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PARTE 1 – DEMOCRACIA E COMUNICAÇÃO

4.6 Democracia e divisão de tarefas

Como apresentei no início deste capítulo, uma aproximação sistêmica do modelo normativo da democracia deliberativa sugere a divisão de tarefas no sistema deliberativo, que implica certo

compartilhamento das responsabilidades no sentido de assegurar o ideal da igualdade que é base do valor da democracia (MANSBRIDGE et al., 2012). Há pelo menos duas razões para essa distribuição de funções. A primeira, de ordem funcional, se refere ao vasto número de decisões a serem tomadas em sociedades complexas, de modo que limites temporais e cognitivos (afinal, o engajamento em atividades políticas é apenas um dentre vários bens, o que faz com que seja somente uma dentre diversas concepções sobre a boa vida) convergem para restringir radicalmente a participação individual e, ao mesmo tempo, pressionam por outras formas de decisão. Em segundo lugar, é preciso considerar que boa parte dos espaços deliberativos, por uma questão prática, veda a participação mais ampla, seja pela especialização dos discursos que ali circulam, seja para manter a qualidade da deliberação. Com isso, abre-se um campo no qual torna-se necessário confiar a autoridade a outros indivíduos. Em um sistema como esse, a confiança na autoridade – ou, melhor dizendo, a sua legitimidade – se fundamenta na possibilidade perene do desafio discursivo às decisões vinculantes. Mesmo que os cidadãos, em geral, não lancem mão dessa oportunidade, a presença desse elemento pressiona as autoridades a agir responsivamente, isto é, a tomar decisões tendo em vista o possibilidade de serem chamados a público para justificá-las.

Sabemos que a modernidade se caracteriza por uma intensificação da distinção entre domínios de atividades e organizações em termos dos valores a que servem. Assim, a diversidade funcional ganha legitimidade na medida em que serve também a valores diversos: “desafios e deliberações que se desenvolvem nos limites de domínios funcionalmente distintos se referem aos bens que justificam as distinções” (WARREN, 1996: 49)94. Em termos práticos, isso significa que conferimos autoridade aos arranjos políticos pela crença em sua capacidade de realizar as funções a eles designadas e em virtude das possibilidades que oferecem de justificação das decisões tomadas. A ordem política democrática torna disponíveis às autoridades as razões públicas razoavelmente aceitáveis. O status impositivo de uma razão é dado, portanto, pela comunicação pública ativada pela proteção e o suporte democráticos95. Nesse sentido, a tese da necessidade sustenta que a legitimidade política é determinada (1) por oportunidades institucionalizadas de desafio discursivo e (2) por uma cultura pública crítica, institucionalizada em esferas públicas autônomas em intercâmbio comunicativo (Ibidem: 55)96.

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No original: “challenges and deliberations that develop at the boudaries of functionally distinct domains recur to the goods justifying the distinctions”.

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Em oposição, é claro, às perspectivas que tomam como dadas e disponíveis aos especialistas as boas razões para justificar decisões coletivas. Para uma versão “abrangente” das razões políticas adequadas.

96 A legitimidade democrática é corroída por dentro quando os “contextos de desafio crítico” (Warren, 1996: 56) são

marcados por desigualdades estruturais, de status etc. Nesse sentido, a influência do dinheiro, por exemplo, torna-se um problema grave na medida em que restringe a capacidade do público de impor questionamentos críticos às autoridades responsáveis por tomar decisões vinculantes.

Uma maneira de se conceber essa imagem se fia nas “teorias do diálogo”, que se contrapõem às teses apresentadas acima que defendem a supremacia das cortes ou a supremacia dos parlamentos no que concerne à última palavra nas decisões coletivas. Segundo essa perspectiva, um diálogo interinstitucional entre cortes, parlamentos e a esfera pública representa uma figura mais adequada e mais realista do procedimento de decisão coletiva em uma democracia. Para Mendes (2008: 165), o “diálogo nos torna sensíveis ao fato de que, na política, as decisões são provisórias, por mais custoso e demorado que seja revertê-las”.

Parte dessa literatura apresenta uma visão “minimalista” sobre o papel da corte no processo deliberativo mais amplo, sustentando uma compreensão de sua função como promotora do diálogo por meio de ações “prudentes e minimalistas” (SUNSTEIN, 2001). Outros autores supõem uma ação mais forte das cortes, que aconselhariam o debate público por meio de suas decisões. Tais conselhos não funcionam como imposições ou decisões definitivas, mas apenas como recomendações fundamentadas a outros poderes sobre rumos específicos a serem adotados. Ela representaria, assim, um dentre outros contextos de desafio discursivo no procedimento decisório, embora com um status institucional privilegiado. Nessa perspectiva, não há um intérprete supremo dos princípios constitucionais e normativos da democracia; nela, formas distintas de acomodação decisória vão surgindo e se conformando ao longo do processo discursivo. A interpretação mais adequada da constituição, assim, se constitui a partir de uma disputa política, não sendo passível de presunção administrada.

