Assim, sendo progressivamente conquistados, os direitos de cidadania são históricos, sublinhou Bobbio (1992), caracterizados por “lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes” e são gra duais, não vindo todos de uma vez nem de uma vez por todas. Este “nem de uma vez por todas” é uma ressalva importante que Bobbio salienta, valendo lembrar que a noção de “evolução” em direitos nem sempre é muito adequada, pois implica a crença de que, uma vez realizados, eles não possam sofrer involução. E todavia sofrem. Justamente por serem históricos, frutos de lutas sociais, podem ser perdidos, uma vez alterada a correlação de forças que os concretizou e sendo sucedidas as gerações que os protagonizaram. A história contemporânea vem sendo analisada como a progressiva perda de direitos conquistados pela classe trabalhadora, em um contexto de globalização econômica, desemprego estrutural e exclusão social.
Segundo o escritor marxista Hobsbawm, o mundo contemporâ- neo está numa queda morro abaixo para a barbarização, vivendo um colapso sem precedentes e a ruptura das regras sociais, assim des- mantelando as defesas que a civilização do Iluminismo havia erguido contra a barbárie (HOBSBAWM,1995, p.13-30). O século XX estremeceu com duas guerras mundiais, a instauração e depois a dissolução do poder comunista, a dissolução de impérios coloniais, guerras no dito Terceiro Mundo, um extraordinário surto de crescimento econômico global após a Segunda Guerra Mundial, a formação e posterior esva- ziamento paulatino do Estado do Bem-Estar, a formação e gradual esvaziamento de uma classe trabalhadora industrial de massa. O século XXI começa se defrontando com três ordens de problemas: a crescente diferença entre ricos e pobres, o racismo e a crise ecológica (HOBSBAWM, 1992)..
A questão da possibilidade de involução, isto é, da queda em direção ao pior, também já era considerada por Protágoras de Abde- ra, sofista do século V a.C., que sustentava que a Ética, os princípios éticos, dependiam de um aprendizado e, portanto, se perdem se não forem cultivados. Protágoras argumentava que “a consciência e a jus- tiça são traços mentais conquistados a duras penas pela humanidade ao longo dos tempos, e que precisam ser adquiridos de novo a cada geração que nasce, mediante um longo processo de aprendizado” (FONSECA, 1994, p. 62).
Para Bobbio, a luta histórica por direitos foi marcada por uma mudança na busca da liberdade, que passa do desejo de que o Esta- do não aja (não oprima, não exorbite, não agrida, o que constitui a defesa da liberdade negativa, isto é, a liberdade do indivíduo contra o Estado), para o anseio por uma ação positiva deste (que o Estado garanta direitos, como o de representação política, de participação na riqueza coletiva, de saúde, educação, habitação etc.). Esta nova busca de liberdades positivas teve muito a ver com a chegada ao cenário político de novos sujeitos de direitos: enquanto a burguesia quis um Estado mínimo que não a atrapalhasse, que a deixasse livre, advogando, portanto, a liberdade negativa, o proletariado, ao se tor- nar cidadão, passou a postular outras atribuições e tarefas para o governo: que este seja o coordenador, construtor e garantidor do seu bem-estar, isto é, o proletariado passou a postular liberdades positivas. A construção destas liberdades positivas é uma história imbricada com a da social-democracia enquanto uma Terceira Via, um caminho
do meio entre capitalismo e comunismo e que pode ser resumido no direito a participar do gozo das riquezas sociais independentemente do quanto contribuiu para ela (ver capítulo sobre o Estado do Bem- -Estar e a Social Democracia.).
Resumindo o exposto até aqui, podemos destacar as seguintes características no conceito de cidadania:
• resultado não permanente de lutas históricas por direitos de liberdade negativa e positiva, havendo-se sempre com a possibilidade histórica de involução e perda de direitos; • construção e sustentação de uma ordem institucional – o
Estado de direito;
• construção de uma cultura política igualitária;
• existência de parâmetros de coesão e de conflito que nor- teiem o convívio social;
• limitação ao poder dos governantes;
• definição da alocação e uso das verbas públicas.
A cidadania revisitada pelas esquerdas
Entretanto, o conceito de cidadania (tal como o conceito de democracia) era malpercebido pelas esquerdas marxistas, que o tinham como uma abstração, um palavrório enganoso, do credo libe- ral burguês. “O povo quer algo mais do que liberdade e democracia em termos abstratos”, proclamou Fidel Castro em 1959, ao iniciar a revolução cubana.
