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O advento da Modernidade

No documento Em busca da boa sociedade (páginas 92-97)

Os pensadores europeus dos séculos XIX e XX que se detive- ram em analisar o advento e o funcionamento da sociedade moderna referem-se, cada um a seu modo, a esta transformação de um mundo social mais simples em outro mais complexo e internamente diversi- ficado. Vejamos alguns exemplos:

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Tönnies Comunidade Sociedade Comte Sociedade teocrática Sociedade positiva Spencer Sociedade homogênea Sociedade heterogênea Durkheim Sociedade segmentar Sociedade organizada Marx Modo de produção feudal Modo de produção capitalista Weber Sociedade tradicional Sociedade burocrática Gurvitch Sociedade por fusão Sociedade por inter-relação

Se revisitarmos os livros de história que estudamos no ensino médio, veremos que a sociedade moderna começou a tomar forma a partir de diferentes ocorrências no plano econômico, cultural, político, religioso etc., que se deram no espaço europeu desde o século XIV e que se intensificaram a partir do século XVI: a Guerra dos 100 anos (1337 – 1453) entre França e Inglaterra é apontada como uma das cau- sas do enfraquecimento da nobreza que, anteriormente, se apegara às Cruzadas (1086 – 1244) como maneira de se manter rica e poderosa, via acesso ao Mediterrâneo, a Veneza e ao domínio sobre um Oriente tido como pagão e herege. A partir de 1450, as rotas comerciais se distende- ram, multiplicaram-se as companhias de comércio, as cidades italianas perderam o monopólio comercial, o eixo econômico se deslocou para o Atlântico. Um novo agente social se afirmou, a burguesia mercantil, que se aliou à realeza, subvencionando suas tropas e funcionários, suas inovações tecnológicas, suas expedições marítimas e conquistas

ultramarinas. Os livros escolares apontam este período como o de realização de uma verdadeira Revolução Comercial, quando foram criados o sistema bancário, o sistema monetário, as sociedades por ações e se deu o início da acumulação capitalista. O poder absolutista dos reis europeus se consolidou com a dinastia dos Tudor, na Ingla- terra, Luís XIV, na França etc. Não por acaso o pensamento político da época (Bodin, Bossuet, Grotius) celebrava o direito divino dos reis e o caráter sagrado de sua autoridade,1 enquanto a economia política rezava pelo credo mercantilista, defendendo o estatismo, isto é, a in- tervenção governamental na economia, os territórios nacionais e seus mercados. As nações e os Estados nacionais passaram desde então a ser expressão de territórios fechados, integrados, sob o comando de um poder centralizado. O mercantilismo se traduziu em uma política de nacionalismo econômico baseada no expansionismo colonialista.

No campo cultural surgiu o Humanismo Renascentista (1490 – 1560), que retomava os valores da Antiguidade clássica greco-romana em substituição ao teocentrismo medieval.2 A natureza humana voltou a ser reglorificada (que obra de arte é o homem, escreveu Shakeas- peare). As artes foram revitalizadas em suas diferentes áreas (Dante, Maquiavel, Boccaccio, Cervantes, Da Vinci, Rafael, Maquiavel, Camões, Miguelângelo, Gutenberg) e as ciências conheceram novas teorias (Galileu, Copérnico etc.). Sob o mecenato dos Médicis, a cultura se tornou urbana e burguesa.

No plano religioso, a hegemonia católica começou a ser sacudi- da pelo pensamento reformista, que se iniciou com o Anabatismo na Alemanha e Suíça (Münzer, Wicliff, Storch) e encontrou sua expressão maior com Lutero (1483 – 1546) e Calvino (1509 – 1564) e o movimento da Reforma Protestante.3 Deflagrado pelas 95 teses de Lutero contra a venda de indulgências pelo papa Leão X, o Protestantismo rejeitava a teoria da supremacia e do universalismo do pontífice católico e rei- vindicava a secularização dos bens da Igreja. Além de ter-se tornado a expressão dos interesses fundiários da nobreza nas terras da Igreja e da burguesia em busca da extinção das limitações da moral do justo preço, a Reforma trouxe uma ética de valorização do trabalho e do enriquecimento como sinais de predestinação e das bênçãos de Deus. Todo este novo ideário iria ser campo propício para a disseminação do comportamento e expectativas capitalistas, segundo a análise do sociólogo Weber.

A Sociedade Moderna é um mundo marcado pela separação das esferas de atividade que a sociedade dita tradicional vivenciava de forma integrada. No modelo social da Modernidade, há a divisão social do trabalho; nele o econômico, o religioso, o político, o científico são esferas idealmente separadas e, dentre estas, assume uma posição de hegemonia a esfera econômica. Durkheim, Marx e Weber, cada um a seu modo, analisaram aspectos característicos desta cisão, que tem sido vivenciada pelos homens modernos como um processo doloroso: Durkheim aponta para a perda de valores morais de referência, para a

anomia; Marx para a alienação e coisificação de um homem tido como

livre, mas que experimenta novas formas de exploração; Weber para o desencantamento do mundo e a construção de cárceres de ferro, quando um capitalismo historicamente racional cede lugar a uma luta convulsa de todos contra todos. (Ver capítulos específicos sobre estes três autores.)

Estamos longe do tempo em que [as funções econômicas] eram desde- nhosamente abandonadas às classes inferiores. Perante elas, vê-se cada vez mais recuarem as funções militares, administrativas, religiosas. Apenas as funções científicas estão em condições de lhes disputar o lugar; e ainda assim, a ciência atualmente não tem prestígio senão na medida em que pode servir à prática, isto é, em grande parte, às profissões econômicas (DURKHEIM, 1977).

