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Os significados da Pós-Modernidade: alívio ou mistificação?

No documento Em busca da boa sociedade (páginas 112-117)

A Pós-Modernidade, segundo Callinicos, diria então respeito a uma sociedade que rejeita o pressuposto racionalista da sociedade moderna, que teria realizado, ou buscado realizar, os ideais ilumi- nistas. (Em lugar de Kant e Hegel, do devir histórico construtor da racionalidade, a Pós-Modernidade estaria fundamentada em Nietzsche e na sua elegia à exuberância dionisíaca, a uma energia vital que se

expande no emotivo, no irracional, na alegria, na dança, no riso, no aqui e agora. Nietzsche, com efeito, ilustraria bem este comportamento pós-moderno da razão enlouquecida e soturna, nostálgica da alegria e do descompromisso. Se a Modernidade é o sentido do futuro, a Pós- -Modernidade é o presente, o aqui e agora.

Assim, Callinicos reduz o Pós-Modernismo a um sintoma a respeito de uma forma de refletir e de expressar-se sobre o nosso momento. Não significaria mudanças substanciais e factuais da nossa realidade, mas sim a construção de um novo olhar sobre ela. Assim, não haveria Pós-Modernidade, nem o advento de uma sociedade dife- rente, mas um pensamento e um olhar sobre ela. E este pensamento seria um sintoma de decadência.

Um olhar que Bourdieu12 também definiu como estúpido, de conservadores que estariam sendo pagos para serem estúpidos, que preferem falar em globalização e não em imperialismo, de imposição das regras americanas ao resto do mundo. Para Bourdieu, o que há de realidade e de tendência na sociedade contemporânea é a televisão como um instrumento antidemocrático, a tendência ao capitalismo ilimitado, a lógica do lucro sem limites, tudo isso podendo gerar como resposta política o terrorismo.13 Bourdieu parece concordar com o pessimismo de Hobsbawm sobre a nova barbárie que se avizinha e na qual recrudescerão o alargamento da distância entre ricos e pobres; o recrudescimento do racismo e da xenofobia e a crise ecológica. Essa barbárie, escreveu Hobsbawm, significaria o desmantelamento incessante das defesas que o Iluminismo havia erguido. Significa nos acostumarmos ao desumano e a tolerar o intolerável. Ou, como defi- niram Heller e Fehér, a arte de ficarmos satisfeitos em uma sociedade insatisfeita.

Como se pode depreender, há aqui uma argumentação moral, em um debate ideologicamente recortado. O debate sobre a Pós-Moderni- dade ou Pós-Modernismo é mesmo um campo minado, segundo David Harvey. Com efeito, algumas esquerdas o denunciam, como Bourdieu e Callinicos, outras o incorporam. Para Boaventura Santos, há dois Pós- -Modernismos: a) um Pós-Modernismo reconfortante ou de celebração e b) um Pós-Modernismo inquietante ou de oposição. O primeiro tipo, celebrativo, nos faz lembrar dos ensaios de Fukuyama sobre o fim da história, dado o triunfo capitalista, e dos ensaios de A. Toffler (1980, 1990) sobre a sociedade informacional, de mosaicos, que nos teria livrado do embotamento da sociedade de massas. No segundo tipo

estariam aqueles que Callinicos chamou de pós-marxistas, no qual Boaventura se situa. Harvey, um destes pós-marxistas, viu aspectos positivos na condição Pós-Moderna, tais como a desconfiança intensa com todos os discursos totalizantes, a redescoberta do pragmatismo na filosofia, a ênfase na descontinuidade e na diferença, a rejeição às metanarrativas. Seria o despertar do pesadelo da Modernidade, com sua razão manipulativa e com o fetiche da totalidade. (Os marxistas, ao contrário, preferem chamar a isto a necessidade de se fazer a grande síntese.)

Habermas14 havia colocado a Modernidade como um projeto, vindo do século XVIII até nós em busca da emancipação humana e do enriquecimento da vida cotidiana. Neste projeto, o domínio científico havia prometido nos liberar da escassez e das calamidades naturais; o desenvolvimento de formas racionais de organização social prometia nos livrar das irracionalidades dos mitos, das superstições e do uso arbitrário do poder, bem como do lado negro da face oculta da natu- reza humana. Mas o projeto iluminista, como o mostraram Adorno e Horkheimer, transformou o apelo por emancipação em um sistema de nova opressão universal. O Modernismo implicou um fascínio com a técnica, com a velocidade, com a máquina e com o sistema fabril. Foi também uma reação urbana às novas condições de produção e de consumo. Já o pós-moderno, segundo Harvey, seria resultante de uma transformação cultural lenta, emergente nas sociedades ocidentais, que pode ser discutida quanto à sua natureza e profundidade, mas que aí está. Não seria um paradigma, mas uma realidade para Harvey.