Este menosprezo inicial das esquerdas pela cidadania provinha de fontes marxistas clássicas. Em 1843, ao escrever A questão judaica, Marx dialogou com Bruno Bauer,6 que havia criticado a pretensão dos judeus de terem emancipação política e direitos políticos, em suma, cidadania. Bauer acusava os judeus de serem egoístas, já que na Ale- manha daquele tempo ninguém era politicamente emancipado. Mas Bauer, segundo Marx, desviou-se do ponto principal, na medida em que se deteve na análise da oposição entre Judaísmo e Cristianismo e das relações entre a religião e o Estado. Para Bauer, dever-se-ia renunciar à religião e ao Judaismo, no caso, para poder ser emancipado como cidadão. Marx, por sua vez, argumentou que pretender a cidadania era amesquinhar a questão da emancipação humana, pois torná-lo
cidadão não era torná-lo humano. O homem político era para Marx nada mais que uma abstração, um homem artificial, alegórico:
A emancipação política é uma redução do homem a ser um membro da sociedade, um indivíduo independente e egoísta, um cidadão, uma pessoa moral. A emancipação humana só será completa quando o homem individual real tiver incorporado a si o cidadão abstrato (MARX,1978, p. 46).
Para Marx, os proclamados direitos do homem seriam apenas seus direitos enquanto membro da sociedade civil, ela própria produto de uma separação alienante entre a esfera pública e a esfera privada, separação esta trazida pelo capitalismo. Os direitos de cidadania seriam direitos do homem egoísta, separado dos outros homens e da sua comunidade pelos direitos à igualdade, liberdade, segurança e propriedade. A liberdade, criticava Marx, era a de um homem isolado, recolhido a si mesmo, era o direito a este isolamento. O direito à pro- priedade era na verdade o direito ao auto-interesse, algo que levaria cada homem a ver no outro a limitação à sua liberdade. A segurança nada mais era senão um conceito da polícia, por ele a sociedade era vista apenas para garantir a preservação de cada um de seus membros, era a ratificação do egoísmo humano. Em suma, todos os proclamados direitos do homem eram vistos por Marx como algo nocivo pois esta- vam concebidos para um indivíduo separado da sua comunidade. O homem, continuava Marx em sua crítica, não foi liberado da religião, mas recebeu liberdade religiosa. Não foi liberado da propriedade, mas recebeu a liberdade de ter sua propriedade. Não foi liberado do egoísmo dos negócios e sim recebeu a liberdade de negociar. Este homem da sociedade civil, que aparecia como homem natural e au- têntico, era na verdade um homem não-político. Para emancipá-lo, portanto, não bastava conferir-lhe estes direitos de cidadão abstrato, e sim acabar com a separação entre sociedade civil e Estado, entre a esfera pública e a esfera privada, devolvê-lo à comunidade, torná-lo humano e não cidadão. Tudo isso passaria, necessariamente, por um processo revolucionário e violento.
A partir exatamente de quando se deu a modificação, a partir de quando as esquerdas marxistas passaram a valorizar a cidadania, é difícil precisar. Sem dúvida, o Eurocomunismo dos anos 1960, com sua ênfase em um comunismo com democracia, o movimento norte-
-americano da New Left, com forte influência dos movimentos con- traculturais e libertários da juventude, as lutas latino-americanas e brasileiras de resistência aos governos ditatoriais militares, tudo isso somou e veio a acentuar-se de forma definitiva com a proposta russa de Gorbachev7 da Perestroika, isto é, a reestruturação, que buscava unir socialismo com democracia, para que se tivesse “mais socialismo”:
Perestroika significa iniciativa de massa: é o total desenvolvimento
da democracia, autogestão socialista, encorajamento da iniciativa e empenho criativo, disciplina e ordem melhoradas, mais glasnost [transparência], críticas e autocríticas em todos os campos de nossa sociedade. É também extremo respeito pelo indivíduo e consideração pela dignidade pessoal. Perestroika é a intensificação total da economia soviética, o renascimento e desenvolvimento dos princípios do cen- tralismo democrático na direção da economia nacional, a introdução sem exceções de métodos econômicos, a renúncia ao gerenciamento baseado em injunções e métodos burocráticos e o encorajamento geral de inovações na empresa socialista (GORBACHEV, 1987, p. 36). A inspiração democrática das novas esquerdas retomou a rei- vindicação da liberdade negativa para opor resistência aos desmandos ditatoriais. Após o processo de “redemocratização” brasileiro, a ênfase passou a estar na questão da cidadania e na participação. Assim, a cidadania passou a ser uma categoria estratégica, dotada de novos conteúdos e novos sujeitos (a cidadania coletiva) (CROVE, 1994), ganhando uma perspectiva de comunalidade, de construção do bem comum, do interesse público, para além do quadro de referência do individualismo.