• Nenhum resultado encontrado

PARTE II – O DEBATE PÚBLICO NOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO

5.7 Jornalismo e mercado

Ao exercer a função de mediação do debate no espaço público, o jornalismo deve ser o veículo de argumentos e opiniões que dialoguem entre si. A natureza própria à indústria cultural da qual fazem parte os meios de comunicação, contudo, pode ser incompatível com os princípios éticos do jornalismo. O jornalismo, entendido como a instituição à qual caberia proporcionar o direito à informação e dar materialidade à liberdade de expressão, não é congruente com a lógica de operação industrial, pois “a busca da verdade, virtude ancestral do jornalismo, é simplesmente incompatível com a lógica dos conglomerados comerciais da mídia dos nossos dias” (BUCCI, 2004: 129).

A maximização da identidade comercial dos meios de comunicação, por um lado, lhes permitiu

123

No que o autor trabalho com uma contraposição, uma relação de exclusão, de antiga cepa filosófica, entre forma e conteúdo. Segundo Sartori, as imagens, ou a forma, dificilmente podem provocar a reflexão ou o pensamento crítico. Os meios de comunicação de massa – e particularmente a televisão – operam com um conjunto de imagens e arquétipos que recaem sob o que a psicanálise denomina de “lógica da representação dos desejos”. Os programas televisivos, sejam os notadamente produzidos para o entretenimento ou os de conteúdo jornalístico, ao lidar com temas do domínio do político, como valores, opiniões e questões de ordem pública, oferecem um conteúdo voltado ao inconsciente humano, o que conduz a audiência a identificar-se com certos “objetos de desejo”, dispensando o exercício mental de desvelar a conexão simbólica que é típica do ato de reflexão e pensamento crítico. Na busca de identidade entre o “objeto de desejo” e a representação simbólica presente nas imagens televisivas, dá-se o gozo e paralisa-se por um instante o pensamento. A reflexão consiste no estado de inquietude e na procura de uma relação com as representações do mundo. O gozo, por outro lado, realiza-se na satisfação dessa busca. Por isso, postar-se diante das imagens de um televisor tornar-se-ia, segundo Sartori, um estado perene de suspensão da crítica.

maior liberdade de ação em relação ao Estado e mesmo às instituições políticas tradicionais, como os partidos políticos. Os veículos deixaram de ser meros repetidores das “verdades” estatais e também abandonaram a lógica de luta política dos programas partidários. Por outro lado, no entanto, as pressões do mercado e o entendimento de que a notícia é uma mercadoria a ser consumida, impuseram novos limites à expansão do diálogo na grande imprensa, levando a disputas dentro das próprias redações sobre a linha e a identidade jornalística dos veículos. Esse processo teria nos conduzido a uma maior profissionalização da atividade, mas também teria sido responsável pelo crescimento do jornalismo sensacionalista e “denuncista” que tem por intuito apenas gerar lucros para as empresas, relegando a segundo plano a qualidade do seu conteúdo.

De acordo com o modelo mercantil tradicional, sob certas circunstâncias, as empresas em competição no mercado promovem incentivos que levam a uma produção e distribuição maximizadora das preferências dos consumidores, que terão o melhor produto que desejam. É um argumento comum o que sugere que o mercado de comunicação opera em linhas semelhantes: além de sustentar a liberdade de expressão e consumo dos bens simbólicos, ele promoveria a produção de informações, opiniões e entretenimento ajustados ao que o público deseja. Todavia, parece complicado associar os bens materiais aos bens simbólico, também em relação à sua produção. Em primeiro lugar, não podemos desconsiderar que, mais do que nos mercados tradicionais, as preferências e demandas são construídas e fixadas no próprio processo de consumo. Além disso, o sistema formado pelos media é permeado por tensões provenientes de lógicas distintas que nele operam: de um lado, o compromisso com a informação; de outro, a busca pelo lucro das empresas. O mercado, nesse sentido, não só é inefetivo na solução de certos problemas de produção e consumo do sistema comunicativo, como também pode funcionar de maneira a reduzir o alcance do valor equitativo das liberdades comunicativas (BAKER, 2002: 7).

Ainda que o modelo mercadológico puro pudesse funcionar relativamente bem no que concerne às mercadorias tradicionais124, ele não se aplica de tal forma para os produtos mediáticos, nem tampouco parece ser capaz de produzir o que se espera da comunicação pública em uma sociedade democrática.

