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A democracia e as esquerdas

No documento Em busca da boa sociedade (páginas 177-183)

Nas esquerdas, a questão da democracia sempre foi polêmica, recheada de dilemas: refutar ou aceitar a democracia parlamentar; ter ou não ter um procedimento interno democrático entre os revo- lucionários; quando ser democrático, antes, durante ou só após a consolidação do mundo comunista?

As esquerdas marxistas, segundo Stanley Moore (1964), oscila- ram entre diferentes táticas para a construção da sociedade socialista.

Tais táticas dizem respeito à relação entre a maioria e a minoria, entre elites de vanguarda e povo, ao grau de democracia possível no pro- cesso de transformação social. O autor assim distinguiu tais táticas: a) a doutrina blanquista, conspiratória, teoria da revolução

permanente ou revolução da minoria,8 que, pela via insur- recional, tomaria o poder, o palácio do governo, o aparato estatal, como uma primeira tarefa, para, em seguida, transformar a sociedade e, em terceiro lugar, como decor- rência da eficácia dessas transformações prioritárias, conquistar a adesão da maioria. Para Blanqui, a insur- reição seria tarefa de uma elite, centralizada e hierárquica, uma vez que a maioria da população estava impedida, pela dominação e pela religião, de reconhecer seus ver- dadeiros interesses. Assim, teriam de ser reeducadas por uma elite revolucionária, provisoriamente ditatorial. Seriam característicos dessa concepção os textos de Marx sobre a Luta de Classe em França e a primeira mensagem à Liga Comunista. Lenin (1870–1924) também estaria aqui encaixado, em sua crítica à proposta revisionista: Marx compreendeu perfeitamente este traço essencial da democracia capitalista, quando diz em sua análise da experiência da Comuna: autorizam-se os oprimidos, de tantos em tantos anos, a decidir qual será, entre os representantes da classe dos opressores, aquele que, no Parlamento, os representará e os esmagará [...]. A marcha para a frente, a partir desta democracia capitalista – inevitavelmente estreita, reprimindo sorrateiramente os pobres e, por conseguinte, fundamen- talmente hipócrita e mentirosa – não leva simples, direta e tranqüila- mente a “uma democracia cada vez mais perfeita”, como pretendem os professores liberais e os oportunistas pequeno-burgueses. Não. A marcha para a frente, isto é, para o comunismo, se faz passando pela

ditadura do proletariado [...] pois não existem outros meios para quebrar a resistência dos capitalistas exploradores (LENIN, 1962, p. 107).

Um pequeno núcleo bem unido, composto pelos operários mais se- guros, mais experientes e mais bem temperados, com delegados nos principais bairros e em rigorosa ligação clandestina [...] Aqueles que, sob o absolutismo, querem uma ampla organização de operários, com

eleições, relatórios, sufrágio universal etc. são uns utopistas incuráveis (LENIN, 1979, v. 1, p. 163).

b) A doutrina da miséria crescente: pela teoria da miséria crescente, ou revolução da maioria, a industrialização estimularia o crescimento de um movimento sindica- lista, que geraria um movimento socialista. Uma minoria armada burguesa resistiria à transição pacífica para o Socialismo e levaria os assalariados a uma vida de cres- cente miséria. A maioria, organizada e tendo consciência da exploração sofrida, revoltar-se-ia e promoveria a revo- lução socialista. Teríamos então um primeiro movimento de formação e conquista da maioria, seguido da tomada do poder e da transformação da sociedade (veja-se o

Manifesto comunista, a Crítica ao programa de Gotha e O capital, de Marx). Kautsky9 também apostou nas crises como fator de aguçamento das lutas entre capital e traba- lho. Desse enfrentamento entre reação e revolução, de um lado cresceria o capital financeiro e a resistência às reformas; de outro, cresceria a organização do proletaria- do. Para Kautsky, entretanto, a pauperização absoluta do proletariado não se confirmaria; portanto, o colapso do capitalismo adviria das questões de ordem política. As condições objetivas para o Socialismo estariam dadas pela própria questão política, pela perda de confiança da massa no governo desgastado; pela crise do aparelho burocrático e com base na direção firme do partido. Para Kautsky não poderia existir socialismo sem democracia, baseada no princípio representativo, no sufrágio univer- sal e na pluralidade de partidos.