De acordo com Friedman, a democracia seria como uma “Babel”, em que as diversas vozes se chocam umas com as outras, se transformam mutuamente e, finalmente, se acomodam provisoriamente em um processo indefinido e infinito. Cabe ao governo e ao Estado mediar a discussão e tomar decisões vinculantes de modo a consolidar a pluralidade de vozes em leis e políticas legítimas. Os juízes, ademais, se encontram constantemente sob a pressão de seus pares, das instâncias inferiores, de outras instituições e, decerto, da opinião pública. O sistema constitucional, no caso, o norte-americano, ora se aproxima, ora se afasta da sociedade, de modo que o diálogo estimula a divergência e dá voz a atores políticos e sociais que, de outra forma, não seriam capazes de se fazer ouvir nas decisões coletivas (MENDES, 2008: 140-50).

Havendo rejeitado o procedimentalismo equitativo, a tese da necessidade ao mesmo tempo aceita a existência de critérios independentes, que são necessariamente horizontes utópicos para o mundo real, para julgar a correção ou a justiça das decisões democráticas e de suas consequências. Essa conclusão não implica, por certo, que se deva conferir a qualquer instituição em particular a

presunção da correção; isto é, nem às cortes, nem aos parlamentos, nem à sociedade civil, nem aos mercados se conjuga o peso da infalibilidade. Ainda que o judiciário tenha a prerrogativa de tomar decisões conclusivas, ele o faz tão somente no âmbito jurídico, pois a comunicação pública sobre um tema continua circulando na esfera pública e nas arenas institucionais a despeito dessas decisões, que sempre poderão ser modificadas no futuro. É mister que, após tomadas as decisões, os temas sejam reinaugurados e reinterpretados pela comunidade política.

Nesse sentido, essa tese da necessidade compartilha com a perspectiva do diálogo a imagem da interdependência entre procedimento e substância em uma ordem política democrática. Ou seja, os diversos arranjos políticos que se multiplicam na estrutura básica contribuem para que a política ultrapasse o caráter volitivo das teorias da contribuição e a natureza consensual das teses da suficiência, promovendo as práticas do julgamento fundamentado e de debate político ao longo do tempo. Assim, a construção da opinião pública e da vontade democrática emerge ao palco central da política democrática, surgindo como elemento essencial de um regime que oferece condições formais e efetivas ao exercício das liberdades políticas, de forma equitativa a todos os membros da sociedade. A ideia de sistema deliberativo se preocupa com o fomento de uma cultura pública de justificação das decisões que considero adequada ao autogoverno coletivo e ao ideal de igual respeito.

Essa perspectiva apresenta, portanto, uma noção, inspirada em Habermas, de sociedade descentralizada, que não confere a qualquer instituição em particular a prerrogativa de superioridade decisória sobre as demais. Com as teorias igualitárias inspiradas no liberalismo rawlsiano, a tese da necessidade sugere que as instituições devem ser organizadas não pensando exclusivamente no procedimentalismo ou o descartando por resultados substantivos adequados. Antes, o que se pontua é a necessidade de construir a institucionalidade de modo contribuir e respeitar as condições de igual respeito e consideração por todos enquanto membros plenamente livres e iguais da comunidade política. Os processos comunicativos, portanto, não tem um valor em si, mas também se orientam pela garantia da premissa igualitária, tanto internamente quanto externamente ao debate, i.e. as condições tanto quanto os outcomes da discussão pública devem ter como norte a igualdade democrática.

O autogoverno coletivo se apresenta, assim, na elaboração conjunta, entre os titulares da soberania e os seus delegados espalhados nos diversos arranjos sociais, cada qual exercendo a sua função, oferecendo novas perspectivas e respostas às questões que surgem nesse mundo em comum. Esse ideal reconcilia a ideia de que a opinião pública e a vontade democrática são construídas ao longo

do processo comunicativo com a abordagem sistêmica sobre a divisão do trabalho discursivo, pois compreende a comunicação pública como um fenômeno ao mesmo tempo ascendente e descendente, que compartilha a responsabilidade pela garantia da igualdade e do respeito mútuo entre os cidadãos e os arranjos institucionais representativos.