Os meios de comunicação possuem quatro características que complicam a sua comparação com mercadorias típicas: (1) são bens públicos, ou seja, o consumo de seus produtos uma pessoa não afeta a possibilidade de consumo pelas demais; (2) os produtos mediáticos frequentemente produzem externalidades positivas e negativas extraordinariamente significativas (externalidades

que se referem, por exemplo, ao efeito que a produção e a publicação de determinados valores, cujo impacto sobre a audiência e a sociedade pode ter um efeito disseminador de preconceitos; boa parte dos efeitos produzidos pelos media sobre terceiros ocorre pela influência sobre as crenças, perspectivas e preferências da audiência); (3) os media vendem diferentes produtos para diferentes públicos, vendem notícias, cultura e entretenimento para a audiência, ao passo que vendem audiência para anunciantes; assim, os meios de massa escolhem as informações e pontos de vista que veiculam pela combinação daquilo que é valorizado pela audiência e daquilo que é valorizado pelos anunciantes; no entanto, os incentivos são recolhidos apenas do lado dos anunciantes, promovendo conflito potencial entre os interesses dos anunciantes e os da audiência; (4) as pessoas não consomem os produtos mediáticos com preferências pré-definidas como no caso do modelo mercadológico padrão, elas as formam no próprio processo de recepção (Ibidem: 9-10).

A combinação de múltiplos “compradores” cria múltiplas lealdades, mas a influência tende a seguir na direção daquele maior comprador, daquele cujo acesso às informações acerca dos processos de construção dos valores e opiniões através da comunicação pública é facilitado125. Ou seja, essa é uma relação inerentemente desigual. Parte dos anunciantes e do público mais atento, além disso, tem acesso privilegiado aos contextos de decisão das empresas de comunicação, o que lhes confere uma capacidade maior de avaliar e influenciar os interesses promovidos pelos meios (BAKER, 2002: 14).

Por outro lado, os media se conformam em um sistema em que a lógica de operação não é influenciada tão somente pela estrutura econômica e a hierarquia de comando das empresas. O sistema mediático se informa tanto por esses aspectos quanto por certo ethos profissional que organiza o comportamento dos atores que produzem o seu conteúdo. Os meios de comunicação, assim, se organizam em um “campo”126 reflexivamente autônomo que contém uma ordem axiológica própria e um sistema de especialistas com a função básica de produzir a mediação entre os demais campos sociais. Os padrões de conduta compartilhados pelos profissionais que trabalham nos veículos e empresas impede que apenas a lógica do lucro domine os media. A violação das normas inerentes às práticas de construção das matérias e a corrupção do valor da informação imparcial e bem apurada são acompanhadas de sanções que não podem ser descartadas (RUBIM, 1994: 14)127.

125

A proliferação de assessorias de imprensa especializadas que trabalham para “cuidar” da imagem de produtos, políticos, esportistas e outras celebridades não ocorre por obra do acaso. Elas respondem ao e alimentam o processo de enfraquecimento da distinção entre jornalismo e publicidade.

126

No sentido em que Bourdieu (2006) entende esse termo.

127

Ao contrário do que os críticos poderiam apontar, não se trata de uma visão maniqueísta sobre a relação entre jornalistas e empresários. Antes, diz respeito ao múltiplos interesses que estão em jogo no exercício da mediação. A atividade de mediação não está originalmente sob o controle de nenhum agente em particular, mas poderá ser

Mesmo a adaptação dos discursos à lógica mediática não se dá simplesmente com a eliminação das formas típicas de discurso político – ou do “conteúdo”, como argumenta parte da literatura. Antes, o que se verifica é uma relação de influência mútua, pois o mundo político busca tornar a sua retórica “mediatizável”, ao tempo que os meios vão ao encontro da retórica política ao formatar as suas formas narrativas. O intercâmbio entre a linguagem dos meios de comunicação e a da política leva a discursos variados, alguns mais adaptados à lógica mediática, outros mais fortemente influenciados pela natureza do debate político. Os media, ademais, não eliminam as demais formas de atuação dos políticos e dos cidadãos. Eles atuam, antes, de modo complementar, embora com primazia em termos de alcance e influência sobre as demais formas de atuação. Dá-se entre os discursos mediados e as outras formas discursivas uma relação de mútua influência. Aquilo que um ator político sustenta nos palanques ou em entrevistas em off corresponde a uma rede de narrativas que pode ser tanto uma referência a valores compartilhados quanto uma articulação de sentidos inovadora.

Contra a acusação de que os meios de comunicação levam a uma prioridade da forma sobre o conteúdo, Rubim (1994) chama a atenção para o fato de a política sempre ter se realizado através das formas: segundo ele, seria possível questionar a própria visão dicotômica da relação forma- conteúdo. O uso de simbologias, nos lembra Rubim, se faz presente, por exemplo, na retórica dos discursos políticos; ou seja, não é apenas a partir da entrada dos meios de comunicação de massa que as formas fazem parte do mundo da política. Além disso, o próprio caráter da sociabilidade contemporânea tem um forte componente de mediação do qual os meios de comunicação são, ao mesmo tempo, protagonista e resultado.

