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Democracia como negociação de conflitos: estrutura institucional democrática e incerteza generalizada

No documento Em busca da boa sociedade (páginas 191-196)

Colocados os diferentes entendimentos do que significa a demo- cracia e apontadas as diversas críticas que a proposta democrática sofreu, qual o seu futuro, perguntou-se Bobbio (1986). Para o autor, como foi acima apontado, há diversas promessas não cumpridas pela democracia real: o regime democrático não conseguiu derrotar o poder oligárquico; tampouco conseguiu eliminar o poder invisível (máfia,

camorra, serviço secreto, lobbies e grupos de pressão mais ou menos

bandidos enquistados na máquina de Estado); ainda não conseguiu educar para a democracia, segundo as inspirações da paideia grega: pelo contrário, o que existe entre nós é a apatia política. Por outro lado, o excesso de participação também é ameaçador e pode aumentar a apatia eleitoral, provocando o empenho de poucos e a indiferença de muitos, observou Bobbio.

Przeworski (1994), cientista político social-democrata con- temporâneo, define a democracia moderna com palavras como “incerteza”, “temporário”, que sugerem o quanto há de processo, de algo necessariamente inacabado nos procedimentos democráticos: a democracia é conceituada como sendo um governo temporário, uma institucionalização da incerteza, em que todos submetem seus interesses à competição. A democracia é vista, assim, como “um sis-

tema de incerteza organizada, de desfecho regulado e aberto” (1994, p.

29). Portanto, a democracia se traduz pela aceitação da existência de conflitos e por sua solução temporária e negociada. Falar em incerte- za, todavia, não significaria, pondera o autor, falar em caos, anarquia ou imprevisibilidade, pois um pressuposto básico da democracia é a existência de uma estrutura institucional dentro da qual organizações coletivas competem entre si. O que dá o tom democrático é esta estru- tura. Przeworski minimiza a importância do voto dentro deste quadro institucional. O voto, diz ele, apenas ratifica resultados ou confirma o poder dos responsáveis por tais resultados:

Em todas as democracias modernas, o processo deliberativo e a super- visão cotidiana do governo são bem resguardados da influência das massas [...] Por essa razão o voto – o governo da maioria – é apenas o árbitro final numa democracia (PRZEWORSKI, 1994, p. 30).

Todavia, esta estrutura institucional não cai do céu por bênçãos divinas, ela é feita e refeita, costurada e descosturada por homens e grupos que se pressionam e se impõem limites, com interesses nem sempre os mais altaneiros. São as diferentes elites que se defrontam no cenário político, construindo o apoio das massas por meio do voto e da opinião pública.

Isso que para Przeworski aparece como natural na democracia – a incerteza, o conflito de interesses – Guéhenno (1194) lamenta como sendo o sintoma de uma sociedade que desistiu de transcender inte- resses e criar a vontade geral rousseauniana, para apenas gerenciar situações nas quais a razão iluminista foi substituída pelo confronto profissional de interesses. Guéhenno define tal sociedade como uma “sociedade sem cidadãos”, onde existem alianças provisórias em situações efêmeras.

A democracia, tal como foi dito no início, não é apenas um mecanismo de preenchimento de cargos: ela é uma ética e carrega em si, ainda segundo Bobbio, o somatório de alguns ideais: o ideal da tolerância, da não-violência, da fraternidade, do livre debate de idéias e da renovação gradual da sociedade. A democracia é um processo e uma busca. Quando e até que ponto conseguiremos realizá-los, eis a questão.

No Brasil, ainda parece válida a observação de Sérgio Buarque, escrita em 1936:

A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la aos seus direitos e privilégios [...] e assim puderam incorporar como fachada alguns lemas que pareciam os mais acertados para a época e eram exaltados nos livros e discursos (HOLLANDA, 1976, p. 119). Ponto de vista similar foi expresso por Alberto Torres, também no início do século, ao criticar o regime republicano brasileiro: “este Estado não é uma nacionalidade; este país não é uma sociedade; esta

gente não é um povo. Nossos homens não são cidadãos” (TORRES apud CARVALHO, 1995, p. 33).

O mal-entendido democrático brasileiro também é entrevisto na análise contemporânea que José de Souza Martins (1994) faz sobre a “dinâmica pendular” da política brasileira, que há décadas vem oscilando entre períodos de centralização política e ditadura e períodos de abertura política e relativa democracia, nos quais há um discurso liberal das oligarquias de base latifundiária. Martins chama nossa atenção para o curioso liberalismo das oligarquias brasileiras, que se coaduna com o escravismo. Neste discurso, o que passa por democrático é na verdade a defesa do localismo, da autonomia das oligarquias rurais; o que passa por disputa democrática é a disputa entre oligarquias das diferentes regiões (oligarquias paulistas, minei- ras, nordestinas) contra um poder central que, embora autoritário e conservador, tem sido mais modernizante e inovador que as oligar- quias atrasadas travestidas de liberais.

