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Metodologias de participação

No documento Em busca da boa sociedade (páginas 159-168)

A ênfase na participação coloca algumas questões para além da já apontada questão substantiva do que é, efetivamente, participar. O que fazer? Como mobilizar? Quem mobiliza?

Metodologias participativas25 são um elenco de técnicas de ca- pacitação para o exercício da cidadania, que ONGs e instituições ecle- siais, voltadas para uma pedagogia popular, aplicam junto às classes subalternas, para formação de suas lideranças e sua organização como agente coletivo no cenário político e que os governos democráticos brasileiros, após a Constituição Federal de 1988, começaram a utilizar, buscando parcerias com os segmentos socialmente vulneráveis.

Há muitos manuais sobre como estimular as comunidades a se pensarem, a refletirem sobre o que são e o que querem ser, a ana- lisar o que fazer, a conduzir reuniões para dar conta coletivamente dessas tarefas.26 No seu início uma metodologia restrita das igrejas, aplicada de forma discreta, tornou-se uma necessidade a partir da democratização do país e da intenção de os governos obterem parceria das populações. Assim, a metodologia participativa tornou-se uma ferramenta de governos populares e uma área de especialização em “capacitação em planejamento participativo” para os cientistas sociais, que assim se tornam “capacitadores”. As ONGs, já agora legalmente referidas como OSCIPs – Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público –, o chamado Terceiro Setor, que não é governo nem mercado,

multiplicaram-se nesses esforços. Um deles é a implantação da Agenda 21 local, através do Fórum 21 local, para a consecução do desenvol- vimento sustentável, cujas diretrizes são não apenas a preservação da biodiversidade e o manejo dos recursos naturais, mas a justiça econômica e social, com a participação dos diferentes segmentos da sociedade. Outro exemplo tem sido a participação das comunidades em comissões para a regularização das ZEIS – Zonas Especiais de Interesse Social – urbanas.27

No governo do presidente FH Cardoso, a professora R. Cardoso criou os programas Comunidade Solidária (1996) e Comunidade Ativa28 (1999) e as prefeituras foram estimuladas a discutir e agir no sentido de implementar o DLIS – Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável. Todas estas iniciativas exigiam um fórum de cidadãos reunindo-se e pensando a sua comunidade. A meta era elaborar políticas públicas através do planejamento participativo. O desafio passou a ser, para os promotores de tais programas, encontrar nas comunidades os cidadãos para fazê-lo. As localidades, quando instadas a se reunirem para tais discussões, tendem a chamar as lideranças comerciais, o professorado, os parentes dos vereadores, o padre, em suma, as elites locais. Como encontrar o dito “zé povinho” e encorajá-lo? Ou- tra ordem de dificuldades para os promotores e capacitadores tem sido a seguinte: uma vez colocado este cidadão na sala de debates, como fazê-lo falar, sair de seu mutismo precavido e, o ainda mais difícil, fazê-lo voltar outras vezes? Como, por outro lado, ouvir o seu roldão de desabafo e evitar criar junto a eles esperanças e expectativas que correm o risco de ver frustradas? Como fazê-lo perceber que tantos esforços estão chegando a resultados e trazendo melhoras para sua vida cotidiana? Como evitar falsas práticas participativas, que buscam legitimar decisões tomadas por outros em outras instâncias?

Os princípios inspiradores da gestão social são:

a) a valorização do conhecimento e experiências práticas do cidadão em suas vivências;

b) a democracia como um processo contínuo e cotidiano; c) a criação de espaços públicos de decisão, implantação e

acompanhamento de projetos;

d) o reconhecimento e valorização da pluralidade de atores diferenciados;

f) a necessidade de os governados controlarem os gover- nantes;

g) o convívio em grupo;

h) o poder público limitando-se ao papel de facilitador e articulador; voz e igualdade de participação para todos. A filosofia de tais programas baseia-se nas teses da governança, enfatizando o papel dos cidadãos – individuais ou em associações – no processo político, partindo da identificação dos problemas para a formação, implementação e avaliação dos resultados, e na tese do capital social, que seriam sistemas horizontais de participação-cidadã, baseados em redes movidas pela confiança, reciprocidade e coope- ração. Putnam, como vimos, usa a expressão “capital social” para se referir a um efeito sinérgico e pedagógico do acúmulo de experiências locais bem-sucedidas, que reforçam condutas de confiança recíproca e criam uma cultura política participativa e, portanto, benéfica ao desenvolvimento. Esta “participação-cidadã” também é referida na literatura como “voluntarismo cívico”.

