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A ameaça da perda de direitos

No documento Em busca da boa sociedade (páginas 140-144)

Assim, sendo progressivamente conquistados, os direitos de cidadania são históricos, sublinhou Bobbio (1992), caracterizados por “lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes” e são gra duais, não vindo todos de uma vez nem de uma vez por todas. Este “nem de uma vez por todas” é uma ressalva importante que Bobbio salienta, valendo lembrar que a noção de “evolução” em direitos nem sempre é muito adequada, pois implica a crença de que, uma vez realizados, eles não possam sofrer involução. E todavia sofrem. Justamente por serem históricos, frutos de lutas sociais, podem ser perdidos, uma vez alterada a correlação de forças que os concretizou e sendo sucedidas as gerações que os protagonizaram. A história contemporânea vem sendo analisada como a progressiva perda de direitos conquistados pela classe trabalhadora, em um contexto de globalização econômica, desemprego estrutural e exclusão social.

Segundo o escritor marxista Hobsbawm, o mundo contemporâ- neo está numa queda morro abaixo para a barbarização, vivendo um colapso sem precedentes e a ruptura das regras sociais, assim des- mantelando as defesas que a civilização do Iluminismo havia erguido contra a barbárie (HOBSBAWM,1995, p.13-30). O século XX estremeceu com duas guerras mundiais, a instauração e depois a dissolução do poder comunista, a dissolução de impérios coloniais, guerras no dito Terceiro Mundo, um extraordinário surto de crescimento econômico global após a Segunda Guerra Mundial, a formação e posterior esva- ziamento paulatino do Estado do Bem-Estar, a formação e gradual esvaziamento de uma classe trabalhadora industrial de massa. O século XXI começa se defrontando com três ordens de problemas: a crescente diferença entre ricos e pobres, o racismo e a crise ecológica (HOBSBAWM, 1992)..

A questão da possibilidade de involução, isto é, da queda em direção ao pior, também já era considerada por Protágoras de Abde- ra, sofista do século V a.C., que sustentava que a Ética, os princípios éticos, dependiam de um aprendizado e, portanto, se perdem se não forem cultivados. Protágoras argumentava que “a consciência e a jus- tiça são traços mentais conquistados a duras penas pela humanidade ao longo dos tempos, e que precisam ser adquiridos de novo a cada geração que nasce, mediante um longo processo de aprendizado” (FONSECA, 1994, p. 62).

Para Bobbio, a luta histórica por direitos foi marcada por uma mudança na busca da liberdade, que passa do desejo de que o Esta- do não aja (não oprima, não exorbite, não agrida, o que constitui a defesa da liberdade negativa, isto é, a liberdade do indivíduo contra o Estado), para o anseio por uma ação positiva deste (que o Estado garanta direitos, como o de representação política, de participação na riqueza coletiva, de saúde, educação, habitação etc.). Esta nova busca de liberdades positivas teve muito a ver com a chegada ao cenário político de novos sujeitos de direitos: enquanto a burguesia quis um Estado mínimo que não a atrapalhasse, que a deixasse livre, advogando, portanto, a liberdade negativa, o proletariado, ao se tor- nar cidadão, passou a postular outras atribuições e tarefas para o governo: que este seja o coordenador, construtor e garantidor do seu bem-estar, isto é, o proletariado passou a postular liberdades positivas. A construção destas liberdades positivas é uma história imbricada com a da social-democracia enquanto uma Terceira Via, um caminho

do meio entre capitalismo e comunismo e que pode ser resumido no direito a participar do gozo das riquezas sociais independentemente do quanto contribuiu para ela (ver capítulo sobre o Estado do Bem- -Estar e a Social Democracia.).

Resumindo o exposto até aqui, podemos destacar as seguintes características no conceito de cidadania:

• resultado não permanente de lutas históricas por direitos de liberdade negativa e positiva, havendo-se sempre com a possibilidade histórica de involução e perda de direitos; • construção e sustentação de uma ordem institucional – o

Estado de direito;

• construção de uma cultura política igualitária;

• existência de parâmetros de coesão e de conflito que nor- teiem o convívio social;

• limitação ao poder dos governantes;

• definição da alocação e uso das verbas públicas.

A cidadania revisitada pelas esquerdas

Entretanto, o conceito de cidadania (tal como o conceito de democracia) era malpercebido pelas esquerdas marxistas, que o tinham como uma abstração, um palavrório enganoso, do credo libe- ral burguês. “O povo quer algo mais do que liberdade e democracia em termos abstratos”, proclamou Fidel Castro em 1959, ao iniciar a revolução cubana.