Notas

1 Pronuncia-se “raich” (reich).

2 A democracia de Péricles (494–429 a.C.), segundo H. Jaguaribe (1982), tinha 300 mil habitantes e 150 mil cidadãos. É a democracia direta do povo reunido na colina Pnyx semanalmente. Ela é resultado de uma evolução de três fases anteriores: na primeira fase, havia o basileus (rei), o polemarca (autoridade militar) e o arconte (autoridade civil); na segunda fase, cria-se um arcontado coletivo, de nove magistrados com mandato anual, eleitos pela ecclesia (assembléia); há ainda um conselho de anciãos, o Areópago; na terceira fase, Solón criou o Boulé, conselho de 400 (100 para cada tribo, com membros recrutados por sorteio).

3 A Grécia antiga teria, assim, evoluído de um governo centralizado na figura do “basi-

leus”, chefe da guerra, juiz e sacerdote supremo, para um governo aristocrático, no

qual um conselho de famílias nobres – o Areópago – funcionava ao lado do basileus. Estes nobres acabaram substituindo o basileus pelos arcontes, magistrados eleitos entre os nobres e que tinham mandato de um ano (séculos VIII e VII a.C.). Dentre os

arcontes citam-se Dracon (621 a.C.), autor do primeiro código escrito, que limitava

o direito das famílias nobres, e Solón, autor da reforma social e política de Atenas. Solón aboliu as dívidas, resgatou os que haviam caído em servidão e introduziu a Assembléia Popular e o Conselho dos 400. Solón classificou os atenienses em quatro grupos, de acordo com sua riqueza, e assim graduou os direitos e deveres de cada

um para com o Estado. Por esta reforma, as classes mais altas podiam autoequipar- -se para combater e ter acesso aos altos cargos. A classe mais baixa – os thetes – era a mais pobre, que apenas servia na infantaria, como auxiliares no serviço naval e como marinheiro dos trirremes. Podiam participar da Assembléia, mas não ocupar cargos. Após Solón, a Grécia conheceu, ao longo do século VI, a tirania, ou seja, o governo daqueles que se apoderavam do poder pela violência ou pela astúcia. Com Clistenes, a Ática foi dividida em circunscrições territoriais chamadas demos que, em grupos de dez, formavam as tribos. O Conselho dos 400 foi ampliado para 500 (50 por tribo), e o exército se dividiu em dez regimentos (um para cada tribo). Havia um estratega (general) para comandar cada regimento e 5.000 juízes para integrar tribunais populares (500 por tribo), (BARIDON; ELLAURI, 1958).

4 Cf. JAEGER (1987).

5 Inglaterra, 1837–1848, movimento que defendia a chamada Carta do Povo. 6 John Stuart Mill (1806–1873), autor de Princípios de economia política.

7 Segundo MacPherson, este modelo teria sido formulado pela primeira vez por Joseph Schumpeter, em 1942, em seu livro Capitalismo, socialismo e democracia.

8 Luis Augusto Blanqui (1805–1881) foi um revolucionário francês, seguidor de Babeuf e de Buonarroti.

9 Karl Kautsky (1854–1938), nascido em Praga, era filiado ao Partido Social-Democrata austríaco e ao alemão. É considerado o maior pensador marxista da Segunda Inter- nacional (1889–1914). Em seu livro O caminho para o poder, atacou os revisionistas e também a proposta da ditadura do proletariado, defendendo a idéia de uma aliança da classe operária contra o poder do Estado. Foi criticado por Lenin e por Rosa Luxemburgo.

10 O alemão Eduard Bernstein foi um social-democrata marxista, autor do Socialismo

evolucionário, no qual rejeitava a idéia da revolução e da ditadura do proletariado

e propunha a democracia como caminho reformista para o socialismo. Suas idéias foram por isso criticadas como uma revisão, isto é, uma deturpação do marxismo. 11 Ferdinand Lasalle foi um dos fundadores do SDAP – Partido Social-Democrata dos

Trabalhadores, na Alemanha, em 1869, em busca de um Estado livre popular. Tal partido, em 1890, viria a transformar-se no atual SPD (Partido Social-Democrático da Alemanha).

12 Rosa Luxembrugo foi uma economista polonesa que migrou para a Alemanha e se tornou figura importante no socialismo europeu e na Liga Espartaco, defendendo a proposta da greve de massas. Criticou Lenin, Kautsky e Bernstein. Foi, por sua vez,

criticada como “espontaneísta”. Após anos de prisão, foi assassinada por oficiais da direita alemã.

13 Jacobinismo diz respeito às idéias revolucionárias da França de 1789, defendidas por militantes como Robespierre, Marat, Pétion, que se reuniam em um convento de frades jacobinos. As idéias jacobinas eram radicais e populistas: o povo é bom e só precisa ser educado, o governo é ruim. Cf. OLIVEIRA FILHO (1987).

No documento Em busca da boa sociedade (páginas 191-196)