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Hegel versus Nietszche

No documento Em busca da boa sociedade (páginas 99-106)

Estas questões sobre a racionalidade partem de dois paradig- mas do pensamento filosófico moderno: de um lado, o pensamento ético hegeliano, que crê na razão, na sociedade racional como sendo o horizonte da história humana, isto é, que nos passa a convicção de que o homem e a sociedade trilham uma história que tem um destino (telos), a construção da sociedade racional; de outro, a rebeldia niet- zschiana, que descrê e zomba desta racionalidade humana e social: Hegel versus Nietzsche. Tracemos uma brevíssima resenha de suas concepções e um paralelo entre os dois.

Hegel e Nietzsche são ambos alemães do século XIX (Hegel viveu no território então definido como Prússia, entre 1770 e 1831, e Nietzsche de 1844 a 1900). O primeiro foi contemporâneo das grandes revoluções que marcaram o surgimento da Modernidade: a Revolução Francesa de 1789 e a fundação do mundo burguês; a Revolução Americana e a Declaração dos Direitos do Homem (1776–1791). Conviveu ainda com o período da Restauração européia (1815–1830), que pregava a ordem acima da liberdade, com os eventos napoleônicos, que organizaram os estados germânicos, e com a reação bélica do prussiano Frederico Guilherme III contra Napoleão. Nietzsche foi contemporâneo da Guerra Civil Americana (1861–1865), da Guerra Franco-Prussiana (1870), da experiência da Comuna de Paris (1871), dos movimentos abolicionis-

tas e da emancipação dos servos na Rússia (1861). Hegel viveu sob o reinado de Frederico Guilherme III e Nietzsche na época do chanceler Bismarck (1878–1890). Nietzsche foi um pensador que conviveu com o puritanismo da era vitoriana (período do reinado da rainha Vitória, na Inglaterra, de 1837 a 1901, que extravasou as fronteiras inglesas e definiu o que o próprio Hegel chamaria o Espírito do seu tempo). Em suma, estavam em pauta no período histórico em que ambos viveram as questões relativas à liberdade e à ordem, à possibilidade de cria- ção e de persistência de uma sociedade na qual liberdade e ordem se conciliassem.

O pensamento hegeliano está desenvolvido ao longo das se- guintes obras:

• Escritos teológicos, de 1790 a 1800; • A fenomenologia do espírito, de 1806; • A ciência da lógica, de 1812 a 1816;

• Enciclopédia das ciências filosóficas, de 1817; • A filosofia do direito; e

• A filosofia da história, ambas em 1820.

Para Hegel, História e Filosofia estavam ligadas: a História não seria um apanhado de eventos aleatórios, mas teria um sentido, a rea- lização do caminho em direção à liberdade, à Eticidade (Sittlichkeit), ou seja, em direção a uma sociedade ética, harmoniosa, que só seria conseguida através da concretização da sociedade política, do Estado constitucional. Estado, cidadania, liberdade seriam fenômenos da Razão (Vernunft); a Razão seria a força histórica a colocar a humani- dade em marcha, reorganizando-a socialmente, fazendo-a ir além da comunidade familiar, completando e superando a fase da sociedade civil burguesa, na qual os homens se unem apenas em torno de seus interesses particulares e econômicos, para chegar ao Estado, visto por Hegel como a autêntica comunidade (Allgemeinheit), quando os indivíduos se percebem como parte de uma realidade mais universal. Divergindo de Kant, outro filósofo idealista alemão (1724–1804), para quem a razão humana era inata, um a priori, Hegel a vê como um movi- mento dialético, como algo que se desenvolve, aprofunda-se e eleva-se. Em sua Fenomenologia do espírito, este movimento da consciên- cia até a Razão é apresentado através de figuras ou etapas: uma primei- ra figura, definida como a do saber imediato ou certeza sensível, que