Segue uma breve lista elencando alguns passos e técnicas usa- dos para animar encontros e provocar uma reflexão:

a) construção de identidade grupal via recuperação de história local, trajetórias de vida de moradores e reelabo- ração de suas tradições culturais;29

b) execução de jogos para aquecimento e conhecimento mútuo;

c) construção coletiva da “árvore dos problemas”, iden- tificando problemas, suas causas e o que fazer para solucioná-los;

d) motivação de grupos de mulheres, de crianças e de ido- sos;

e) visitas e pequenas expedições aos locais de vida, auto- produção de fotos, vídeos e desenhos que favoreçam a discussão sobre o que fazer;

f) construção coletiva de peça de teatro e dramatizações tendo a comunidade como dramaturga, protagonista e espectadora;

g) aulas sobre como os governos estão organizados e sobre mecanismos legais que podem ser acionados.

Feita a árvore dos problemas (ou técnica similar), que passos dar?

a) escolha de estratégias: o que, como e quando;

b) identificação de interlocutores (oponentes; prováveis parceiros/base de apoio) e de estratégias de contato; c) elaboração de uma agenda de tarefas a cumprir, com

delegações explícitas;

d) escolha de um slogan para representar e fixar os objetivos; e) elaboração de um calendário claro de próximas ativi-

dades.

Outras iniciativas para os capacitadores e ativistas: a) estruturação de um centro de referência; b) integração de grupos em redes comunitárias;

c) criação de boletins e guias de serviço com temas de in- teresse;

d) difusão das experiências em bancos de dados, seminários, publicações, Internet.

E por aí vai. Não tenho a pretensão de formar um manual, nem tenho experiência acumulada para tal. Vale apenas mencionar o cuidado que o cientista social/capacitador deve ter quando desperta expectativas e não tem meios de atendê-las, nem de dar continuidade ao projeto. Devemos levar em consideração que a falta de mobilização pode acontecer não por incapacidade ou individualismo, mas por uma aguda percepção crítica, com base em experiências passadas, de que será tempo perdido, e uma avaliação, muitas vezes pertinente, de que toda a montagem de encontros não passa de um ritual eleitoreiro, abrindo caminho para carreirismos particulares.

Emancipação, maioridade e capacitação:

sapere aude (ouse saber)

Em um artigo clássico, Kant30 define o esclarecimento (“au-

fklärung”) como a saída dos homens de sua menoridade, que vem a ser

outro indivíduo. É cômodo ser menor, analisa Kant, a menoridade, a tutela, chegou a ser quase uma natureza e nossos tutores nos mostram o perigo que nos ameaça se tentarmos andar sozinhos. O militar nos diz: “não pense, execute”; o financista exclama: “não pense, pague”; o sacerdote proclama: “não pense, crê”. Ou nos dizem: “pensem tanto quanto quiserem, mas obedeçam”. O esclarecimento, o ousar saber, implica fazer uso público da própria razão, necessita de liberdade para tal, é o cerne da humanidade. Kant pondera: “um homem pode, no que diz respeito à sua pessoa, adiar o esclarecimento. Mas renunciar a ele significa ferir e calcar aos pés os sagrados direitos da humanidade” (1985, p. 110).

Como superação das formas incompletas e insuficientes de cidadania – a tutelada e a assistida – Pedro Demo (1995) aponta para uma “cidadania emancipada”, que resultaria de um processo emanci- patório composto, em primeiro lugar, por um desafio negativo, o de dizer não à pobreza política e destruí-la. Uma sociedade que queira e saiba superar a pobreza política e, com esta, a pobreza material, rea- ge a injustiças, percebe e nega-se a ser massa de manobra, contesta. Propõe alternativa, organiza-se em associações auto-sustentadas, uma vez que participação sem independência seria farsa.

A cidadania planetária

No decorrer da história, o local se tornou nacional, o nacional transnacional. Assim, a cidadania, que tinha uma referência local, se tornou nacional. Nossos direitos e responsabilidades não se esgotam na cidade em que nascemos e/ou vivemos, se tornaram nacionais e cada um de nós ganhou sua identidade nacional. Mas não estamos mais apenas referidos ao nosso país, nossa vida cada vez mais passou a estar afetada pelo que acontece para além das nossas fronteiras, nesta era de globalização e mundialização. Contudo, não há mecanismos disponíveis para influirmos nos acontecimentos mundiais que nos afetam e traçam nossos destinos. Tal lacuna tem levado os ativistas sociais a se organizarem em redes e coalizões internacionais dos cidadãos planetários, em parlamentos de cidadãos, no Fórum Social Mundial etc.

