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Sociedade civil

No documento Em busca da boa sociedade (páginas 196-199)

a origEm E o PaPEl das ONGs

As sociedades modernas caracterizam-se pela existência das associações, que constituem, segundo Gramsci,1 as inúmeras “organizações voluntárias” que expressam diferentes interesses e constroem o consenso. As propostas de democracia participativa, da gestão social da coisa pública (ver capítulos sobre Cidadania e sobre Democracia) têm como premissa a presença de organizações de cidadãos que, como definiu Durkheim (ver capítulo sobre Durkheim), seriam as organizações secundárias, a intermediação desejada entre o indivíduo e o Estado.

Sociedade civil

A soma dessas associações voluntárias compõe a Sociedade Civil, expressão que, entretanto, possui diferentes histórias e signi- ficados:2

a) O significado de Sociedade paisana, por oposição à corte palacial: refere-se ao contingente de pessoas e catego- rias sociais não-militares, em uma sociedade dominada pelo estamento militar. As coletividades humanas foram tradicionalmente dominadas de início pelos guerreiros e pelos sacerdotes, que se firmaram como os dois Estados (status/estamentos) de poder, privilégios e prestígio: a nobreza (oriunda das virtudes guerreiras) e o clero, ou a força e a crença. O primeiro e o segundo Estado. Não nos esqueçamos que a palavra “paisana” diz respeito à realidade da produção camponesa, gente historicamente sem poder diante dos palácios, mas que começa a emergir na Europa e a ser definida, juntamente com a burguesia recente, como o Terceiro Estado. Neste sentido, socie- dade é uma expressão que tem a ver com este chamado Terceiro Estado, o povo em geral, em oposição aos dois estados (status/estamentos) de poder tradicional. O próprio conceito de sociedade, segundo os sociólogos

alemães contemporâneos, Horkheimer e Adorno, veio a ser formulado durante a ascensão da burguesia moder- na, em oposição ao paço, ao palácio, locus do poder aristocrático e eclesiástico. A expressão “sociedade civil” teria aparecido em 1794, com Von Schlozer, significando uma reação burguesa ao Estado absoluto.

b) O significado do mundo empresarial da produção: na se- gunda acepção, Sociedade Civil é a esfera da produção econômica, o mundo empresarial. Para Hegel (1770–1831), filósofo idealista alemão do século XIX e ideólogo do Estado prussiano, essa esfera da produção econômica era aquela na qual os homens, saídos do seio da família, ainda estariam orientados por interesses particularistas e objetivos egoístas, associando-se por meio das suas ne- cessidades. A Sociedade Civil, para o filósofo, era inferior à esfera política, era uma etapa inferior à constituição da sociedade política, ou seja, do Estado.

Sociedade Civil ou burguesa é a esfera dos indivíduos que deixaram a unidade da família para ingressar na competição econômica. É uma arena de necessidades particulares, interesses egoístas e divisionismo, dotada de um potencial de autodestruição (HEGEL, 1967).

Marx (1818–1883), em muitos pontos um seguidor de Hegel, também definiu a Sociedade Civil como algo ruim, o terreno do materialismo crasso, da luta de cada um contra todos. Para Marx, a Sociedade Civil surgiu da destruição da sociedade medieval, quando os antigos laços de vassalagem que uniam os homens foram subs- tituídos pelas necessidades egoísticas de indivíduos atomizados, separados uns dos outros e da comunidade. Segundo esta acepção, Sociedade Civil seria o sinônimo de sociedade burguesa, soma de indivíduos encerrados em sua privacidade, resultado da separação moderna entre o público e o privado. Segundo Marx, a revolução proletária comunista deveria abolir a Sociedade Civil e o Estado, assim reintegrando a esfera pública, política, à esfera privada.