passa para uma segunda, a da percepção, e desta para uma terceira, a do discernimento ou razão analítica (Verstand). A quarta figura seria a da autoconsciência, após a qual se chega, então, à quinta, a Razão (Vernunft); dela Hegel concebe a sexta fase, a do desenvolvimento do espírito e daí a proximidade à Idéia Absoluta, que ele aproximava à noção de Deus. Busquemos entender apenas o movimento da primeira até a quinta figura, o atingir da Razão, e como isto tem a ver com a temática do Estado e da cidadania: na primeira figura, o saber imediato ou conhecimento sensível advém dos sentidos. Mas, atenção, ele não parte do que usualmente é visto como concreto, do contato com uma realidade empírica que, para Hegel, ao contrário, era uma abstração. Para Hegel, o concreto será o resultado do conhecimento sensível, é o conceito construído, ou seja, a realidade que nos cerca só faz sentido para nós porque construímos conceitos sobre ela (enquanto não a apreendemos em conceitos, ela continua a ser uma abstração); ultrapassada a fase da percepção, através da qual começamos a es- capar do imediato e a duvidar de nossos sentidos, chegamos à razão analítica, que constrói os conceitos através dos quais organizamos o mundo e nossa compreensão dele. Mas a razão analítica é ainda uma razão menor, pode ser enganosa, pois está baseada no acúmulo de informações e na sua redução aos conceitos já construídos. A fase que se segue, da autoconsciência, que nossos jovens tanto prezam – quem

sou eu? – e cuja busca os pequenos filósofos de nossos dias tanto

exploram nos seus livros de esoterismo e auto-ajuda, é com muita perspicácia apresentada por Hegel como uma fase ainda insuficiente: nela cada um se define pela alteridade, ou seja, pela oposição ao outro. Hegel a exemplifica através da contradição dialética entre o senhor e o escravo: o senhor é aquele que não é escravo, é quem comanda, mas não tem a experiência humana do trabalho; o escravo é aquele que não é senhor, que vive sua condição humana dada pelo trabalho, mas sem liberdade. Assim, a liberdade e a condição humana para am- bos, para o senhor e para o escravo, só se realizarão quando a luta e a contradição entre o senhor e o escravo se superarem na realidade da comunidade, do bem e do interesse comum, do Estado, da cidada- nia. Quando o senhor e o escravo forem dialeticamente destruídos, superados, transformados em cidadãos, quando se atingir a Razão, a noção do “nós”. Dito de outra forma, a identidade que os jovens buscam parece só poder ser encontrada, de acordo com Hegel, na vivência do sentimento comunitário.

Essa transformação histórica em direção à Razão, ao Estado, à cidadania é examinada por Hegel como um processo dialético. Inspi- rado no estudo da filosofia grega pré-socrática, em Heráclito de Éfeso (540 – 480 a.C.), para quem tudo existia em constante mudança, em um processo dinâmico e contraditório de transmutação, Hegel examina a História como uma totalidade dinâmica, um contínuo movimento de superação ou suspensão dialética (aufheben), através do qual as trans- formações se operam pela negação da realidade, pela preservação de algo essencial desta realidade e pela sua elevação ou passagem a um plano superior. Contudo, sendo Hegel um religioso, um cristão, esse Devir dialético termina idealmente no encontro com a Idéia Absoluta, com o plano divino (Hegel parece assim encerrar a dialética e cair no platonismo, na perfeição do não-movimento final, na contemplação das esferas celestes essenciais, na união com o divino.).

É importante compreender a filosofia hegeliana como uma defe- sa da Ética, das instituições legais, do entendimento do Estado como a única forma de se atingir a liberdade: só é livre, em última análise, quem é cidadão, quem se move pelo interesse comum. O Estado é tex- tualmente definido como a realização da liberdade, como a realização da idéia da Ética, como a organização racional da sociedade acima e após a superação das classes. O Estado evoluiria dialeticamente do despotismo ou tirania encontrados nas nações orientais, onde só um, aquele que comanda, é livre, para as formas democráticas e aris- tocráticas do mundo greco-romano, onde, embora exista o domínio da lei, apenas uns poucos são livres. Da superação desta forma, che- garíamos à síntese, à elevação até a forma da monarquia hereditária constitucional, segundo Hegel, o próprio mundo germânico, no qual todos são livres. O Estado ético hegeliano é concebido por ele como um fenômeno das classes médias, este segmento social percebido por Hegel como detentor da inteligência cultivada e da consciência jurídica de um povo.

Hegel, apesar do hermetismo e do estilo severo, pesado, de seus textos, pode ser visto como um filósofo otimista, para quem a dialética da história prenunciava um final feliz e harmonioso, a liber- dade dentro da boa ordem do Estado constitucional (KONDER, 1991).