Durkheim atribuía a anomia – o desregramento, a ausência de uma moral coletiva – no mundo moderno a este predomínio das funções econômicas, que assim ficaram à margem da moralidade, e propunha como remédio a regulamentação e o renascimento das corporações para recriar os laços morais perdidos:

Uma forma de atividade que tomou um tal lugar no conjunto da vida social não pode evidentemente permanecer a este ponto não regula- mentada sem que daí resultem as perturbações mais profundas. É, em particular, uma fonte de desmoralização geral (DURKHEIM, 1977). Para Marx, o mundo moderno é caracterizado pelo Estado mo- derno, advindo este da cisão, da separação entre a instância política e o privado, antes unidos na forma comunal. Neste mundo moderno, trabalhadores alienados produzem, separados dos meios de produ-

ção e do produto do seu trabalho e transformados na mais destruída de todas as mercadorias. A solução para isto tudo estaria, segundo Marx, na realização de uma revolução proletária, por meio da qual o trabalhador destruir-se-ia enquanto classe, libertando-se a si mesmo e ao burguês seu opressor, preso da lógica do capital, e criando a so- ciedade sem classe. Terminaria assim a pré-história da raça humana e assistiríamos ao alvorecer da história.

Durkheim, Marx e Weber não eram nostálgicos do Antigo Regime, não partiam da premissa de que o mundo da sociedade tradicional era melhor. Muito pelo contrário, suas análises apontam para aspectos inovadores e característicos dos tempos modernos que nunca sonharam anular: a criação do indivíduo e do Estado pela sociedade moderna, tornando-a mais livre (Durkheim), a capacidade inventiva e altamente inovadora da burguesia (Marx), o surgimento de uma racionalidade burocrática potencialmente essencial para o funcionamento da democracia igualitária (Weber).

Escreveu Durkheim sobre a criação do indivíduo pela sociedade moderna:

Enquanto as sociedades não atingem certas dimensões nem certo grau de concentração, a única vida psíquica que se encontra verdadeira- mente desenvolvida é a que é comum a todos os membros do grupo e que é idêntica em cada um dos componentes do grupo. Mas, à me- dida que as sociedades se tornam mais vastas e sobretudo mais condensadas, surge uma vida psíquica de um gênero novo. As di- versidades individuais, primeiramente perdidas e amalgamadas na massa das similitudes sociais, destacam-se dela, adquirem relevância e multiplicam-se [...] As personalidades particulares constituem-se, adquirem consciência de si mesmas e, no entanto, este acréscimo da vida psíquica do indivíduo não enfraquece a da sociedade, não fazen- do senão transformá-la. Ela torna-se mais livre, mais desenvolvida (DURKHEIM, 1977, p. 139).

Escreveram Marx e Engels sobre a capacidade inovadora da burguesia:

A burguesia desempenhou na História um papel eminentemente revo- lucionário [...] A [burguesia] criou maravilhas maiores que as pirâmi- des do Egito, os aquedutos romanos, as catedrais góticas; conduziu

expedições que empanaram mesmo as antigas invasões e as Cruzadas. A burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessan- temente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais. A conservação inalterada do antigo modo de produção constituía a primeira condição de existência de todas as classes industriais anteriores. Essa revolução contínua da produção, esse abalo constante de todo o sistema social, essa agitação permanente e essa falta de segurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Dissolvem-se todas as relações so- ciais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de idéias secularmente veneradas; as relações que as substituem tornam-se an- tiquadas antes de se ossificar. Tudo que era sólido e estável se esfuma, tudo o que era sagrado é profanado [...]. Impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade todo o globo. Necessita estabelecer-se em toda parte, criar vínculos em toda parte [...] imprime um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países [...] ela retirou à indústria sua base nacional [...] em lugar do antigo isolamento de regiões, desenvolve-se um intercâmbio universal [...] a burguesia submeteu o campo à cidade [...] aglomerou as populações, centralizou os meios de produção e concentrou a propriedade em poucas mãos [...] (MARX; ENGELS, 1968, p. 25-27).

Escreveu Weber (1974) sobre a burocracia:

A burocracia acompanha inevitavelmente a moderna democracia de massa [...]. Isso resulta do princípio característico da burocracia: a regularidade abstrata da execução da autoridade, que por sua vez resulta da procura de igualdade perante a lei no sentido pessoal e funcional e, daí, do horror ao privilégio e a rejeição ao tratamento dos casos individualmente [...] a democracia de massa acaba com os privilégios feudais, patrimoniais e plutocráticos na administração. Coloca o trabalho profissional no lugar da administração subsidiária herdada pelos notáveis.

Contudo, se Durkheim, Marx e Engels enxergavam uma solução para a tragédia moderna – respectivamente, o ressurgimento das cor- porações, agora em novas bases territoriais, ou a revolução proletária que construiria o Comunismo Científico –, Weber era mais cético e pes- simista. Como veremos em detalhe no capítulo específico sobre a sua

Sociologia, Weber percebeu uma distinção flagrante entre um mundo racional que os homens construíam historicamente, enquanto modelo ideal, e a forma, igualmente histórica, pela qual se distanciavam do próprio modelo construído. O que nos caracteriza enquanto sociedade moderna, segundo Weber, é este querer-se racional, este acreditar-se racional. Da amálgama entre intenções e realidades, acabamos criando uma racionalidade como que capenga, na qual a própria democracia de massas torna-se sintoma de uma irracionalidade e a burocracia, em seu seio, se transforma em um arremedo.

No documento Em busca da boa sociedade (páginas 92-97)