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Limites e impasses da democracia

No documento Em busca da boa sociedade (páginas 186-191)

Será mesmo possível esta democracia de massa? A democracia direta das assembléias, a revogabilidade dos mandatos, serão elas mecanismos inequivocamente democráticos? Bobbio diz que não. Há para ele certos paradoxos na democracia: a democracia das assem- bléias é enganadora e na verdade se limita a ratificar por aclamação decisões de um executivo carismático; democracia e burocracia se alimentam mutuamente, pois novos direitos e deveres significam novos encargos e um maior aparato de Estado; a complexidade da sociedade

industrial e tecnológica torna as decisões cada vez mais técnicas e fora da compreensão do cidadão comum. Além disso, ter mandatos revogáveis pode resultar no que Bobbio chama de “quintessência do despotismo”. Ainda para Bobbio (1986, p. 26), o

excesso de participação pode ter como efeito a saciedade da política e o aumento da apatia eleitoral. O preço que se deve pagar pelo empenho de poucos é freqüentemente a indiferença de muitos. Nada ameaça mais matar a democracia que o excesso de democracia.

Desde Platão (428–347 a.C.) e Aristóteles (384–322 a.C.) discute- -se a construção da democracia e o perfil daqueles em comando; a mesma temática reapareceu, como foi acima apontado, no início do nosso século, na polêmica entre Lenin e Rosa Luxemburgo acerca do papel e da participação das massas e dos dirigentes na transfor- mação revolucionária.

Para Platão, a boa sociedade é aquela governada pelos mais sábios, aqueles que contemplam a verdade, “a essência imortal das coisas, que têm conhecimentos certos e não opiniões”; eles, os reis-filósofos, estão “forros da cobiça”, neles há uma total ausência de baixeza de sentimentos; não receiam a morte, são moderados em seus desejos, isentos de avareza, de soberba, de covardia; têm eqüidade, brandura e boa memória. Amigos da verdade, da justiça, da temperança e da fortaleza. Seriam eles das raças de ouro e prata, das quais falava Hesíodo, aqueles que elevam as almas à virtude e à conservação da constituição primitiva, enquanto as raças de ferro e de bronze aspiram apenas às riquezas.

Nada é tão característico do sentimento pessimista do povo trabalha- dor do que a história das cinco idades do mundo, que começa com os tempos dourados, sob o domínio de Cronos, e conduz gradualmente, em linha descendente, até o afundamento da moral, do direito e da felicidade humana nos tempos atuais. (JAEGER,1987, p. 69).

Segundo Platão, é impossível ao povo ser filósofo, pois a plebe ignara não concebe e admite o princípio de que o belo é uno e distinto da multidão das coisas belas que se nos apresentam aos sentidos.

A menos que os filósofos sejam reis ou que os que hoje em dia se cha- mam reis e soberanos sejam verdadeira e seriamente filósofos, de sorte que a autoridade política e a filosofia juntas se encontrem no mesmo indivíduo [...] fora disso, meu caro Glauco, não há remédio para os males que afligem e arruínam os Estados e o próprio gênero humano, nem jamais aparecerá na terra e verá a luz do sol o Estado perfeito, cujo plano esboçamos (PLATÃO em Livro V da República).

A democracia, para Platão, é uma das formas degeneradas de governo, ao lado da timocracia, da oligarquia e da tirania. Segundo o filósofo, a timocracia é uma aristocracia degenerada, militarizada, que prefere para o mando espíritos pouco esclarecidos, mais atentos à guerra que à paz, ávidos de riquezas; tal timocracia se converte em

oligarquia, regime caracterizado pelo fato de os ricos terem nas mãos

o poder e o mando e os pobres de nada participarem. Assim, o Esta- do oligárquico quanto mais estima a riqueza e os ricos, tanto menos preza a virtude e os virtuosos. À oligarquia se sucede a democracia, quando os pobres, alcançada a vitória sobre os ricos, os matam ou expulsam e repartem igualmente com os que ficam os empregos e a administração dos negócios públicos. É um governo suave, no qual ninguém é superior a outrem e no qual impera a igualdade entre os mais desiguais. Esse Estado popular encontra a ruína naquilo que considera seu verdadeiro bem, a liberdade, que vai degenerar em escravidão. Da democracia, surge, então, a tirania, pois à liberdade excessiva sucede a mais dura e intolerável servidão (PLATÃO em Livro

VIII da República).