Em 1991, o Independent Sector e o Council on Foundations, dos Estados Unidos, somados ao European Foundation Centre e a dez organizações filantrópicas privadas, estudaram a necessidade e a via-

bilidade de se criar uma nova estrutura que reunisse as organizações não-lucrativas em nível mundial. Em maio de 1993, em Barcelona, esta aliança formalizou-se na Civicus – Aliança Mundial para a Participação dos Cidadãos, buscando promover a cidadania ativa e a sociedade civil em escala mundial, agindo em rede e operando horizontalmente.31

A idéia de governança global tem encontrado muitas resis- tências, principalmente nos países do Sul, onde a interdependência crescente, de dinâmica essencialmente econômica, tem-se traduzido em maior dependência e menor governabilidade. A noção de global

governance não se confunde com a idéia de governo global de caráter

centralizado. Trata-se antes de um sistema global de governo e tomada de decisões, envolvendo os atores que atuam no cenário internacional. ... O problema não é mais apenas a articulação nacional/internacio- nal, mas também a amplitude e intensidade dos problemas globais, além do acesso aos níveis de decisão pertinentes. Como o Estado soberano já não é a melhor instância para a tomada de decisões em escala planetária, torna-se imperiosa a necessidade de regulação em termos mundiais – uma governança global – para enfrentar os de- safios à humanidade e ao planeta” (VIEIRA, 1997, p. 120); (ver capítulo sobre a Sociedade Generosa).

Notas

1 Líderes de associações de moradores de favelas do Rio de Janeiro falam em “fave- lania”; porta-vozes e ativistas sociais em defesa dos povos da floresta propõem o termo “florestania”. Em ambos os casos, a identidade e a postulação de direitos se dão a partir de uma relação específica ao lugar/grupo em que vivem.

2 “Citizenship consists of a bundle of rights and duties that are acorded to all members of a political community. The rights and duties of citizenship define the conditions for co-existence in human societies and set the parameters for cohesion and conflict within them.” Walter Korpi, do Swedish Institute for Social Research. Paper intitulado “Class, Gender and Power in the Development of Social Citizenship”, apresentado no XII Congresso Mundial de Sociologia, Bielefeld, 1994.

3 Conferência pronunciada na Embratel, em 20/5/1994, em ciclo de debates sobre Modernidade.

4 Conferência pronunciada na Embratel, em 20/5/1994, em ciclo de debates sobre Modernidade.

5 Fonte: site de l’Elysée. Disponível em: <http:// www.ambafrance.org.br>. 6 Editor do Jornal Literário Geral, de Berlim, entre 1843 e 1844.

7 Mikhail Gorbachev, secretário-geral do Partido Comunista Soviético, (1985-1991; presidente do Presidium (1989-1990) e presidente da URSS (1990-1991).

8 Este é um ponto que gera alguma polêmica: toda a literatura sobre a história da classe operária brasileira nos fala de suas lutas por direitos; por outro lado, boa parte da literatura que se dedica ao período Vargas se inclina a ver nestes direitos uma outorga, compensando o esvaziamento de seus direitos políticos em um quadro de um sindicalismo atrelado à máquina do Estado.

9 Constituição da República Federativa do Brasil, 1988, Título I – Dos Direitos Funda- mentais.

10 Constituição da República Federativa do Brasil, 1988, Título II Dos Direitos e Ga- rantias Fundamentais, Capítulo I – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, explicitados em 72 incisos.

11Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Título II Dos Direitos e Garan- tias Fundamentais, Capítulo II – Dos Direitos Sociais.

12 Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Título VIII – Da Ordem Social, Capítulo VI – Do Meio Ambiente.

13 A respeitada ONG Fase desenvolve uma campanha muito a propósito, chamada “O Brasil tem fome de direitos”.

14 Os cientistas sociais que pertencem aos quadros das ONGs – Organizações Não- -Governamentais – e os ativistas de movimentos sociais.

15 José Murilo de Carvalho, em “A Cidadania e Seus Dois Maridos”, no Jornal do Brasil, 15 de janeiro de 1995.

16 Cf. MCLAGAN; NEL (1995). Os autores consideram que as mudanças na administração industrial-empresarial do mundo contemporâneo fizeram emergir a participação, baseada no compartilhamento do conhecimento e no aprendizado mútuo e na in- corporação de diferentes perspectivas de visão e que este processo tem resultados mais enriquecedores do que as relações verticais e a distinção entre os que pensam e os que executam.

