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Primeira aproximação à tese da necessidade

PARTE 1 – DEMOCRACIA E COMUNICAÇÃO

4.2 Primeira aproximação à tese da necessidade

Vou iniciar essa discussão com uma definição básica do que entendo neste capítulo como deliberação ou comunicação pública. A definição inicial não difere significativamente das noções apresentadas nos capítulos anteriores; basicamente, como meio adequado à formação da razão pública, a comunicação pública seria “um modo de formular os planos (de uma associação política), de estabelecer seus objetivos e construir suas decisões de acordo com o plano traçado. O modo como uma sociedade política faz isso é que dá forma à sua razão” (RAWLS, 2011: 212). Contudo, ao contrário da concepção apresentada no capítulo 3, essa perspectiva não caracteriza a democracia como um processo dialógico comunitário, nem tampouco defende que todas as dimensões da vida social se submetam aos mesmos critérios discursivos.

A deliberação se dá em inúmeros tipos de sistemas sociais, mas nem todos eles são democráticos. A discussão pública pode acontecer em enclaves isolados da comunidade de pessoas afetadas pelas decisões ou ainda, mais tipicamente, entre uma elite restrita, cujos argumentos são predominantemente técnico-legais e não remetem à formação reflexiva de preferências dos cidadãos. Mesmo na presença de instituições formalmente democráticas, outros sistemas de poder pressionam os decisores em direções que se afastam do controle democrático, como o sistema judiciário, a burocracia administrativa, o mercado, entre outros. Por vezes, sugere-se que os critérios que sustentam a deliberação e os que sustentam a democracia são vetores em direções opostas. Enquanto a primeira ocorre de forma adequada em espaços menores e com um número restrito de participantes, a última impõe a participação em larga escala. A comunicação é, portanto, apenas um dos valores, dentre outros, que informam a governança moderna.

A democracia, da forma como a compreende a tese da necessidade, remete a duas ideias. A primeira, mais óbvia, é de que em um regime político democrático as decisões sobre os rumos da sociedade são coletivas em algum sentido. Enquanto na tese da colaboração uma decisão será considerada adequadamente “coletiva” na medida em que emergir de um procedimento majoritário que ofereça igual peso aos interesses de todos, na tese da suficiência o caráter coletivo de uma decisão deriva do núcleo ético-comunitário que lhe empresta sentido ou da participação direta de todos os envolvidos e sobre quem recairá a autoridade daquelas decisões. Para a tese da necessidade, todavia, uma decisão será legitimamente “coletiva” na medida em que for o resultado de um arranjo institucional que estabeleça condições adequadas para a comunicação pública livre entre iguais (COHEN, 1998: 186-7).

A segunda ideia, associada a esta última, afirma que a democracia se assenta na justificação da autoridade. Assim, na democracia, os cidadãos tratam uns aos outros como iguais na medida em que se esforçam por oferecer razões para as decisões, especialmente aquelas que dizem respeito às questões de justiça básica e aos princípios constitucionais essenciais, que possam ser mutuamente aceitáveis por todos aqueles que estão submetidos ao poder coletivo59. Todavia, é preciso questionar a forma como a comunicação pública se insere nos sistemas democráticos no contexto de Estados sob a influência dos imperativos administrativos (PAPADOPOULOS, 2012), das particularidades de uma esfera pública dominada pela comunicação mediada e das novas maneiras de compreender a ideia de cidadania60.

59Segundo Cohen, “a consideration is an acceptable political reason just in case it has the support of the different

comprehensive views that might be endorsed by reasonable citizens” (1998: 195).

A argumentação pública, na interpretação da tese da necessidade, se apresenta como um componente central da justificação política. A democracia se configura como um sistema de arranjos políticos e sociais que liga institucionalmente o exercício do poder político à comunicação pública entre iguais. Nessa definição, a igualdade política se apresenta como um componente fundamental do ideal kantiano de igualdade humana aplicada ao âmbito do político. Portanto, o propósito central de um sistema democrático seria garantir a presença da razão pública como núcleo da política – embora não exista realmente um consenso acerca da demandas da razão pública.

A ideia de igualdade política, contudo, não se refere e nem tampouco se limita a uma ideia tradicional segundo a qual os arranjos políticos devem ser estruturados de tal maneira que todos tenham igual influência sobre as decisões coletivas vinculantes. Antes, ela afirma que os membros de uma sociedade democrática devem ser substantivamente iguais no sentido de que a distribuição de poder e outros recursos não molda definitivamente as suas chances de contribuir para argumentação pública, nem representa um papel impositivo na participação de cada um nas decisões coletivas. Não se trata, destarte, de uma noção suficientista da democracia como a apresentada no capítulo III, mas, sim, de garantir o valor equitativo das liberdades políticas, pois estas liberdades são os meios institucionais essenciais para assegurar e promover as liberdades fundamentais. A possibilidade de formação de razões públicas está condicionada à possibilidade de os cidadãos argumentarem dentro de um sistema comunicativo, ainda que indiretamente e a partir de arenas dispersas na periferia do sistema. Para tanto, devem ser oferecidas a todos condições equitativas de acesso aos espaços públicos discursivos.

