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PARTE 1 – DEMOCRACIA E COMUNICAÇÃO

1.4 O que é comunicação

A primeira problemática que se nos apresenta na aproximação com a ideia de comunicação é definir o próprio significado desse termo. Etimologicamente, “comunicação” tem origem no substantivo latino, originalmente forjado no século XV, communicationem, ou “a ação de tornar comum” (LIMA, 2012: 26). Relacionado a este significado etimológico, a expressão guarda uma contradição interna representada pelos verbos “transmitir”, que é uma ação unidimensional, de um lado, e “compartilhar”, um processo comunicativo, de outro. A “ação de tornar comum”, portanto, pode se relacionar tanto à transmissão quanto ao compartilhamento, polos opostos do processo comunicativo11. Essa ambiguidade não é o único obstáculo que emerge quando nos propomos a

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Como veremos na terceira parte desta tese, essa relação tem implicações nada banais para a interpretações dos direitos e liberdades relacionados à ação expressiva e à livre circulação de ideias.

lidar com o tema da comunicação, em especial na sua relação íntima com a esfera da política. Desde a sua inauguração, a palavra “comunicação” recebeu uma enorme rede de significados. Ora conotava “um objeto tornado comum”, noutra foi usada para designar os meios físicos de transporte, e, mais recentemente, nos remete aos meios tecnológicos de difusão de informações. De modo geral, a comunicação pode ser compreendida como “processo social básico e elemento constitutivo da própria natureza humana realizada por meio da simbolização, cujo melhor exemplo é a linguagem, embora ela, naturalmente, esteja presente em todos os outros processos” (Ibidem, 2012: 27-8)12.

Vou me orientar, neste trabalho, por uma ideia de comunicação entendida lato sensu como discussão pública. Compreenderemos a comunicação pública como um intercâmbio multifacetado e diversificado de discursos, argumentos, razões e opiniões13, uma troca que ocorre nos inúmeros fóruns formais e informais da esfera pública e do Estado, bem como entre uns e outros. A discussão pública não possui um domínio único; ela engloba ações tão distintas como formular e buscar fins coletivos, tomar decisões políticas a respeito de meios e fins, solucionar conflitos que envolvem interesses e princípios e resolver problemas que emergem em todas as sociedades. Ela deve, nesse sentido, tomar muitas formas. Sendo um fenômeno de massas, a relação entre comunicação e democracia não deve ser entendida como um arranjo político no qual milhões de pessoas se engajam, ao mesmo tempo, em uma discussão sobre um tema em particular, sob o mesmo formato institucional: “estudar a deliberação como um fenômeno de massas significa falar sobre fenômenos, isto é, significa generalizar sobre formas múltiplas, plurais e sobrepostas de discurso político dispostas no tempo e no espaço” (CHAMBERS, 2012: 54)14.

Ao optar pelo uso do termo “comunicação” dentro da linguagem das teorias da democracia, o fazemos em referência também ao campo semântico no qual se trava o debate intelectual sobre o seu papel na democracia e à série de conceitos que se relacionam à própria concepção de democracia. Todas as expressões que participam das definições desses termos refletem a disputa de linguagens no interior do campo acadêmico, bem como as experiências históricas e os processos de aprendizado práticos nas democracias modernas15.

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Nesta primeira parte, me interessa essa definição mais abrangente. Contudo, o objeto mais específico deste trabalho se relaciona às dificuldades e questões gerais colocadas pela primazia da comunicação mediada, ou a comunicação de massas, para as funções da comunicação na democracia.

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Uma concepção semelhante foi sustentada por John Dryzek (2004: 41-2). O autor enfatiza a competição de discursos na esfera pública como uma concepção de democracia discursiva – esta, por ela mesma, uma subcategoria crítica da democracia deliberativa.

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No original: “studying deliberation as a mass phenomenon means talking about phenomena, that is, generalizing about multiple, plural, and overlapping forms of political talk over time and place”.