Só um cego político pode afirmar ainda hoje que o sistema representativo fortaleça, inclusive em regime de sufrágio universal, o domínio da burguesia e que, para destruir essa dominação, seja necessário eliminar em primeiro lugar o sistema representativo. Já agora começa a apa- recer de modo claro que um autêntico regime parlamentar tanto pode ser um instrumento da ditadura do proletaria- do quanto da ditadura da burguesia (HOBSBAWN, 1992, p. 315).

c) A teoria dos sistemas concorrentes ou o revisionismo de

Bernstein (1850–1932):10 por esta teoria, a transição para a sociedade socialista deveria ocorrer gradualmente, utilizando a democracia. Bernstein defendeu a idéia de que a crença na pauperização e na proletarização era er- rada, seria mera superstição: ao contrário, os segmentos médios se expandiam e o aumento do número de capita- listas se dava em todos os níveis (BERNSTEIN, 1964). A organização democrática seria o caminho e a condição para o Socialismo. Segundo o autor, os fins últimos do Socialismo não seriam nada, mas o movimento em di- reção a ele seria tudo. De acordo com esta concepção, a construção do Socialismo far-se-ia pela transformação paulatina e progressiva da sociedade, o que traria a par- ticipação democrática da maioria e, em conseqüência, a pulverização do poder. Socialismo seria, portanto, o movimento no sentido de uma ordem social baseada no princípio da associação. O revisionismo de Bernstein re- vive a crença de Robert Owen, para quem “a era socialista chegaria como um ladrão dentro da noite”.

Essas três táticas são resumidas por Moore da seguinte forma, segundo a inversão de suas fases:

a) Blanquismo: a minoria faz a revolução, toma o poder, pro- move mudanças socialistas e assim conquista a adesão da maioria;

b) Teoria da Miséria Crescente: a maioria faz a revolução, toma o poder e transforma a sociedade para o Socia lismo; c) Reformismo: a transformação gradual e democrática da

sociedade amplia a participação, pulveriza o poder e vai criando, aos poucos, a sociedade socialista.

Para Lenin (1961, 1980a, 1980b, 1980c, 1980d), identificado com o blanquismo da primeira alternativa de mudança revolucionária, as propostas democráticas de Kautsky e de Bernstein eram absolutamen- te equivocadas: segundo ele, a democracia burguesa é charlatanice e a proposta de Kautsky era a proposta de um renegado, de um lacaio da burguesia:

A democracia pura é uma frase mentirosa de liberal. Kautsky demonstra que a democracia burguesa é progressiva e que o proletariado deve obrigatoriamente utilizá-la na sua luta contra a burguesia, isso é, charla-

ta nice de liberal. Kautsky toma do marxismo aquilo que é aceitável

para os liberais (o papel histórico progressista do capitalismo e da de mo cracia capitalista) e rejeita o que é inaceitável para a burgue- -sia (a violência revolucionária). Kautsky [...] um lacaio da burguesia (LENIN, 1980d, p. 15).

Segundo Lenin, a frase de Bernstein, de que o movimento é tudo e o objetivo final nada, significaria aceitar ficar ao sabor das circunstâncias, rebaixando-se ao imediato, cotidiano, em detrimento dos objetivos mais amplos:

O objetivo final não é nada, o movimento é tudo” – esta frase prover- bial de Bernstein exprime a essência do revisionismo melhor do que muitas dissertações. A política revisionista consiste em determinar o seu comportamento em função das circunstâncias, em adaptar-se aos acontecimentos do dia, às viragens dos pequenos fatos políticos, em esquecer os interesses fundamentais do proletariado e os traços essen- ciais de todo o regime capitalista, de toda a evolução do capitalismo, em sacrificar esses interesses fundamentais em favor das vantagens reais ou supostas do momento (LENIN, 1980, v. 1, p. 45).

O nosso pecado capital consiste em rebaixar as nossas tarefas políticas e de organização ao nível dos interesses imediatos, tangíveis, concretos da luta econômica cotidiana (LENIN, 1980, v. 1, p. 134).

Em nome do processo revolucionário, Lenin fechou a Assem- bléia Constituinte russa e advogou uma “ditadura democrática do pro-

letariado”, como uma fase de transição, uma vez que não existiriam

outros meios para quebrar a resistência dos capitalistas exploradores. Trabalhava inspirado pelas palavras de Marx na crítica ao programa de Lasalle11 para o Partido Social-Democrata alemão. Marx (1978) escrevera:

Entre a sociedade capitalista e a comunista existe um período de transformação revolucionária de uma na outra. A isto corresponde um período de transição no qual o Estado nada mais pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado.