As exigências para a formação de um sistema comunicativo aberto e plural extrapolam o âmbito da organização do Estado. Dentre as características principais do processo discursivo em uma sociedade democrática se destaca a diferenciação, isto é, a deliberação pública acerca de questões envolvendo decisões coletivas e justificação, que influencia a elaboração de leis e políticas públicas, bem como os valores de permeiam a sociedade, ocorre em estruturas bastante distintas – embora, vale a ressalva, pretenda-se que representem contribuições ao mesmo processo comunicativo. Segundo Christiano, “esses diferentes espaços devem ser avaliados normalmente por padrões diferentes, mas eles devem se encaixar em um todo porque devem fazer contribuições ao processo decisório coletivo” (2012: 28)61. Os arranjos institucionais em sistema democrático deliberativo se

hegemonia dos sistemas de mediação, especialmente no que concerne à forma como se organizam as oportunidades de exercer as liberdades comunicativas.

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No original: “these different settings are evaluated normally by different standards but they are meant to fit together as a whole because they are meant to make contributions to a process of collective decision-making”.

organizam a partir de uma divisão do trabalho e de um diálogo interinstitucional, pois a comunicação pública abarca elementos tão distintos quanto o conhecimento especializado sobre o estado da arte da produção de leis e o conhecimento de causa daqueles mais diretamente afetados pela legislação.

Contudo, a divisão de tarefas sempre emerge como uma questão problemática nas preocupações da teoria democrática no que respeita à consolidação da igualdade política. É preciso indagar acerca das condições necessárias ao aproveitamento das vantagens da segmentação das responsabilidades com a garantia de uma forma de igualdade que é a base da própria ideia de autogoverno. Uma das características da ordem política nas democracias modernas é a existência de inúmeras instituições, tais como grupos de interesses, partidos políticos, universidades, meios de comunicação de massa, entre outros, que participam do processo comunicativo, cada qual operando por meio de lógicas distintas, defendendo diversos tipos de interesses e devendo, portanto, ser avaliados a partir de padrões específicos. Isso não significa, de qualquer maneira, que os cidadãos estão à mercê de instituições com interesses particulares, nem tampouco que, por isso, estejam impedidos de exercer o autogoverno.

Há diversas maneiras de compreender a ideia de autogoverno coletivo, bem como a forma por meio da qual os cidadãos o exercem. Como vimos nos capítulos anteriores, as teses da contribuição e da suficiência o fazem de modos particulares: no primeiro caso, os cidadãos exercem a autodeterminação pública na medida em que escolhem os seus representantes em pleitos livres e minimamente igualitários; no segundo, o fazem mediante a participação comunicativa e direta nas decisões coletivas. Para a tese da necessidade, o exercício do autogoverno está associado às oportunidades de participar das escolhas sobre os rumos da sociedade. Em outras palavras, uma sociedade será democrática na medida em que garanta a todos condições equitativas efetivas de discutir e influenciar os valores públicos não-instrumentais que informam as decisões vinculantes. Estes podem representar desde limites à ação do poder coletivo até objetivos que o governo deve perseguir afirmativamente. O sistema deliberativo articula a realização das funções necessárias a esse fim último, que é o próprio processo de autogoverno62.

Isso envolve, por um lado, a forma de organização da estrutura básica e o quanto as instituições que a compõem exercem duas funções: (1) facilitar a livre argumentação oferecendo, por exemplo, condições favoráveis à expressão, à participação e à associação, de modo a assegurar que os cidadãos sejam tratados como iguais nos processos discursivos; e (2) amarrar a autorização ao

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Dentre elas, a elaboração dos diferentes “pacotes de objetivos básicos” e a negociação e o acordo entre eles (CHRISTIANO, 2012: 33).

exercício do poder coercitivo da sociedade à justificação pública, mediante a construção de uma estrutura institucional que favoreça a responsividade e o accountability do poder político, estabelecendo eleições periódicas, transparência das decisões legislativas, liberdade de imprensa etc. Por outro, exige também a proteção aos valores da tolerância, às liberdades que asseguram o livre exercício da autodeterminação individual e as bases sociais do autorrespeito (RAWLS, 2003: 59). Tal proteção implica e se justifica pelo reconhecimento do status de igualdade entre os cidadãos “no que respeita à realização dos julgamentos impositivos finais sobre os assuntos coletivos” (COHEN, 2003: 109)63. Portanto, questões envolvendo a equidade no acesso às oportunidades de comunicação devem ser levadas em conta.