17 Cf. FEDOZZI (1997). 18 Cf. BENEVIDES (1994).

19 No que diz respeito a meios de comunicação, desde o advento da Internet, um novo e fabuloso canal foi criado, mas que ainda está restrito aos que têm computador, dominam sua linguagem e podem custear seus provedores. Complementarmente, se a Internet é um canal amplíssimo de comunicação imediata, boa para troca de informação e para propostas de organização, ela tem funcionado também como um mecanismo confortável para uma participação virtual de eficácia duvidosa: recebe-se uma petição, carta, denúncia, solicitando adesão, engrossa-se a lista dos signatários. Assina-se e fica-se com a crença de que fizemos nossa parte. Fize- mos? De forma eficaz? Pode ser, se nossa assinatura significar um poder, uma ação, por exemplo, o poder de voto do cidadão, no caso de não votar naqueles que são responsáveis pelo que se denuncia. Mas, e se não temos tal poder? Por exemplo, qual a eficácia das petições e denúncias internacionais, como aquelas que pediam apoio às mulheres sob o jugo dos Talibans, ou que pediam clemência para mulheres sentenciadas de morte por supostas relações adúlteras em países muçulmânicos? No caso, o protesto é moral, tem a expressão de um clamor público, mas não está alicerçado em exercício de direitos, em poder de ação, pois não há, pelo menos não ainda, direitos de cidadania planetária.

20 A cientista política Maria Celina D’Araújo detectou que a expressão “capital social” data de 1916, criada por um educador, Lyda Judson Hanifan, para referir-se a centros comunitários de escolas rurais, nos quais via que a pobreza crescente era acom- panhada por um decréscimo de sociabilidade e de falta de relações de vizinhança entre a população local. Para Hanifan, se houvesse relações sociais, contatos, haveria cooperação e capital social e todos se beneficiariam. Da autora, ver Capital Social (2003, p. 23 – 24).

21 Cf. CAMAROTTI; SPINK (Org.), 2000 e 2001.

22 Cineasta, publicitário e jornalista norte-americano. Moore foi o ganhador do Oscar de Documentário de 2003, com seu filme “Tiros em Columbine”.

23 Michael Moore não tem grandes ilusões quanto aos Democratas. Trata-se aqui de instigar o partido de oposição a efetivamente agir como tal.

24 Assim explica Sérgio Buarque, em nota de pé de página no seu capítulo sobre o Homem Cordial, em seu livro Raízes do Brasil: “ a expressão é do escritor Ribeiro Couto, em carta dirigida a Alfonso Reyes[...]. Não pareceria necessário reiterar o que já está implícito no texto, isto é, que a palavra ‘cordial’ há que ser tomada, neste caso, em seu sentido exato e etimológico, se não tivesse sido contrariamente interpretada em obra recente do Sr. Cassiano Ricardo, onde fala no ‘ homem cordial dos aperitivos e das cordiais saudações’[...]” (1976, p. 106).

25 Também chamadas de metodologias de capacitação ou de planejamento estratégico. 26 Eis alguns exemplos não-exaustivos: a) Metodologia FLACSO (Facultad Latinoa- mericana de Ciências Sociais) de Planificación Gestion (Planificación Participativa y Gestion Asociada. Versión 1993, autoria de H. A. Poggiese. FLACSO, série Docu- mentos e informes de investigacion no 163; b) Planejamento na prática: um guia

para movimentos e organizações sociais, de E. Gallo; c) Introdução a Metodologias Participativas, L. Ramalho (org.); d) Desenvolvimento de comunidade e participação, de M. L. de Souza; e) Metodologias de capacitação, de Caio M. Silveira e outros. 27 Cf. COSTA; PORDEUS (1998, p. 28-32).

28 Em 1999, houve um projeto-piloto, envolvendo 104 municípios e em 2002 foram esco- lhidos 600 municípios dentre aqueles de IDH – Índice de Desenvolvimento Humano – mais baixos. Havia um acordo assinado com os prefeitos e um auxílio do programa Comunidade Ativa à prefeitura para os gastos de implantação local do projeto (com verbas vindas do Sebrae e do Banco Mundial. Os capacitadores treinados pelo programa iam às localidades, faziam uma convocação ampla, reuniam as pessoas para uma sessão inicial de sensibilização e criação de um fórum de cidadãos, que iria fazer um diagnóstico participativo, discutir uma agenda, definir prioridades e gerir o plano DLIS.

29 Cf. COELHO (1992, p 7-11). 30 Cf. KANT (1985).

No documento Em busca da boa sociedade (páginas 159-168)