Para Aristóteles, a democracia é o “pior dos tipos bons de governo e o melhor dentre os ruins” (MORRALL, 1985, p. 54). Quem a dirigiria, quem seriam os “homens bons” que decidiriam sobre os destinos da pólis? O homem bom, para Aristóteles, não seria tão- -somente o filósofo puro, que possui “sophia” (sabedoria), mas também o homem prático, esclarecido, que possui “phronesis” (prudência, temperança, discernimento). Quanto à massa, que não possui nem sabedoria nem prudência, cabe somente submeter-se à coação da lei. Nesse regime, seria um homem bom um bom cidadão? Não, de fato, nem todo homem virtuoso é um bom cidadão. Aristóteles conjectura, contudo, que o cidadão, na pólis corretamente organizada, deve ter as virtudes idênticas às do homem bom, detentor de “phronesis”.

A crítica à democracia irá reaparecer no século XVIII também em Rousseau, que via como seus pré-requisitos coisas difíceis ao mundo moderno: a) um Estado pequeno, de fácil convocação, onde cada cidadão possa conhecer a todos; b) simplicidade de costumes; c) uniformidade nas classes e nas fortunas.

Dadas tais dificuldades, a democracia que se experimentará será a oclocracia, o governo das turbas.

Quando o Estado se dissolve, o abuso de governo, seja ele qual for, toma o nome de anarquia. Caracterizando: a democracia degenera em oclocracia, a aristocracia em oligarquia e a monarquia em tirania [...] (ROUSSEAU).

Se tomarmos o termo na sua rigorosa acepção, então nunca existiu nem existirá a verdadeira democracia. É contra a ordem natural que o maior número governe e o menor seja governado [...]. Se existisse um povo de deuses, governar-se-ia democraticamente. Um governo tão perfeito não convém aos homens (ROUSSEAU).

No século XX, a crítica à democracia, ao democratismo, ressurge com Lenin. Já mencionamos acima algumas das críticas leninistas à democracia burguesa. Vejamos outras e o que ele propunha.

Para Lenin, a democracia burguesa consistia num parlamenta- rismo “venal, apodrecido até a medula”, em que todos entregavam- -se à “prostituição política” presente em tal “moinho de palavras”. A democracia, acrescenta, está sempre comprimida no quadro estreito da exploração capitalista e, por isso, permanece, no fundo, uma de- mocracia para a minoria, para as classes possuidoras, para os ricos: A liberdade na sociedade capitalista permanece sempre o que ela foi nas repúblicas da Grécia antiga: uma liberdade para os proprietários de escravos. Os escravos assalariados de hoje, em conseqüência da exploração capitalista, continuam tão esmagados pelas necessidades e pela miséria que eles se “desinteressam pela democracia” e, no cur- so ordinário pacífico dos acontecimentos, a maioria da população se encontra afastada da vida política e social [...]. Democracia para uma ínfima minoria, democracia para os ricos, tal é o democratismo da sociedade capitalista. (LENIN, 1961, p. 105-107).

Para Norberto Bobbio, o Estado liberal é o pressuposto histórico e jurídico da democracia, que nasceu de uma concepção individualista da sociedade. Ela se baseia em um conjunto de regras sobre decisões coletivas: a regra da maioria, as regras definidoras dos direitos indi- viduais. Embora o autor tenha escrito em defesa das regras do jogo democrático, ele aponta promessas não cumpridas e diferenças entre o modelo democrático e a realidade:

a) apesar do princípio democrático estar fundamentado na figura do indivíduo, são os grupos sociais e não os indivíduos os protagonistas da vida política;

b) o poder oligárquico não foi derrotado pela democracia: o que há, como Schumpeter mostrou, é a presença de mui- tas elites concorrentes;

c) o “poder invisível” (das máfias, camorras, maçonarias, serviços secretos etc.) não foi eliminado;

d) a educação para a democracia (a paideia grega) não se cumpriu, o que faz aumentar o voto de clientela e de permuta por favores pessoais.

Na sociedade contemporânea, aponta Bobbio, novos obstáculos surgiram para o exercício democrático:

a) Aumentaram os problemas políticos que requerem competência técnica. Assim, como sustentar a premissa democrática de que todos devem decidir a respeito de tudo, se é impossível ao cidadão conhecer tudo aquilo que está na esfera de entendimento dos especialistas? b) O aparato burocrático cresceu e tenderá a crescer cada

vez mais à medida que novos direitos são incorporados. Apesar de democracia e burocracia estarem interligadas, a lógica do sentido do poder é oposta: enquanto na de- mocracia o poder vai da base social para o seu topo, na burocracia, ao contrário, vai do topo à base.

c) As demandas se expandem e se aprofundam, contrastan- do com a lentidão dos procedimentos democráticos. Já os sistemas autocráticos, eles não apenas reprimem as demandas, como oferecem respostas rápidas.

Apesar de tais impasses e dificuldades, a democracia vale a pena, sublinha Bobbio, pois ela se move pelos seguintes ideais: o ideal da tolerância; o ideal da não-violência; o ideal da renovação; o ideal da irmandade.

Democracia como negociação de conflitos: estrutura

No documento Em busca da boa sociedade (páginas 186-191)