15 Afastamo-nos, portanto, de uma visão tal qual esposada por Cohen, para quem, analisando a pesquisa de Jacobs et al.

acerca da delibeação em larga escala, sustenta que “while the findings about discursive participation are hopeful and important, I am uncertain about their bearing on deliberative democracy. Participation, even discursive participation, is

Definir não é, decerto, o mesmo que justificar. A justificação depende, em última instância, de um questionamento acerca dos fundamentos de determinado fenômeno no mundo. Na democracia, a comunicação é uma atividade essencialmente prática. Mas o que isso quer dizer? Segundo Chambers (2012), a comunicação pública orienta-se à busca de respostas para questões acerca “do que deve ser feito”. Acrescentaria, ainda, as interações sobre “quem somos”, “como nos relacionamos com o outro” e, de maneira geral, “que tipo de sociedade queremos”. As práticas comunicativas envolvem, assim, o oferecimento, a recepção e a avaliação de razões a favor ou contra um curso de ação, os fundamentos das relações entre as pessoas e a nossa própria compreensão de nós mesmos e do mundo. A maioria dos teóricos que lidam com a noção de democracia deliberativa passou recentemente a aceitar que a troca de razões que importa à democracia pode se dar em múltiplas formas de comunicação. Parte da literatura tende a aceitar que a deliberação, de maneira ampla, por seu estilo, deve ser entendida como – ou não pode ser absolutamente distinta de – um diálogo. A comunicação, nesse sentido, exige apenas regras que possam ser reflexivamente empregadas no próprio diálogo. De toda maneira, não devemos estabelecer de antemão o que deve ou não contar como uma razão nos múltiplos processos comunicativos que ocorrem na sociedade. Para Chambers, “não é a forma que determina se algo é uma razão, mas, antes, a função ou o propósito a que serve no discurso” (2012: 59)16.

Gostaria, em primeiro lugar, de evitar a associação exclusiva entre deliberação pública e uma forma de argumentação crítica, que traz consigo, via de regra, uma concepção impregnada de viés cultural, associada a contextos institucionais particulares, tais como o debate científico, os parlamentos modernos, os tribunais e os salões e cafés que se desenvolveram nas sociedades burguesas europeias do século XVIII. Esses fóruns, como sabemos, pressupõem uma forma de expressão determinada de antemão, tanto institucional quanto normativamente.

Chambers (2012: 56-9) distingue “deliberação” de “discussão”, pois sugere que a primeira recorre necessariamente a razões, enquanto a última pode se restringir a uma reunião de opiniões. Contudo, parece improvável que concepções sobre o bem comum emerjam sob condições de um pluralismo de valores irreconciliáveis. Ora, se a deliberação for apenas o debate sobre princípios de justiça, nós apenas muito raramente deliberamos nas sociedades reais. A comunicação pública em uma ordem política democrática não é apenas uma forma de deliberação entre sujeitos que compartilham de

not the same thing as deliberation. So we need to know whether discursive participants are reasoning and whether that reasoning has any impact on the exercise of power” (COHEN, 2007: 223).

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No original: “it is not the form that determines whether something is a reason but rather the function or purpose it serves in a discourse”.

antemão certos entendimentos básicos. Ela é frequentemente uma luta entre os membros de uma sociedade para ter os seus interesses, experiências e opiniões reconhecidos pelos demais, uma disputa para persuadir os que fazem parte de uma mesma associação da justiça das reivindicações de cada um. A defesa de interesses no espaço público constitui parte do que a própria teoria deliberativa denomina de afirmação de si. Faz sentido, portanto, sugerir que a deliberação não deve ser apenas um confronto racional de argumentos críticos para solucionar um problema coletivo, não deve excluir a representação de interesses pessoais, nem tampouco estar restrita a contextos institucionais formais de diálogo face a face (YOUNG, 2001)17.

Formas e conteúdos distintos de expressão circulam nos vários níveis da comunicação pública, desde os debates estruturados de acordo com normas institucionais até a conversação cívica do dia a dia que mantemos com as pessoas mais próximas de nós (SEARING et al, 2007). Embora as interações cotidianas sejam a fonte fundamental da elaboração das atitudes políticas dos cidadãos, estamos, via de regra, expostos a uma diversidade de razões. As discussões sobre temas moralmente relevantes, como o ideal de boa vida e a interpretação das necessidades, surgem no mundo da vida e reverberam posteriormente na esfera pública, quando podem se transformar em argumentos razoáveis, que potencialmente poderiam ser aceitos (ou não rejeitados) por todos. A esfera pública é, a qualquer tempo, a morada de uma constelação de discursos – compreendidos em termos de “um modo compartilhado de se compreender o mundo incrustado na linguagem” (DRYZEK, 2004: 49).