Passemos a Nietzsche.

O pensamento de Nietzsche se apresenta ao longo das seguintes obras:

• Andarilho e sua sombra, de 1880; • Aurora, de 1881;

• Gaia ciência, de 1882;

• Assim falou Zaratustra, de 1884;

• Para além do bem e do mal; Ecce homo, humano, demasiado

humano, de 1886;

• A genealogia da moral, de 1887; • Crepúsculo dos ídolos, de 1888.

Nietzsche atacou o próprio pensamento filosófico; para ele só valia a pena a filosofia que antecede Sócrates (470 – 399 a.C.), uma filosofia não-moral, que estava preocupada com a cosmogonia e a cosmologia, a origem do mundo, o princípio das coisas, da physis, do mundo físico. Tal era a filosofia das colônias gregas da Ásia Menor (Mileto, Éfeso, Samos, Abdera etc.). Esta filosofia pré-socrática, do século VIII ao século IV a.C., tratava do elemento básico que seria a origem das coisas – se água, ar, fogo, infinito etc. (Tales, Anaximandro, Anaxímenes...); com Pitágoras, usava a matemática para descobrir a harmonia do cosmos, expressa nos intervalos numéricos através dos quais encontraríamos a identidade fundamental entre os seres; incor- porava Empédocles, para quem o universo é um resultado do amor e ódio; chegava à escola atomista de Leucipo, que pensou a existência do vazio, do não-ser, onde se movem os átomos; englobava Heráclito, o inspirador da dialética hegeliana...

Com Sócrates e a partir dele, a filosofia se volta para a moral, analisa o bem, o belo, a boa sociedade, os governos, as virtudes dese- jadas aos governantes, as relações entre os homens. Para Nietzsche ela então se degenera, deixa de valer a pena e ele passa a defini-la como tendo virado o “recenseamento de todas as razões que o homem se dá para obedecer”. A filosofia platônica e sua derivação, o Cristianismo, são vistas por Nietzsche como hostis à vida, pois pervertem os ins- tintos; trata-se de uma moral construída pelos fracos, pelos escravos e vencidos, para tentar dominar os fortes. A moral, conclui Nietzsche, é o ódio ao humano.

Fracos que dominam os fortes? Quem são os fracos, quem são os fortes para Nietzsche?

Todos nós nascemos com o que Nietzsche chama de uma “von- tade de potência”, com uma energia vital que tenderia a se expandir nos seus aspectos dionisíacos: o emotivo, o irracional, a alegria, a

dança, o riso. (Dionisos era o deus grego que simbolizava o carnaval, a dança, a orgia, correspondendo, na mitologia romana, a Baco.) A vontade de potência é esta força criadora, que afirma a vida, que conquista. Tem a ver com o que Nietzsche denomina de forças ativas. A vontade de potência (que podemos ver como próxima do que Freud viria a chamar de libido) nada tem a ver com dominação ou vontade de deter poder sobre as outras pessoas. Ao contrário, a partir da tragédia moderna (que provocou a cisão, a separação entre o lado dionisíaco, da exuberância, da desordem, da música, do poeta, e o lado apolíneo da clareza, da harmonia, da ordem, dantes unidos), a vontade de potência foi subjugada pela vontade de poder, pelo gosto pelo domínio, pelo triunfo das forças reativas que, inspiradas pelo ressentimento, trazem a vontade de negar, negam a vida e colocam em seu lugar o niilismo, o nada, a negação. Assim, os fortes, aqueles que têm em si as forças ativas da vontade de potência, dos valores da vida, acabam submetidos a uma moral criada pelos fracos, inspirados pelas forças reativas, secundárias, de adaptação e de regulação.

Deleuze (19--), filósofo francês contemporâneo, seguidor e “explicador” de Nietzsche, chama nossa atenção para as três figuras alegóricas do pensamento nietzschiano: o camelo, o leão, a criança. Submetidos aos fardos morais, à cultura niilista e trágica, somos como o camelo no deserto, carregando submissos nossos fardos; o camelo, porém, pode sacudir sua canga e sua carga e transformar-se em um leão, libertando a sua vontade de potência; o leão, forte, transforma-se na criança, livre, ser ainda intocado ou não degenerado pela moral. Mas a criança cresce, adquire valores morais, vira camelo... e o ciclo trágico parece se fechar no eterno retorno...

