the most important point of excellence which any form of government can possess is to promote the virtue and intelligence of the people themselves. The first question in respect to any political institutions is how far they tend to foster in the members of the community the various desirable qualities, moral and intellectual (2000: 25).

Seria importante, contudo, enfatizar a ausência de um consenso acerca dessa relação. É preciso reconhecer que a vinculação entre tais características e a participação na discussão pública não pode ser considerada mais do que uma conjectura a ser empiricamente testada. Aliás, a proposição segundo a qual a participação política promove a autoconfiança e a tolerância é apenas levemente, quando tanto, sustentada por investigações mais sistemáticas. Outros autores reivindicam a independência dos valores da justiça, da legitimidade e da virtude em relação processo comunicativo, que tipicamente se associa à sua realização. Em alguns casos, identifica-se uma relação inversa. Rousseau (2006) sustentava a incompatibilidade entre a deliberação pública e a

20 Entre os teóricos que subscreveriam essa visão, poderíamos destacar Joshua Cohen, James Bohman, John Dryzek,

Jurgen Habermas, Iris Young, Cass Sunstein, entre outros.

emergência de tais valores. Przeworski (1997), por sua vez, chama a atenção para o potencial que a discussão pública tem de aumentar a discordância em relação aos princípios e às políticas públicas, além de abrir caminho à dominação ideológica por parte dos que desfrutam de maiores oportunidades para expor as suas visões. Não pretendemos endossar ou apresentar evidências contrárias ou à favor dessas ideias, mas apenas ressaltar que a deliberação tem uma relação, para dizer o mínimo, contingente com a promoção dos resultados e valores mencionados acima. Segundo Christiano (1997: 245), eles sustentam tão somente um valor instrumental da discussão pública.

Outra forma de compreender o valor da comunicação afirma que o engajamento em discussões públicas é parte essencial do ideal de boa vida que deve ser promovido pelas instituições da estrutura básica da sociedade. Em uma versão que independe do resultado da deliberação, sustenta- se que ela é parte fundamental do que torna a vida valiosa (e.g. ARENDT, 2003). Outra linha que associa um valor intrínseco à deliberação, argumenta que a deliberação promove uma espécie de respeito mútuo e igual consideração entre os membros de uma associação (e.g. YOUNG, 2001). Na medida em que o respeito mútuo é parte constitutiva de ideais como os de justiça, democracia e tolerância, é normativamente importante cuidar para que os cidadãos tratem uns aos outros dessa maneira, mediante o oferecimento de oportunidades de expressão de interesses e valores condizentes com tais práticas – vale notar que este último argumento coloca algum peso sobre os resultados do processo decisório, sendo, assim, compatível com a existência de padrões independentes de avaliação dos resultados, que competem com os valores procedimentais envolvidos em uma forma particular de se chegar aos mesmos.

Dentre os que valorizam a dimensão liberal-pluralista da política, a objeção ao argumento da boa vida direciona-se à centralidade da participação política. Para essa visão, o ideal republicano de virtude é apenas uma entre outras concepções abrangentes do bem no contexto do pluralismo de valores: não se pode, portanto, exigir moralmente dos cidadãos que a tomem como a sua concepção. Em um contexto no qual a maioria ou boa parte das decisões políticas mais importantes fosse delegada a fóruns de participação direta, corre-se o risco de que a parcela de cidadãos que professam o engajamento nas atividades cívicas como o ideal de boa vida esteja sobrerrepresentada, de modo a fazer valer as suas preferências em detrimento dos interesses alheios (VITA, 2008: 139- 42)22. A premissa segundo a qual a participação na dinâmica comunicativa constitui, mais do que um direito, um dever cívico não se sustenta à luz do pluralismo moral. Soa implausível, ademais,

22 Mesmo que os interesses sobrerrepresentados não fossem os das pessoas que tomam a participação na vida pública

como o bem mais valioso, poderia ocorrer ainda de a participação ser condicionada por outros critérios arbitrários, sobretudo critérios econômicos. No capítulo III volto a essa discussão com mais calma. Para uma discussão sobre a desigualdade nos fóruns participativos, ver Vita (2008) cap. 4 e Gurza Lavalle et al. (2006).

assumir que todos os cidadãos devem ter opiniões formadas sobre todos os temas, além do interesse em expor tais argumentos publicamente, por supostamente considerar as suas perspectivas mais valiosas e fundamentadas do que as de todos os demais membros da associação.

Even if apathy is not a virtue in itself, it will have to be accepted unequivocally as a right, to be exercised according to the will of each person: I have the right to abstain from voting, or from speaking, or even from hearing debates on matters in which I am not interested, and instead to stay home with my kids or to go to the stadium for a football game (REIS, 2007: 20).

O terceiro valor atribuído à dinâmica discursiva a relaciona como condição fundamental à justificação política. Segundo esse argumento, um processo comunicativo – desde que organizado adequadamente – seria condição necessária e suficiente para a justificação dos resultados do processo político. Ou seja, os resultados são justificados pois chegamos a eles mediante o procedimento correto, não podendo nem devendo haver padrões externos aos processos de deliberação entre cidadãos livres e iguais para avaliar os resultados (CHRISTIANO, 1997: 243-5). Nessa concepção, demonstra-se que os cidadãos tratam uns aos outros como iguais menos por dar igual consideração a todos os interesses do que por oferecer, publicamente, considerações para as decisões coletivas que possam ser consideradas razões legítimas por todos (COHEN, 1998).

Ao defender a desejabilidade da deliberação como fundamental à justificação política, é preciso estar atento a uma diferença mais ou menos sutil: uma coisa é dizer que não podemos justificar as nossas decisões apelando ao nosso interesse pessoal, pois ele não tem a qualidade persuasiva necessária; outra, distinta, é sustentar que a descoberta de que não posso oferecer razões persuasivas para uma proposta me levará a modificar a proposta. As pessoas comumente chegam à conclusão de que os seus argumentos não são convincentes, ouvem os argumentos contrários de outras pessoas, e mesmo assim votam em favor dos seus interesses. Segundo Przeworski (1997: 141-2), o que garante a legitimidade de um arranjo político e de suas decisões é o voto livre e igualitário. A discussão pública não autoriza o governo a governar.