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PARTE 1 – DEMOCRACIA E COMUNICAÇÃO

3.4 Da liberdade enquanto autodeterminação

O autogoverno democrático, nessa concepção, não tem valor apenas instrumental como método para a escolha de governos, mas é parte constitutiva da própria liberdade individual. A liberdade pessoal não se restringe ao estabelecimento de uma área livre de interferências, ela consiste no exercício. Em certo sentido, pode-se afirmar que o resultado da ação comunicativa é a própria política, entendida como a interação entre homens iguais na esfera pública. Ação e política, segundo Arendt, são, dentre todas as capacidades e potencialidades humanas, as únicas que não poderíamos sequer conceber sem admitir a existência da liberdade. Para ela, “A raison d'être da política é a liberdade, e seu domínio de experiência é a ação” (2007: 192).

Muitas vezes, contudo, a subordinação, em regimes totalitários, de todos os assuntos às exigências da política, dão a impressão de que a liberdade só pode ser desfrutada naquilo que não se relaciona com a política, como nas relações econômicas – seria, portanto, uma liberdade da política e não na política. Parece que o liberalismo, em sua tentativa de isolar a liberdade do âmbito político e, mais do que isso, de apontar a liberdade como a ausência de algo, defendeu a ideia de que a política deve ocupar-se quase que exclusivamente com a manutenção da vida e a salvaguarda de interesses. No entanto, segundo Arendt, qualquer atividade relacionada à manutenção da vida ou à salvaguarda de interesses se encontraria sob o jugo da necessidade, sendo o âmbito mais adequado para se tratar o da esfera privada da vida social, “cuja administração tem obscurecido o âmbito político desde os

primórdios da época moderna” (Ibidem: 202).

Para construir o seu conceito de liberdade47, Arendt busca na doutrina de Santo Agostinho a ideia de natalidade, segundo a qual o homem foi criado para que houvesse um novo começo. Arendt identifica esse novo começo com a capacidade dos homens de, através da ação, iniciar algo novo e que o identifica como um ser único e distinto dos demais. Em outras palavras, na condição humana da natalidade, identificada em Agostinho, se assenta a possibilidade de uma nova fundação. “Porque

é um começo, o homem pode começar; ser humano e ser livre são uma única e mesma coisa. Deus

criou o homem para introduzir no mundo a faculdade de começar: a liberdade” (Ibidem: 216).

Em Sobre a Revolução, Hannah Arendt retoma a discussão sobre o exercício da liberdade ao distinguir as experiências revolucionárias norte-americana e francesa, mais especificamente a subsequente constituição de um novo governo. A Constituição norte-americana, na visão da autora, constituía uma novidade não pela salvaguarda dos direitos civis ou pela ideia de um governo limitado, mas pelo estabelecimento de um sistema de poder inteiramente novo, cujas bases, no entanto, se encontravam constituídas desde as formas de autogoverno existentes no período pré- revolucionário.

Ao proclamarem sua independência desse governo [da coroa Inglesa], e após haverem abjurado sua fidelidade à coroa, a questão principal, para eles, não era certamente como limitar o poder, mas como estabelecê-lo, ou seja, não como limitar o governo, mas como fundar um novo (ARENDT, 2001: 118).

Diferentemente, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na França pós-revolucionária, que foi inspirada no pensamento de Rousseau, vai além e proclama a existência de direitos independentemente do corpo político, equiparando tais direitos aos direitos do cidadão. Nesse sentido, enquanto nos EUA o governo foi constituído pelo povo e a fonte da lei era a Constituição, na França a fonte da lei e do governo seria uma ficcional “vontade geral”.

Decerto Montesquieu (2007) foi uma das grandes influências da Revolução Americana, em especial no tema da constituição da liberdade política, considerada mais do que a limitação do poder – deixando a palavra constituição, nesse contexto, de ter uma conotação meramente negativa ou de limitação do poder. Na noção de Montesquieu de separação e equilíbrios mútuos entre os poderes está implícita a ideia de que somente um poder pode controlar outro sem destruí-lo ou torná-lo impotente. Nesse sentido, a preservação da liberdade se daria por meio de seu próprio exercício.

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Por estranho que possa parecer, já que um dos alvos principais da crítica arendtiana à noção filosófica de liberdade é dirigida justamente à religião.

O pesamento arendtiano é sem dúvida debitário da tradição grega, tanto que as suas categorias fazem referência a essa experiência e é a partir dela que se constrói a estrutura de sua análise política. Seria, contudo, um equívoco limitar a essa tradição o pensamento da autora. Não é desconhecida a atenção prestada por Arendt à matriz e à experiência romana, tomada, em muitos casos, como uma forma de resolver alguns problemas apontados por ela na tradição grega. Segundo a autora, a ação (tal como as outras atividades da vita activa, a saber, o labor e o trabalho) apresenta certa fragilidade e requer, portanto, redenção. A fragilidade da ação residiria na sua intangibilidade e na instabilidade inerente à interação entre homens que podem igualmente agir. A redenção desta atividade se encontra na própria capacidade dos homens de fazer e cumprir promessas e estabelecer compromissos uns com os outros (TAMINIAUX, 2000).