Inspirado em tais pensamentos (que parecem ter muito da rebeldia e da afirmação adolescente e terem sido uma reação aos códigos puritanos da era vitoriana na qual viveu), Nietzsche critica o conhecimento que mata o agir, critica o Estado, que, embora tido como alvo supremo da humanidade (alusão a Hegel), é na verdade estúpido e “o mais frio de todos os monstros frios”. Comedimento e temperança, louvados por Aristóteles na Antiguidade, Nietzsche pre- fere defini-los como mediocridade. O Socialismo, que para muitos de seus contemporâneos seria a melhor alternativa, é desprezado como “o irmão mais jovem do decrépito despotismo”.

Nietzsche critica a religião – “conjuro-vos, meus irmãos, per- maneçam fiéis à terra, não acreditem naqueles que vos falam de es- peranças supraterrestres: são envenenadores, maldizentes da vida, intoxicadores de quem a terra está cansada.” Tampouco, porém, as outras formas de conhecimento são poupadas: a filosofia e a ciência mataram Deus e por isso aviltaram o ser humano, pois este se avilta quando, “já não tendo necessidade de instância superior, proíbe a si próprio o que lhes proibiam”. Este assassino de Deus, que desencan- tou o mundo, é para Nietzsche o mais ignóbil dos homens. E a cultura moderna que disso resultou é percebida como não tendo mais nada de vivo.

Em face de tudo isso, não há sentido, nós é que inventamos as finalidades: o animal homem não teve até agora nenhum sentido, escreveu Nietzsche em O crepúsculo dos ídolos. O ilógico, geralmente menosprezado por causa do valor emprestado à racionalidade, é visto por Nietzsche em Humano, demasiado humano, como necessário e fonte do muito que nasce de bom.

Hegel é lembrado pelo grande público como o ideólogo do Estado forte prussiano; ironicamente, também Nietzsche acabou apontado como um inspirador de um Estado forte, do nazismo, por causa da sua menção, em Ecce homo, aos traços aristocráticos do or- gulho e do gosto pelo risco por parte da personalidade hipotética de um super-homem que não se preocupa em ter as virtudes cristãs da compaixão, da piedade e da humildade. Durante algum tempo posto de lado também por conta da loucura em que caiu ao final da sua vida, Nietzsche foi resgatado do limbo filosófico nos anos 1980, quando sua mordacidade e sua iconoclastia foram redescobertas e revalorizadas por uma juventude que passava igualmente a descrer de tudo que caracteriza a Modernidade.

Assim, as duas perspectivas filosóficas, a de Hegel e a de Nietzs- che, podem ser vistas como duas expressões diferentes e antagônicas, a respeito do Estado, da liberdade, dos sentidos do mundo moderno. Ambas, porém, oferecem reflexões críticas sobre a (ir)racionalidade destes tempos: usando as categorias e o referencial hegeliano, po- demos dizer que este Estado legal, resultado da Razão, onde todos serão livres porque serão cidadãos, esta comunidade política ética, é mais um parâmetro, um ideal, que contrasta com a realidade que temos: é ainda muito de uma busca, é algo que está por ser construído na dialética da história. O Estado, a liberdade, a cidadania e a racio-

nalidade que agora temos seriam contrafacções, farsas, antíteses a serem superadas para a construção da liberdade, da cidadania e da racionalidade reais. A Modernidade estaria ainda por ser alcançada. Ela seria um projeto incompleto.

O pensamento de Nietzsche, ao contrário, em lugar de estimu- lar a crítica diante de um mundo ainda insuficientemente moderno mas que precisaria completar-se, recusa esta Modernidade e tudo que nela está contido – ciência, filosofia, Estado, socialismo, ressen- timento, niilismo, capitalismo... A filosofia nietzschiana vai ser então a matriz inspiradora daqueles que hoje vêem chegados os tempos pós-modernos, em que não há ética nem sentido, em que se vive o momento e se dá vazão às forças dionisíacas. Se alguns sentem mal- -estar com estes tempos pós-modernos e tentam ressuscitar Deus e reencantar o mundo, muitos outros dão alegremente por encerrado o breve interregno cristão e suas virtudes moralizadoras.

Os significados da Pós-Modernidade: o avesso da utopia

No documento Em busca da boa sociedade (páginas 99-106)