• Nenhum resultado encontrado

PARTE III – LIBERDADE DE EXPRESSÃO E O VALOR DAS LIBERDADES

7.2 A discussão da liberdade de expressão

A liberdade de expressão tem lugar privilegiado no prestigioso rol dos temas fundamentais à teoria política; se não por outros motivos, por ser um entendimento comum às diversas vertentes do pensamento político o de que a política está inevitavelmente associada à construção do imaginário social, à disputa pela formulação das ideias e valores que informam a tessitura das leis e políticas públicas e aos acordos possíveis na elaboração da opinião pública e da vontade democrática. Situada pela unanimidade das teorias democráticas entre as condições de possibilidade de um regime democrático, a livre expressão de ideias costuma ser também considerada um dos direitos fundamentais sem os quais a própria definição de nós mesmos e das nossas relações sociais não pode se realizar plenamente155.

Mas o acordo acaba aí. Como nos diz Henry Kalven, o debate para definir o alcance e o significado desse princípio encontra-se, como um diálogo socrático, eternamente aberto, pois “uma resposta definitiva, plenamente entendida, nunca será atingida e, então, o processo deve seguir em frente com outras e outras questões sendo colocadas” (1988: 23)156.

155 Milton (1999) sugeria que a expressão pública era parte do que nos constitui enquanto indivíduos únicos e capazes de

ação.

156

No original “a definitive, fully understood answer will never be reached and so the process must go on with another and another question being put”.

Tipicamente, associa-se a liberdade de expressão à busca pela verdade, a um direito natural à autoexpressão ou mesmo à própria ideia de democracia. Ela não é necessária apenas para que os cidadãos exerçam as suas capacidades morais de ter um senso de justiça e defender uma concepção do bem. Combinada aos procedimentos políticos estabelecidos na constituição, a livre expressão de ideias e a liberdade de imprensa aparecem como uma alternativa à revolução e ao uso da força, que ameaçam sobremaneira as liberdades básicas. Segundo Tocqueville, “estaríamos subestimando a importância da liberdade de imprensa se a considerássemos apenas uma garantia à liberdade; ela [a liberdade de imprensa] mantém a civilização” (2004: 518)157. Nesse sentido, à garantia da livre expressão de ideias tende-se a conferir um valor epistêmico, isto é, melhores decisões ou decisões mais justas e democráticas estão relacionadas à livre circulação de opiniões e pontos de vista distintos e antagônicos.

A leitura “profilática”, como a denomina Dworkin, compreende o argumento segundo o qual a competição de ideias seria a melhor forma de se chegar à verdade, seja na ciência ou em torno de valores – não à verdade a respeito do que os indivíduos desejam, mas do que deveriam desejar –, como um argumento em defesa de que a maior quantidade de discurso, puramente, teria um valor epistêmico158. Na leitura “discriminatória”, por outro lado, o que se enfatiza não é a ideia de que nenhum discurso deva ser excluído, mas de que nenhuma ideia o seja. O que importa, portanto, é a “mistura cognitiva e emocional” do que é expresso, não a quantidade em si mesma (DWORKIN, 2000: 380-1)159160.

Há um esforço constante, tanto de juízes quanto de teóricos da ciência política, para elaborar princípios mais ou menos abstratos que sejam capazes de endossar uma ideia de liberdade capaz de distinguir quais discursos devem e quais não devem ser protegidos, assim como até que ponto a estrutura do sistema de mediação pode ser regulada pela coletividade – questões cujas respostas não são e nunca foram objeto de consenso, seja na prática judicial ou na teoria política. Outro tema de constante conflito no campo teórico diz respeito aos limites à atuação do Estado para garantir os direitos expressivos a uma parte dos cidadãos que, por diversas razões, têm acesso restrito aos

157 No original: “we should underrate their [of a free press] importance if we thought they just guaranteed liberty; they

maintain civilization”.

158

Dworkin sugere que esta seria a leitura encampada por Mill e, posteriormente, transmutada em outras versões do argumento autonomista. Tal interpretação sobre o ideal da liberdade de expressão será discutida no próximo capítulo.

159

Esta seria a leitura feita pela tradição “coletivista”, cujas ideias serão analisadas no capítulo XIX à frente. Segundo essa interpretação, o Estado tem um papel crucial a realizar para garantir que os cidadãos disponham de informações adequadas a tomar boas decisões políticas.

160 Outros autores pensam a questão em termos da diversidade de posições, valorizando sobretudo a pluralidade de

versões sobre o bem comum no espaço público. Para uma elaboração em defesa da diversidade como o objetivo central, ver Raz, 1986.

fóruns de debate público. As liberdades políticas em geral, e a liberdade de expressão em particular, têm tanto uma dimensão defensiva (contra a intervenção indevida do Estado) quanto uma dimensão protetiva (que requer a intervenção do Estado para ser de fato garantida). A questão que se coloca é saber em que medida podem ser legitimamente levadas adiante ou quais seriam os limites impostos a essas duas dimensões pela necessidade de assegurar outros valores. Seria possível a restrição de conteúdos específicos, como discursos de incitação ao ódio, de caráter racista etc. sem se restringir demais a liberdade de expressão? Ou devemos dar preferência a regulações neutras em relação ao conteúdo e aos pontos de vista? Todas essas questões serão debatidas adiante, nos capítulos VIII, IX e X.

Não existe, de fato, um acordo sobre a compreensão do direito relacionado à liberdade de expressão, ou seja, sobre os limites e os requisitos que recaem sobre a autoridade ao decidir questões relacionadas à distribuição das oportunidades de expressão, seja ela política ou não. A falta de um acordo duradouro nessas questões não surpreende. Uma resposta mais concreta depende, entre outras coisas, das condições sob as quais a resposta a essas indagações é dada. Embora algumas ameaças – como o desejo do governo de evitar as críticas direcionadas a ele – sejam duradouras e gozem de certo acordo em relação à forma como remediá-las, outras – como a questão envolvendo a propriedade das empresas de comunicação – surgem com o tempo e exigem novas respostas e novas formas de conceber o direito à livre expressão de ideias. Tais respostas são, elas próprias, objeto de desacordo razoável sobre a melhor maneira de erigir uma proteção aos direitos e liberdades básicas que imponha um custo tolerável aos sujeitos autogovernantes. É o que nos diz Scanlon na passagem abaixo:

This disagreement is partly empirical – a disagreement about what is likely to happen if certain powers are or are not granted to governments. It is also in part a disagreement at the foundational level over the nature and importance of audience and participant interests and, especially, over what constitutes a sufficiently equal distribution of the means to their satisfaction. The main role of a philosophical theory of freedom of expression, in addition to clarifying what it is we are arguing about, is to attempt to resolve these foundational issues (SCANLON, 2003b: 100).

A despeito dessa indefinição oferecer margem ao surgimento de inúmeros problemas no debate sobre a organização das políticas relacionadas ao livre discurso, Kalven (1988) celebra a falta de uma fórmula acabada para lidar com a questão. De acordo com ele, seria justamente nessa abertura à discussão e à disputa que residiria a força particular desse ideal. Seria relativo à própria natureza de um princípio que orienta a comunicação, estar aberto ao conflito de valores inerente às sociedades marcadas pelo fato do pluralismo. A liberdade de expressão se define, portanto, como uma tradição viva e dinâmica em sua interpretação no mundo das ideias e em sua aplicação ao

terreno da prática.