Com isso, procuro escapar também de restringir a discussão pública à consideração detida e cuidadosa de razões a favor e contra determinada proposição, um processo que pode tanto ser público e discursivo, quanto envolver apenas o equilíbrio das razões para realizar determinado curso de ação. A comunicação, como a estou entendendo aqui, não precisa necessariamente ser cuidadosa, séria e racional. Não faço, tampouco – e, por extensão –, uma avaliação epistêmica das práticas comunicativas18. Uma ideia de comunicação ampliada nos permite analisar criticamente as funções das práticas discursivas na democracia, tanto as suas qualidades quanto os seus defeitos, e as perspectivas contrastantes sobre o tema, sem ter necessariamente de oferecer, de antemão, um juízo de valor sobre a sua capacidade de subsidiar e promover resultados em acordo com ideais democráticos de tolerância, igualdade e justiça. Além disso, considero legítima tal abertura por entender que, embora os atores políticos institucionalizados (representantes eleitos e partidos

17 Iris Young denomina essa teoria ampliada de “democracia comunicativa” no intuito de “indicar a atribuição igual de

privilégios a qualquer forma de interação comunicativa (…) Enquanto a argumentação é elemento necessário num esforço para discutir e convencer outros sobre questões políticas, pode ser expressada de diversas maneiras, entremeada de, ou paralela a, outras formas de comunicação” (2001: 373-4).

18 Nos capítulos 2, 3 e 4 vou me debruçar sobre avaliações acerca do papel da comunicação na democracia. Neste

momento, vou concentrar meu esforço em tratar o tema apenas na definição do que entendemos por comunicação, bem como apontando as possíveis relações entre as práticas comunicativas e a democracia.

políticos, entre outros) tenham importância central no palco político, este palco não se limita às discussões entre tais personagens. A arena política também inclui as ações políticas de grupos e sujeitos na cultura pública de fundo ou nas esferas públicas informais. Na medida em que a dinâmica argumentativa se estende para os atores na sociedade civil – incluindo e dando voz a seus interesses, modos de fala e temas relevantes –, estes também participam da comunicação pública que vai além das arenas institucionalizadas e engloba as ações comunicativas de cidadãos em uma esfera pública bem mais ampla e fortemente mediatizada. Enfim, reconheço, com isso, que as democracias são sistemas complexos nos quais uma variedade de instituições, atores e arenas de discussão e contestação, incluindo as redes informais, os media, grupos de interesses organizados, universidades, além do sistema político formal, realizam funções comunicativas (MANSBRIDGE et al., 2012).

Afasto-me, assim, também, de uma definição institucional da relação entre comunicação e democracia, segundo a qual apenas a discussão orientada para decisões e relacionada ao exercício do poder coletivo, por meio do qual nós, o povo, nos autogovernamos, deveria importar à teoria política19. Uma definição como essa amarra a teoria ao status quo das estruturas institucionais, limitando a deliberação pública às discussões orientadas para decisões coletivas. Nesse sentido, restringe-se a relação entre discussão e democracia aos fóruns deliberativos formalmente empoderados pelo Estado, levando a uma visão limitada do impacto potencial da influência que flui de baixo para cima no sistema. A deliberação face a face só é possível, de fato, em pequena escala, ao tempo que a deliberação nas instâncias legislativas está confinada às formas de deliberação organizadas pelo Estado. Em nenhum desses casos há uma elaboração sobre os processos comunicativos conjuntos em que os cidadãos se engajam. A definição institucional acaba operando por uma amostra enviesada em sua variável dependente. Isto é, uma visão mais limitada sobre a deliberação antecipa a resposta à questão acerca do impacto da comunicação informal por meio de uma definição de ordem, que rejeita de antemão as formas comunicativas que não têm efeitos decisórios diretos sobre as escolhas dos atores institucionalizados e as leis implementadas mediante decisão coletiva.