Para Giddens, o que se vem chamando de Pós-Modernismo são reflexões estéticas sobre a natureza da Modernidade, ora exacerbada. Não há Pós-Modernidade, mas a exacerbação da Modernidade e o exaspero de todos nós com ela. Giddens definiu a Modernidade por um dinamismo que separa tempo do espaço, daí esvaziando o tempo. Na Modernidade, há processos de desencaixe e de deslocamentos, e a apropriação reflexiva do conhecimento. O dinheiro e os sistemas-pe- ritos através dos quais nos submetemos aos experts são mecanismos de desencaixe. Esta Modernidade tem suas dimensões institucionais: vigilância, capitalismo, industrialismo e poder militar. A globalização que vivemos significa apenas a intensificação das relações sociais em escala mundial, não a superação destes mecanismos de desencaixe e de abstrações.

Há ou não mudanças factuais que nos distingam da Moderni- dade? Haverá apenas o olhar reflexivo sobre a Modernidade, ou há novas experiências fundamentais? Os pós-modernos celebrativos, para usar a expressão de Boaventura Santos, insistem na importância das mudanças factuais (globalização econômico-financeira, sociedade informacional globalizada etc); os pós-marxistas também analisam mudanças culturais significantes: Frederic Jameson (1996, p.16-22), por exemplo, identifica uma nova lógica cultural no capitalismo tardio, fase que ele define como reflexo e aspecto de uma nova modificação no seu sistema. Não é a cultura de uma ordem social totalmente nova, mas a expressão de uma nova etapa capitalista que se caracteriza por empresas transnacionais, nova divisão internacional do trabalho, nova dinâmica vertiginosa de transações bancárias internacionais e das bolsas de valores, novas formas de inter-relacionamento das mídias, fuga da produção para áreas do Terceiro Mundo, computadores e au- tomação, emergência dos yuppies. Esta nova fase capitalista tem uma cultura que integra a produção estética à produção das mercadorias, com hegemonia norte-americana. Os marxistas negam tudo isso como uma falácia mistificadora e reacionária.

Segundo Kujawski (1988), a substância característica da Mo- dernidade é a do enriquecimento vital e da superabundância de pos- sibilidades de vida. Seria o ponto de apogeu de um ciclo civilizatório. Lembra-nos e cita-nos Ortega e Gasset, para quem a Modernidade se referia à fase de maturidade de cada povo e civilização (a Grécia do século VI a.C. e a Roma do século II a.C. foram, neste sentido, períodos modernos). Portanto, este “continente desconhecido” que seria a Pós- -Modernidade pode ser entendido como a representação do ponto de inflexão para outro ciclo, já não mais marcado pela defesa da vida e pela crença na superação, na ascese.

Para Boaventura Santos, o pós-moderno é o esgotamento de um paradigma, o paradigma da Modernidade, que antecedeu o capitalismo e que se extingue antes dele. Este paradigma moderno já esgotado estava constituído por dois pilares ora demolidos: o da regulação (Estado, mercado e comunidade) e o da emancipação. Boaventura Santos vê uma correspondência entre o paradigma moderno e as três fases do capitalismo: o capitalismo liberal, o capitalismo organizado, e o atual capitalismo desorganizado.

No primeiro período, assomavam as contradições da Moderni- dade: as contradições e dicotomias entre solidariedade/identidade;

justiça/autonomia; igualdade/liberdade. Segundo o autor, o sonho acalentado de uma possível harmonia entre Estado, mercado e comu- nidade entrou em colapso ainda nesta primeira fase; a própria noção de comunidade se atrofiou, reduzindo-se à idéia de sociedade civil (agregação competitiva de interesses particulares) e à idéia do indiví- duo (formalmente livre e igual). No segundo período, do capitalismo organizado, expandiu-se o princípio do mercado; concentração e cen- tralização capitalista. A comunidade passou a significar as práticas de classe e a emergência de uma cultura de massas. No terceiro período, que começa nos anos 1960, o mercado colonizou o Estado e a comu- nidade, com o conseqüente enfraquecimento das práticas de classe, da retração do Estado e das políticas sociais, desregulação global. A Ética se fragmentou em microéticas e teria havido a transformação das energias emancipatórias em energias regulatórias.

O que parece estar subjacente à análise de Boaventura Santos é o que ele próprio conceitua como “inadequação das análises socio- lógicas e suas nebulosidades”, quando usamos, principalmente, uma teoria sociológica derivada dos países centros-do-mundo.

Para dar conta destas dificuldades, o autor faz uma revisão do marxismo, em função das modificações factuais atualmente experi- mentadas: solidez e radicalidade capitalista, ascensão dos conserva- dores, descaracterização dos partidos socialistas, transnacionalização da economia, consagração da lógica neoliberal. O marxismo precisa e vem sendo debatido em cinco aspectos, segundo o autor: a) nos processos de regulação social das sociedades capitalistas avançadas; b) nos processos de formação e de estruturação das classes nas socie- dades capitalistas; c) no primado ou não da economia na explicação da transformação social; d) na natureza das transformações culturais do capitalismo; e) na avaliação do desempenho político de partidos socialistas e comunistas e do movimento operário. (Não fica claro até que ponto tantas atualizações farão o marxismo ainda ser marxismo.)

Resumindo o exposto até agora, destacamos que a Pós-Moder- nidade pode ser percebida como uma soma de diferentes aspectos: um discurso crítico-moral, a exacerbação do capitalismo, uma nova realidade empírica.

No documento Em busca da boa sociedade (páginas 112-117)