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A democracia liberal

No documento Em busca da boa sociedade (páginas 173-176)

Quando o ideário liberal recriou a proposta democrática, 22 séculos após a experiência ateniense, no contexto da derrocada do Ancien Régime (Revolução Francesa, Revolução Gloriosa na Inglater- ra), já não mais o foi na forma da democracia direta, ateniense, e sim através da representação parlamentar. A democracia, na acepção do pensamento liberal, se restringe a ser um regime político, uma enge- nharia de montagem do processo de escolha de governantes.

MacPherson (1978) identificou quatro fases ou etapas da de- mocracia liberal:

• a democracia protetora;

• a democracia desenvolvimentista, expansionista; • a democracia de equilíbrio, elitista-pluralista; • a democracia participativa.

Com o credo liberal surgiu, em primeiro lugar, aquilo que Mac- Pherson conceitua como a democracia protetora, aquela que tem como cidadão o proprietário, que protege o homem do mercado, que vai monopolizar o direito político de votar e ser votado, enquanto ao trabalhador livre caberia contentar-se com os direitos individuais de ir e vir, de trabalhar etc. A democracia protetora surgiu para defender os direitos do burguês, do homem de mercado, contra os privilégios aristocráticos.

Ocorre que as classes trabalhadoras não se contentaram em ficar limitadas aos direitos individuais civis de ir e vir, de trabalhar etc. e lutaram, a partir do Cartismo,5 pelos direitos políticos de vo- tar e de serem votadas: segue-se, portanto, a etapa da democracia desenvolvimentista, expansionista, inspirada em John Stuart Mill6 (MCPHERSON, 1978, p. 49). Como bem destacou MacPherson, a in- trodução das classes trabalhadoras no desenho democrático trouxe uma perspectiva moral à questão política, à idéia de que é possível aperfeiçoar a sociedade no seu conjunto por meio de seu sistema político institucional. Se, por um lado, a etapa desenvolvimentista da

democracia ameniza os conflitos de classes, dando-lhes uma arena institucional, por outro, a busca democrática passa a ter uma lógica que conflita com os interesses da burguesia emergente, que falava de direitos mas só para si própria.

A terceira fase da democracia liberal, segundo MacPherson (1978, p. 81), é a fase de equilíbrio schumpeteriano,7 o modelo elitista- -pluralista quando elites de poder se alternam. De acordo com este modelo, a democracia é um mero mecanismo para escolher e autorizar governos, e este mecanismo consiste na competição entre grupos es- colhidos por si mesmos, cabendo aos votantes escolher dentre estes os homens que tomarão as decisões. Assim, o exercício democrático do cidadão é intermitente e se limita a, de tempos em tempos, escolher entre aqueles já na verdade escolhidos por suas facções e partidos. O procedimento é democrático, porque há alternância entre as elites no preenchimento dos cargos públicos.

MacPherson (1978, p. 98) aponta o atual momento que vivencia- mos como uma transição da democracia de equilíbrio schumpeteriana para a democracia participativa, em que associações diversas partici- pam das decisões e influenciam os parlamentos em um processo mais contínuo. O autor admite que um sistema mais participativo que o de equilíbrio é desejável; todavia, conjectura se seria possível. Segundo ele, a introdução da democracia participativa exigiria dois requisitos: a mudança da consciência do povo – ou o fim da sua inconsciência – pela qual este passaria a ver-se e a agir como executor; uma “grande

diminuição” da atual desigualdade social e econômica seria o segundo.

Toffler (1980) chamou a essa mudança a passagem de uma democracia intermitente para uma de processo contínuo, a democracia semidireta. O modelo de democracia de equilíbrio está próximo da concep- ção do federalismo e da chamada democracia madisoniana (de James Madison, um dos federalistas americanos), que repousa sobre as con- cessões mútuas, sobre a transigência. A teoria madisoniana, segundo Robert A. Dahl (1989), é um esforço para se chegar a uma acomodação entre o poder das maiorias e o das minorias, entra a igualdade política de todos os cidadãos adultos e o desejo de lhes limitar a soberania. Trata-se de evitar que um indivíduo ou grupo de indivíduos – uma minoria – tiranize os demais – a maioria. Como fazê-lo? Evitando a acumulação de poderes nas mesmas mãos; controlando facções, para que estas não ajam contra os direitos dos demais cidadãos ou contra os interesses permanentes da comunidade. Madison advertia que

as eleições populares freqüentes não iriam criar controles externos suficientes para impedir a tirania (The Federalist, nº 49). Para Dahl (1989, p. 35), contudo, a proposta de democracia madisoniana era inadequada, pois buscava, na verdade, proteger a minoria, dona de riqueza, status e poder, que era desconfiada e temerosa em relação à maioria popular e formada pelos agricultores e artesãos.

A proposta de alteração no mecanismo da democracia liberal, saindo do modelo representativo para o modelo participativo, é ana- lisada pelo cientista político liberal italiano nosso contemporâneo, Norberto Bobbio. Ao criticar a proposta de democracia direta, das assembléias de cidadãos que substituiriam os políticos – vereado- res, deputados, senadores – representantes do povo por outorga de mandato, Bobbio faz a defesa da democracia parlamentar e do seu sistema representativo. Para ele, as mazelas que assolam este sistema político não se explicam por este ser representativo e sim por sê-lo insuficientemente:

Nunca duvidei que o sistema representativo tivesse limites reais e insuperáveis numa sociedade capitalista selvagem como a nossa. A soberania do cidadão está limitada pelo fato das grandes decisões quanto ao desenvolvimento econômico ou não chegarem aos órgãos representativos ou, se chegam, serem tomadas em outras sedes, em sedes onde a grande maioria dos cidadãos soberanos não tem a menor voz ativa. Mas também sob este aspecto o defeito do sistema não é o de ser representativo, mas de não sê-lo o bastante (BOBBIO, 1979, p. 52). Apesar dos pesares, acrescenta Bobbio, o Parlamento, o chama- do Poder Legislativo, que o autor chama de Estado Representativo, é muito mais transparente que o Poder Executivo, ou Estado Adminis- trativo, que tem uma lógica completamente diferente, secreta e não pública, hierarquizada, tendente à imobilidade, não inovadora etc.

É de autoria de Bobbio (1979, p. 34) uma das mais completas definições da democracia liberal:

Entende-se por “democracia” um conjunto de regras (as chamadas “regras do jogo”) que permitem a mais ampla e mais segura participa- ção da maior parte dos cidadãos, seja de forma direta, seja de forma indireta, nas decisões políticas, isto é, nas decisões de interesse de toda a coletividade. As regras são mais ou menos as seguintes: a) todos

os cidadãos que tenham alcançado a maioridade, sem distinção de raça, religião, condição econômica, sexo etc. devem gozar dos direitos políticos, isto é, do direito de expressar, através do voto, a própria opinião e/ou de eleger quem se expresse por ele; b) o voto de todos os cidadãos deve ser de peso igual; c) todos os cidadãos que gozam dos direitos políticos devem ser livres para votar [...]; d) devem ser livres também no sentido de que devem ser colocados na condição de possuírem alternativas reais [...]; e) [...] vale o princípio da maioria numérica [...]; f) nenhuma decisão tomada pela maioria deve limitar os direitos da minoria, em particular o direito de tornar-se maioria. Em resumo, no pensamento liberal, a democracia é concebida basicamente como um sistema ou mecanismo de escolha para o preen- chimento de cargos e não tanto como uma ética ou tipo de sociedade.

A democracia como um tipo

No documento Em busca da boa sociedade (páginas 173-176)