Os romanos, diferentemente dos gregos, davam grande importância para a atividade de legislar. Na experiência romana, tanto a legislação quanto a ideia de fundação ganharam um status diferenciado, já que na tradição grega eram vistas como atividades relacionadas à categoria trabalho, envolvendo, portanto, antes uma relação de violência e dominação do que de interação entre homens iguais. Na experiência romana, a lei, antes de mera restrição a ação humana, é uma forma de criar novas relações entre os homens, de criar uma concordância entre aqueles que interagem (TAMINIAUX, 2000).

Ao tratar sobre a caso norte-americano, afirma que

o que aconteceu na América colonial antes da revolução (e que não aconteceu em nenhuma outra parte do mundo, nem nos antigos países, nem nas novas colônias) foi, teoricamente falando, que a ação levou à formação do poder, e que o poder foi mantido vivo e atuante pela aplicação dos instrumentos de promessa e de pacto, então recentemente descobertos (ARENDT, 2001: 140).

Dessa forma, as experiências de autogoverno encontradas desde o período pré-revolucionário, assim como a preservação da importância dos Estados, parecem ter sido fundamentais no sentido de preservar a liberdade positiva dos cidadãos e de manter a união após a convenção da Filadélfia. O que diferencia essencialmente o caso francês que é nele deu-se apenas um dos dois passos dados pela Revolução Americana: houve a libertação (liberation) do jugo da coroa, mas não a instituição da liberdade positiva (freedom), finalidade última de toda revolução. Já no caso norte-americano houve, além dessa libertação, o esforço deliberado de todo um povo para a fundação de um novo corpo-político, o ato de um povo que constituía o seu governo.

A liberdade defendida nessa tradição coaduna-se com o ideal de cidadania, ou seja, de uma liberdade promovida pelas leis e não por ela ameaçada como na vertente liberal. Nesse sentido, as

leis promovem a liberdade na medida em que impedem a dominação em um sentido mais amplo e duradouro, oferecendo aos cidadãos segurança ao invés da incerteza de um estado despótico em que se está constantemente à mercê da vontade do soberano. Em contraposição, portanto, à primazia dos direitos individuais associada ao liberalismo, as teses da suficiência sustentam a prioridade do bem comum tal como determinado pela comunidade política. A cidadania é, assim, apreendida como eticamente constituída e delineada pelas virtudes cidadãs orientadas para o bem comum.

Os direitos ganham, nesse sentido, um caráter de liberdades positivas, no sentido de Berlin (2002); nestes direitos, se destacam os direitos de participação e comunicação políticas. Estas últimas garantem ao cidadão o status de autor político responsável pela comunidade. O poder político, diferente da concepção liberal, não é autônomo, mas é gerado na prática da autodeterminação dos cidadãos e se legitima pela institucionalização e realização das liberdades públicas. A existência do Estado justifica-se como uma garantia de um processo inclusivo de formação das vontades políticas.

Nota-se, nessa discussão, uma visão contrastante a respeito do papel das leis. Enquanto na perspectiva apresentada no capítulo anterior as leis são indubitavelmente instrumentos de coerção que restringem a liberdade, em uma inspiração hobbesiana, na tese da suficiência elas aparecem como essenciais para a preservação da liberdade, uma vez que garantem a ausência de dominação (daí a distinção cara a essa perspectiva entre o império da lei e o império dos homens) e impedem os vícios atribuídos por Maquiavel à corrupção dos indivíduos pela busca do autointeresse (Skinner, 1986).

No início de The Paradoxes of Political Liberty, Skinner (1986) apresenta duas intervenções que são em geral um paradigma para a discussão em curso: a primeira relaciona a liberdade com o autogoverno e, em consequência, a liberdade individual com a ação pública; a segunda relaciona-se à tese de que talvez seja necessário criar impedimentos que eventualmente forcem os indivíduos a ser livres, o que conecta a liberdade com conceitos como coerção e impedimentos. Na apreciação da tradição republicana busca-se retomar o ideal de que as leis são uma forma de preservar a liberdade, pois evitam a corrupção do corpo político, que se apresenta com a excessiva importância atribuída à busca do autointeresse no pensamento liberal (em especial em sua vertente “libertariana”). Essa retomada não tem como objetivo apresentar uma forma de se construir uma forma genuína de democracia. Antes, tem como propósito alertar para a ameaça à liberdade que se configura em um contexto em que os cidadãos deixam de exercer os seus deveres em nome de uma suposta liberdade que não se pode gozar senão no isolamento. Em suas próprias palavras: “a menos que posicionemos os nossos deveres antes de nossos direitos, devemos esperar que encontremos os nossos próprios

direitos enfraquecidos” (SKINNER, 1986: 250)48.