c) O significado de associação dos cidadãos (civitas): o ter- ceiro entendimento de Sociedade Civil tem a ver com um sentido civilizatório, com a emergência da civitas, com o exercício da cidadania: Sociedade Civil é a associação dos cidadãos, dos que têm o status civilis, a cidadania, o poder político, o direito de participar das decisões definidoras dos rumos da coletividade. Tem a ver com o sentimento de pertencimento a uma comunidade política. Esta acepção está presente em várias nuanças do pensa- mento político, desde o liberalismo clássico, que enfatiza o direito a associar-se como um dos direitos civis do indivíduo, até a interpretação das ONGs – organizações não-governamentais – contemporâneas, que se referem à sociedade civil como o seu locus, onde se formam os grupos de resistência e de emancipação, em luta pela construção dos contrapoderes.

A Sociedade Civil teve predominantemente, segundo Bobbio (1982, 1990), uma definição negativa, como vindo a ser “tudo aquilo que sobra uma vez delimitado o âmbito no qual se exerce o poder estatal”. Em relação ao Estado, a Sociedade Civil é vista por diferentes prismas:

• como pré-condição do Estado, significando o pré-estatal. O entendimento de Sociedade Civil enquanto sociedade pré- estatal significa o infra-estrutural, o mundo da produção econômica, a sobrevivência, sendo o Estado o superestru- tural, ou seja, ordenamento jurídico, as regras. Seria a sociedade natural, que surge antes da sociedade política; • como a antítese do Estado, significando o antiestatal.

Nesta acepção, a Sociedade Civil é o locus onde se formam grupos de resistência e de emancipação, que lutam pela construção dos contrapoderes;

• como a alternativa e o fim do Estado, significando o pós- estatal. Aqui a Sociedade Civil representaria o ideal de uma sociedade sem Estado, uma nova etapa, que surgiria da dissolução do poder político.

Se Marx havia entendido por Sociedade Civil o conjunto das relações econômicas que constituem a base material da sociedade, o marxista italiano Gramsci (1978) a redefiniu como sendo a esfera na

qual os aparelhos ideológicos buscam exercer a hegemonia e obter o consenso. Assim, para Gramsci, a Sociedade Civil é o “aparato privado de hegemonia”, isto é, o conjunto de associações voluntárias – escolas, partidos, sindicatos, empresas, meios de comunicação etc. – onde se constrói a opinião, o consenso e se obtém, via convencimento, a adesão, a ideologia, a hegemonia. Enquanto os aparatos de governo dominariam pela coerção, o aparato privado de hegemonia dominaria pelo convencimento3 e consentimento. Para Gramsci, a Sociedade Civil faria parte, juntamente com o aparato de governo, do conceito de Estado Ampliado.

Tal distinção foi útil para Gramsci a fim de sugerir diferentes tá- ticas para a transformação revolucionária das sociedades em busca da vida comunista, que ele chamaria (na sua linguagem cifrada de escritor tentando escapar à censura da prisão) de “sociedade regulada”. Assim é que, em um país que tivesse uma máquina de Estado forte diante de uma Sociedade Civil amorfa e gelatinosa, caso da Rússia czarista (que ele chamaria de “sociedade oriental”), a tática revolucionária deveria pautar-se por guerras de movimento para tomar de assalto a máquina estatal, fazer as transformações necessárias e, a partir delas, conquistar a anuência e adesão das pessoas em geral. Ao contrário, nas “sociedades ocidentais”, já possuidoras de uma Sociedade Civil expressiva, a tática transformadora deveria ser a das guerras de

posição, resistindo e disputando palmo a palmo e cotidianamente as

trincheiras da Sociedade Civil, as associações construtoras da opinião e do consenso, as escolas, os meios de comunicação, ganhando cora- ções e mentes e assim processando a revolução.

Este terceiro entendimento de Sociedade Civil como a civitas adequa-se a algo que recentemente passou a ser chamado de Terceiro Setor.

O terceiro setor: movimentos sociais, ONGs e OSCIPs

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