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A cidadania brasileira

No documento Em busca da boa sociedade (páginas 144-148)

Historicamente, a política brasileira consagrou a expressão cidadania ativa, a “massa dos cidadãos ativos”, aos quais se referia a primeira Constituição, de 1824, não para conceituar um povo politiza- do e participante, mas, pelo contrário, para se referir a uma minoria privilegiada, formada por homens acima de 25 anos, bacharéis e clé- rigos, com renda líquida anual de 100 mil-réis, que não fossem criados de servir. Tais cidadãos ativos votariam, em Assembléias paroquiais, nos eleitores de província, o Grande Eleitor. Este Grande Eleitor, que

iria votar nos Deputados, Senadores e membros dos Conselhos de Província, teria de ter, por sua vez, renda anual de 200-mil réis, não ser liberto, nem ser criminoso pronunciado (CARVALHO, 1998; BENE- VIDES, 1991; QUIRINO, MONTES, 1987). A exigência de renda foi elimi- nada pela Constituição de 1891, que manteve, entretanto, a exclusão dos votos das mulheres, dos analfabetos, dos mendigos, soldados e membros de ordens religiosas. Assim, o número de votantes era muito baixo: segundo J.M. de Carvalho, em 1894, 2,2% da população votou para presidente da República; em 1930, somente 5,6%; em 1945, 13,4% (CARVALHO, 2001, p. 40).

De lá para cá, os direitos se expandiram, e o sufrágio se tornou universal, mulheres e analfabetos passaram a votar e serem votados, direitos sociais foram conquistados e reconhecidos em 1946.8 De 1964 a 1979 (período da ditadura militar até a lei de anistia), contudo os direitos civis e políticos foram restringidos e os direitos sociais se tornaram mais uma formalidade legal do que uma realidade eficaz, tendo-se em consideração o descompasso entre a demanda e a oferta. Com a abertura política e a promulgação da Constituição Federal de 1988, a cidadania passou a se destacar como um dos princípios fun- damentais da República Federativa do Brasil, ao lado da soberania, da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e do pluralismo político:

Art. 1. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I – a soberania; II – a cidadania;

III – a dignidade da pessoa humana;

IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.9 Art. 5. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer na- tureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...].10

Art. 6. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados [...].11

[...]

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibra- do, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.12

Apesar desses avanços, o exercício efetivo da cidadania entre nós ainda permanece restrito.13 Os direitos políticos formais dizem respeito a todos, é verdade (o voto é até obrigatório), mas são plena- mente exercidos por poucos, estando limitados de fato pelas grandes diferenças econômicas, pela pouca acessibilidade à educação, à saúde, ao trabalho, por um lado, e, por outro, por uma ordem institucional ainda viciada por privilégios. A descrença na ordem institucional, o sentimento de impotência pessoal e a decepção diante da sucessão de novos governos que não cumprem o que prometem trazem o de- sânimo na busca da defesa de direitos, assim tornando a invocação dos deveres de cidadania – a defesa do bem comum, do interesse pú- blico, o respeito às normas – objeto de certo ridículo. Neste aspecto, o dos deveres, o termo “cidadão” parece ainda continuar tendo entre nós certo cunho depreciativo, detectado pelo antropólogo Roberto DaMatta (1983, p. 169) para o homem comum, equivalente a “fulano”, “elemento”, “sujeitinho”, designando aquele anônimo, que não é nin- guém, que não é uma pessoa de destaque na sociedade brasileira e que fica submisso a uma universalidade legal simplesmente porque não tem como se alçar ao mundo das relações concretas, pessoais e biográficas.

As formas pelas quais nossos cientistas sociais têm até aqui qualificado a cidadania brasileira têm como denominador comum chamar a atenção para os aspectos excludentes e incompletos de nossa sociedade política: “meia cidadania”, “quase-cidadania”, cidada- nia “incompleta” (F. Weffort, 1991), cidadania “de escassez” (V. Valla), cidadania “regulada” (W. G. dos Santos, 1979), “estadania” (J. M. de Carvalho, 1988), cidadania “que não temos” (M. Covre, 1986), Estado “sem cidadãos” (S. Fleury, 1995) etc. O sociólogo Pedro Demo (1995) conceituou nossa cidadania como “tutelada” e “assistida”: a cidadania tutelada sendo aquela que a elite econômica e política cultiva ou su-

porta, que é uma concessão de cima, resultado da pobreza política das maiorias em um quadro de clientelismo e paternalismo e que reproduz indefinidamente as elites; a cidadania assistida, embora seja um embrião da noção de direito, enfatizaria a assistência em lugar da emancipação e não se comprometeria com a criação de oportunida- des econômicas. A ambas o autor vai contrapor a busca da cidadania emancipatória.

Nossa experiência limitada de cidadania transborda da teoria científica para o senso comum, generalizando a noção da cidadania como algo muito mais formal do que real, uma cidadania que está limitada pela miséria, pela falta de informação, de instrução, pelo po- pulismo manipulador etc, no seio de uma democracia política formal, que não é complementada por uma democracia social efetiva. Nesse sentido, Pedro Jácobi (1986, p. 105) usou a expressão “cidadãos-víti- mas” para se referir aos moradores das cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Recife etc, vítimas de “todos os malefícios da urbanização desigual e segregadora”.

O antropólogo Gilberto Velho, ao falar da violência e do risco de ódio social nos anos 1990, destacava a desimportância que o brasileiro comum vota à cidadania: “o problema é que, para esta sociedade, a cidadania não é um valor básico” (Jornal do Brasil, 10 de maio de 1995). Para este antropólogo, a violência dos nossos dias tem a ver com a ausência, a crise e desmoralização do poder público, a distância entre as camadas sociais, com a perda das regras. Ou seja, com as mesmas causas que fazem da cidadania um exercício de exceção. Uma forma possível apontada por ele para abrandar a violência e o ódio social seria mobilizar a sociedade civil, a vida associativa, em suma, criar as bases que, em última análise, sustentam também a cidadania: o sentimento de pertencimento a uma comunidade, a crença em regras de convívio etc. Gilberto Velho reconhece também que a esquerda dos anos 1960 e 1970 – ele inclusive – achava que isso era uma carac- terística pequeno-burguesa, mas hoje isso faz falta: “as comunidades pobres tinham vida associativa, associações de moradores e escola de samba, hoje isso está dominado pelo tráfico [...] a questão crucial é a mobilização da sociedade civil”.

Por outro lado, em nossos dias, a cidadania também tornou-se um mote, uma idéia força na vida política brasileira, uma palavra-chave nas pesquisas acadêmicas e nos seus órgãos de fomento, nos artigos

da imprensa, em programas televisivos. A tal ponto que um de nossos renomados cientistas sociais observou, com certa mordacidade, que

a jovem cidadania caiu na boca dos políticos, dos intelectuais, dos jor- nalistas, dos “onganistas”.14 Não a deixam em paz. Perseguem-na noite e dia, obrigam-na a opinar sobre tudo, a participar de tudo, quando não lhe põem na boca e não lhe atribuem as atitudes e opiniões mais disparatadas. Muitos se autonomeiam seus porta-vozes. Nada se faz sem que o nome de Cidadania seja invocado, muitas vezes em vão...15

No documento Em busca da boa sociedade (páginas 144-148)