Este menosprezo inicial das esquerdas pela cidadania provinha de fontes marxistas clássicas. Em 1843, ao escrever A questão judaica, Marx dialogou com Bruno Bauer,6 que havia criticado a pretensão dos judeus de terem emancipação política e direitos políticos, em suma, cidadania. Bauer acusava os judeus de serem egoístas, já que na Ale- manha daquele tempo ninguém era politicamente emancipado. Mas Bauer, segundo Marx, desviou-se do ponto principal, na medida em que se deteve na análise da oposição entre Judaísmo e Cristianismo e das relações entre a religião e o Estado. Para Bauer, dever-se-ia renunciar à religião e ao Judaismo, no caso, para poder ser emancipado como cidadão. Marx, por sua vez, argumentou que pretender a cidadania era amesquinhar a questão da emancipação humana, pois torná-lo

cidadão não era torná-lo humano. O homem político era para Marx nada mais que uma abstração, um homem artificial, alegórico:

A emancipação política é uma redução do homem a ser um membro da sociedade, um indivíduo independente e egoísta, um cidadão, uma pessoa moral. A emancipação humana só será completa quando o homem individual real tiver incorporado a si o cidadão abstrato (MARX,1978, p. 46).

Para Marx, os proclamados direitos do homem seriam apenas seus direitos enquanto membro da sociedade civil, ela própria produto de uma separação alienante entre a esfera pública e a esfera privada, separação esta trazida pelo capitalismo. Os direitos de cidadania seriam direitos do homem egoísta, separado dos outros homens e da sua comunidade pelos direitos à igualdade, liberdade, segurança e propriedade. A liberdade, criticava Marx, era a de um homem isolado, recolhido a si mesmo, era o direito a este isolamento. O direito à pro- priedade era na verdade o direito ao auto-interesse, algo que levaria cada homem a ver no outro a limitação à sua liberdade. A segurança nada mais era senão um conceito da polícia, por ele a sociedade era vista apenas para garantir a preservação de cada um de seus membros, era a ratificação do egoísmo humano. Em suma, todos os proclamados direitos do homem eram vistos por Marx como algo nocivo pois esta- vam concebidos para um indivíduo separado da sua comunidade. O homem, continuava Marx em sua crítica, não foi liberado da religião, mas recebeu liberdade religiosa. Não foi liberado da propriedade, mas recebeu a liberdade de ter sua propriedade. Não foi liberado do egoísmo dos negócios e sim recebeu a liberdade de negociar. Este homem da sociedade civil, que aparecia como homem natural e au- têntico, era na verdade um homem não-político. Para emancipá-lo, portanto, não bastava conferir-lhe estes direitos de cidadão abstrato, e sim acabar com a separação entre sociedade civil e Estado, entre a esfera pública e a esfera privada, devolvê-lo à comunidade, torná-lo humano e não cidadão. Tudo isso passaria, necessariamente, por um processo revolucionário e violento.

A partir exatamente de quando se deu a modificação, a partir de quando as esquerdas marxistas passaram a valorizar a cidadania, é difícil precisar. Sem dúvida, o Eurocomunismo dos anos 1960, com sua ênfase em um comunismo com democracia, o movimento norte-

-americano da New Left, com forte influência dos movimentos con- traculturais e libertários da juventude, as lutas latino-americanas e brasileiras de resistência aos governos ditatoriais militares, tudo isso somou e veio a acentuar-se de forma definitiva com a proposta russa de Gorbachev7 da Perestroika, isto é, a reestruturação, que buscava unir socialismo com democracia, para que se tivesse “mais socialismo”:

Perestroika significa iniciativa de massa: é o total desenvolvimento

da democracia, autogestão socialista, encorajamento da iniciativa e empenho criativo, disciplina e ordem melhoradas, mais glasnost [transparência], críticas e autocríticas em todos os campos de nossa sociedade. É também extremo respeito pelo indivíduo e consideração pela dignidade pessoal. Perestroika é a intensificação total da economia soviética, o renascimento e desenvolvimento dos princípios do cen- tralismo democrático na direção da economia nacional, a introdução sem exceções de métodos econômicos, a renúncia ao gerenciamento baseado em injunções e métodos burocráticos e o encorajamento geral de inovações na empresa socialista (GORBACHEV, 1987, p. 36). A inspiração democrática das novas esquerdas retomou a rei- vindicação da liberdade negativa para opor resistência aos desmandos ditatoriais. Após o processo de “redemocratização” brasileiro, a ênfase passou a estar na questão da cidadania e na participação. Assim, a cidadania passou a ser uma categoria estratégica, dotada de novos conteúdos e novos sujeitos (a cidadania coletiva) (CROVE, 1994), ganhando uma perspectiva de comunalidade, de construção do bem comum, do interesse público, para além do quadro de referência do individualismo.

No documento Em busca da boa sociedade (páginas 140-144)