Aderindo a esta concepção, Lenin defendeu esta ditadura pro- letária como o único meio de quebrar a resistência dos capitalistas opressores:

A ditadura do proletariado, isto é, a organização da vanguarda dos oprimidos em classe dominante para reprimir os opressores, não se pode limitar a uma simples ampliação da democracia [...] a ditadura do proletariado traz consigo uma série de restrições à liberdade para os opressores, os exploradores, os capitalistas; é preciso quebrar sua resistência pela força [...] democracia para a imensa maioria do povo e repressão pela força, isto é, exclusão da democracia para os exploradores, para os opressores do povo: tal é a modificação que sofre a democracia durante a transição do capitalismo ao comunismo. (LENIN, 1961, p. 107-108).

Só depois, uma vez concluída esta transição, seria possível falar em liberdade. Aí então a democracia desapareceria, juntamen- te com a extinção do Estado, porque ela era uma forma de Estado. Para Lenin, a democracia não passaria de uma etapa no caminho do feudalismo ao capitalismo e deste ao comunismo. O “democratismo” sairia do marco da sociedade burguesa, evoluindo para o socialismo, a primeira fase. Nesta fase, os cidadãos transformar-se-iam em ope- rários assalariados do Estado, os registros e controles da produção e repartição seriam simplificados, colocados ao alcance de qualquer um que soubesse ler e escrever e conhecesse as quatro operações; a sociedade não seria senão um só escritório e uma só oficina, com igualdade de trabalho e de salário. Tal como na Comuna de Paris descrita por Marx, haveria um governo barato, sem exército perma- nente e sem funcionalismo, supressão de verbas de representação e demais privilégios, redução de vencimentos ao nível dos salários dos operários; os conselheiros eleitos para os sovietes seriam revogáveis a qualquer momento e os funcionários da justiça seriam despojados de seus disfarces de independência, pois também seriam eleitos e revogáveis (O Estado e a revolução).

Contra a idéia da ditadura proletária, Rosa Luxemburgo (1871– 1919)12 comentou (1972, p. 57-71):

O remédio que Trotsky e Lenin encontraram, a eliminação da demo- cracia, é pior que a doença a qual pretende curar, pois detém a única

fonte viva da qual pode vir a correção das falhas das instituições sociais, a vida política ativa, enérgica, não atrelada, das mais largas massas do povo.

A liberdade apenas para os que apóiam o governo, apenas para os membros de um partido, não é liberdade alguma.

A suposição tácita que está sob a teoria da ditadura do proletariado de Lenin e Trotsky é a de que a transformação socialista é uma fórmula pronta que jaz no bolso do partido revolucionário e que só precisa ser levada a cabo na prática. Fortunada ou infortunadamente, essa não é a questão. Bem ao contrário de ser um conjunto de fórmulas prontas que só precisam ser aplicadas, a concretização do socialismo como um sistema econômico, social e jurídico é algo que está completamente oculto nas brumas do futuro.

O Socialismo na vida real demanda uma transformação espiritual completa na vida das massas, degradadas que estão por séculos de domínio burguês. Instintos sociais em vez dos egoístas, iniciativa em vez da inércia, etc. etc., ninguém descreve isso e repete isso mais teimosamente do que Lenin. Mas ele está completamente equivocado nos meios que emprega. A única forma de renascimento é a própria escola da vida pública, a democracia mais ilimitada e larga e a opinião pública [...]. Sem eleições gerais, sem irrestrita liberdade de imprensa e de reunião, sem uma livre disputa de opinião, a vida se descolore em qualquer instituição pública, se torna um arremedo de vida, no qual só a burocracia permanece como elemento ativo. A vida pública adormece e uma dúzia de líderes de energia inesgotável e experiência ilimitada dirige e governa [...] uma elite da classe trabalhadora é convidada de tempos em tempos a comparacer a encontros onde aplaude discursos dos líderes e aprova, unanimemente resoluções propostas [...] forma- -se uma clique, não a ditadura do proletariado, mas a ditadura de um punhado de políticos.

No documento Em busca da boa sociedade (páginas 177-183)