Embora os media não se organizem, em geral, no sentido de realizar as funções que o sistema deliberativo lhes exige, apenas eles podem exercer algumas funções cruciais para a deliberação pública em sociedades complexas. Diante desse quadro, a resposta não seria simplesmente adotar uma opinião apocalíptica, prevendo a dificuldade da política democrática realizar-se em um contexto intensamente mediatizado, mas elaborar mecanismos que nos aproximem da realização das funções que a comunicação deve exercer para fortalecer o caráter democrático das sociedades. A primeira reação que essa argumentação provoca é a de contrapor um modelo ideal de comunicação ao contexto factual da comunicação pública nas sociedades contemporâneas. Todavia, o uso empírico sugerido dos ideais normativos tem o impulso crítico de nos possibilitar a percepção de que as distorções encontradas podem advir de restrições contingentes que merecem uma

desigualmente controlada por uma pequena parte dos atores sociais, dificultando o acesso de determinados grupos e versões (MAIA 2002: 10).

investigação mais detida.

Seria incorreto rejeitar as oportunidades de alargamento das possibilidades de comunicação propiciadas pelos media. Ao eliminar os obstáculos espaçotemporais para o transporte de formas simbólicas e tornar acessíveis a uma enorme gama de sujeitos informações e argumentos, os meios de comunicação de massa contribuem para o que Dahl chamou de entendimento esclarecido128. Nas palavras de Thompson (1998: 38), “os horizontes espaciais de nossa compreensão se dilatam grandemente, uma vez que eles não precisam estar presentes fisicamente aos lugares onde os fenômenos observados ocorrem”. Além disso, com o desenvolvimento das novas tecnologias da informação e da comunicação, amplia-se também a capacidade dos cidadãos de se tornarem, eles mesmos, produtores e distribuidores de conteúdo, o que potencialmente incrementa a diversidade de opiniões e pontos de vista disponíveis no espaço público e contribui para o fortalecimento das liberdades comunicativas. Na visão de Habermas (2006), as estruturas de comunicação, por problemáticas que sejam, trazem inerente potencial de democratização. Assim, embora os meios de massa sejam estruturas de comunicação de caráter hierarquizante e de linguagem por vezes imprópria ao mundo da política, os mecanismos de amplificação da comunicação que proporcionam representam, ao mesmo tempo, condição de possibilidade de que manifestações comunicativas ganhem o espaço público – no que reside certa ambivalência de tal advento129.

Como fórum de debate, o campo dos media deve refletir a diversidade política e cultural presentes em uma sociedade, oferecendo a possibilidade para que a multiplicidade de atores e perspectivas culturais tenham voz no processo de deliberação pública. Nisto, exige-se dos meios tanto pluralidade externa quanto interna130, além do suporte à livre expressão de ideias. Todavia, o paralelismo político e o fomento à agência individual não nos conduz necessariamente a um sistema comunicativo que garanta o valor equitativo das liberdades comunicativas. De acordo com a tese da necessidade, é preciso que o sistema discursivo dê sustentação às autonomia pública e privada, o que requer a preservação do que Rawls (2003: 59) denominou de “bases sociais do autorrespeito”. Nesse sentido, a discussão deve se preocupar também com o contexto comunicativo da sociedade e em que medida os valores que são sustentados publicamente não corroem as chances iguais de

128 Cf. nota 55.

129 Muito embora a visibilidade mediática não seja importante como um fim em si mesmo, mas apenas na medida em

que incita o debate público plural na sociedade e contribui para a promoção de valores que estruturam um sistema comunicativo democrático (MAIA, 2002: 14-15).

130

Segundo a terminologia proposta por Hallin e Mancini (2004: 29-30), a pluralidade externa se refere à diversidade do sistema como um todo, à existência de veículos que reflitam a diversidade de pontos de vista de uma sociedade. Em geral, sistemas com alto grau de pluralidade externa possuem também um alto nível de paralelismo entre os veículos de comunicação e as principais forças políticas da sociedade. Já a pluralidade interna se refere ao grau de diversidade existente dentro de cada veículo de comunicação. Um alto grau de pluralidade interna, por sua vez, reflete baixo paralelismo entre os media e os atores políticos.

todos ocuparem o espaço públicos mediático.

No próximo capítulo vou aprofundar a problematização das questões que surgem a partir da emergência dos meios de comunicação como principal canal de mediação dos discursos provenientes das diversas esferas da sociedade. Buscarei evidenciar de forma mais clara a implicação das características estruturais dos media para as três funções que a comunicação deve exercer na democracia.

VI – Os Meios de Comunicação na Teoria Democrática II

6.1 Introdução

Há um consenso nas teorias da comunicação e na literatura sobre as interações entre comunicação e política no que toca ao impacto da estrutura dos meios de comunicação de massa, tanto os veículos tradicionais quanto as novas tecnologias da informação, sobre a produção e a difusão de formas simbólicas no espaço público. No entanto, boa parte dos estudos no campo das comunicações sobre os media e o sistema mediático, sob influência, sobretudo, do estruturalismo e da semiótica, tem se

debruçado sobre a mensagem, privilegiando uma análise conteudística dos bens simbólicos produzidos (sejam eles textos escritos ou filmes, imagens etc.), deixando apenas em segundo plano uma análise mais detida acerca dos próprios meios e a sua influência sobre a mensagem. Embora se reconheça a importância daquele tipo de análise, é preciso reconhecer que se constitui como um estudo apenas parcial desses produtos culturais, uma vez que não se leva em consideração as condições sob as quais eles foram produzidos, difundidos e recebidos.

Bourdieu (2006) ressalta a importância fundamental das condições sociais de produção e, mais especificamente, da posição do realizador, na definição das propriedades dos bens simbólicos. Os limites impostos pela estrutura de um campo, ao estabelecer certos padrões de realização, determina também a forma e o conteúdo destes produtos. No limite, as estruturas de produção têm também forte impacto sobre as formas de recepção131. As características das produções simbólicas demandam formas específicas de recepção, ou seja, elas pressupõem uma consideração pela forma e o conteúdo que ostentam: um discurso filosófico, a depender de seu reconhecimento enquanto tal, demanda a forma de sua recepção como um discurso filosófico, e não como um panfleto político ou como literatura romântica.

Neste capítulo vou me debruçar de forma mais cautelosa sobre a relação entre a organização do sistema mediático e as condicionalidades da comunicação social nas sociedades contemporâneas. Se for bem-sucedido nessa discussão, ao final poderei apresentar um quadro mais claro sobre as implicações da proeminência da forma mediada de comunicação para a democracia, entendida como a garantia do valor equitativo das liberdades políticas. Nesse quadro, o foco recai sobre as três funções da comunicação pública, quais sejam, a realização das autonomias pública e privada e o oferecimento das condições necessárias à agência política por meio do exercício das liberdades comunicativas.

Dentre as garantias que constituem as condições efetivas de realização, em pé de igualdade, das liberdades comunicativas, destaquei, na primeira parte, as oportunidades equitativas de acesso aos canais de mediação e a preservação do que estou chamando, inspirado na formulação rawlsiana, de um contexto comunicativo em que se respeitem as bases sociais do autorrespeito. No que se segue pretendo ressaltar algo que já esteve presente no capítulo anterior, isto é, uma compreensão sobre como a estrutura típica dos canais de mediação representa vetores distintos e, por vezes, opostos no que se refere à realização das funções da comunicação na ordem política democrática. A ideia é entender de que maneira a estrutura do sistema mediático e as normas que informam a sua

organização impactam a abertura ao intercâmbio discursivo e ao diálogo entre as diversas arenas da sociedade, sempre lançando luz sobre a sua influência sobre as possibilidade de agência comunicativa e sobre a formação das autonomias pública e privada.

Diferenciado por injunções estruturais, econômicas e características socioculturais, os media podem concorrer para formar opiniões, mudar atitudes e tradições, transformar práticas e percepções de sujeitos, grupos e instituições, contribuir para o avanço das liberdades expressivas e comunicativas. Conforme sugeri no capítulo anterior, para compreender o sistema de mediação da comunicação é necessário considerar a economia política dos meios e as normas, formais e informais, que regulam a sua operação. Afirmei, ademais, que não se pode desconsiderar, além dos meios impressos e eletrônicos tradicionais, as novas tecnologias digitais, que favorecem a produção de bens simbólicos, intensificam a difusão de informações e pontos de vista em uma dimensão espaçotemporal imediata, estabelecendo formas de expressão e sociabilidade inovadoras.

No intuito de delinear a situação estrutural dos meios de comunicação de massa nas sociedades contemporâneas, vou recorrer a uma reconstrução histórico-analítica do desenvolvimento do sistema mediático, procurando demonstrar como a organização deste campo tem relação íntima com as mudanças sociais, culturais, econômicas e políticas no período que marcou a sua ascensão, ademais de ressaltar as influências potenciais, quando adequado, dos media sobre aquelas mudanças.