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Participação e emancipação

No documento Em busca da boa sociedade (páginas 148-156)

Em democracias representativas, a participação dos cidadãos se dá de uma maneira formal, periódica e episódica, por meio do voto para representantes e ocupantes do poder executivo (Weber se referiu a esta participação periódica, via voto, como uma “democracia de massa”, que ele julgava negativamente, como sendo um sistema pouco racional, posto que eleitores ali votariam emocionalmente e sem conhecimento). Já a participação contínua, via conselhos, é uma invenção relativamente recente e resulta da pressão dos movimentos sociais contra, no nosso caso, o teor patrimonialista do Estado brasi- leiro (ver capítulos sobre Max Weber e sobre a Democracia).

Autogestão, co-gestão, “empoderamento” (empowerment), go- vernança são conceitos inter-relacionados, cada qual com sua matriz histórica e teórica, mas que trazem subjacente uma noção básica e recente, a da participação como antídoto para sistemas de poder e culturas autoritários, que quase sempre desembocam em escravidão, violência, discriminação, alienação e opressão.

A busca da participação vem-se dando nas esferas públicas e privadas16 e diz respeito a uma cultura democrática, à acessibilidade e disseminação da informação, a novas práticas de convívio e de negocia- ção de conflitos. Segundo Celso Daniel (1994), o tema da participação na gestão pública surgiu no Brasil na segunda metade dos anos 1970, durante a crise da ditadura militar, em experiências inovadoras em Lages e Boa Esperança e por práticas dos movimentos sociais (con- selhos populares de saúde da Zona Leste de São Paulo, conselho do orçamento popular de Osasco, Assembléia do Povo de Campinas etc.). No Brasil atual, os direitos de participação se manifestam no cenário

público da democracia de fluxo contínuo, na forma de construção das decisões acerca da alocação dos recursos públicos (como, por exemplo, no “orçamento participativo”).17 nos conselhos paritários diversos etc. A democracia participativa estaria a meio caminho entre a democracia representativa e a democracia direta. Seu princípio é o da ação contínua e da organização de base.

Em governos não-liberais, a participação popular reduz-se ao engajamento em tarefas, com o povo contribuindo com sua força de trabalho na realização de obras que não são por ele propostas nem decididas.

Na democracia liberal, representativa, a participação é via pres- são popular (expressão de opinião), via apresentação de demandas aos governantes.

Para os movimentos populares, todavia, participação é mais do que isto: é ocupar espaços institucionais, propor políticas públicas, controlar sua execução e seu orçamento. Benevides chama a esta participação de “cidadania ativa”, pois nela o cidadão não é apenas portador de direitos e deveres, mas criador de direitos enquanto cria- dor de novos espaços de participação política para além da cidadania passiva, outorgada pelo Estado.18 Esta cidadania ativa, como já dizia Protágoras, é um aprendizado, exige um processo pedagógico, uma educação continuada, tanto dos cidadãos quanto das autoridades dos diversos escalões dos governos.

A participação nas escolhas do uso dos recursos e na escolha dos destinos da comunidade e de seu modo de vida diz respeito aos canais de ligação entre os governos e a sociedade. Como salientou Demo (1991, p. 99), a qualidade do Estado depende da capacidade de organização da sociedade que o mantém. Isso implica controle dos go- vernantes pelos governados, o que envolve informação e participação. Participação, portanto, é outra forma de poder, não a sua eliminação. Como ainda salienta Demo (1991, p. 20-21),

não se trata de comparecer somente quando chamado, solicitado, re- querido pela comunidade ou pelos interessados[...]. Trata-se de outra forma de intervir na realidade, que passa por dois momentos cruciais: pela autocrítica e pelo diálogo aberto com os interessados.

Há mecanismos institucionais, para além dos processos eleito- rais de escolha de governantes e representantes, que implicam par-

ticipação (prestação de contas, recall, iniciativa popular, audiências públicas, partidos políticos efetivamente democráticos, plebiscitos e referendos, planejamento participativo, orçamento participativo, representação junto ao Ministério Público, Ação Civil Pública, Ação Popular, Mandado de Segurança Coletivo etc.).

A participação-cidadã, conselhos e governança

Segundo Teixeira (2001, p.31-32), deve-se ressaltar a diferença entre os mecanismos apontados acima, que ele define como participa- ção popular, e aquilo que ele prefere chamar de “participação-cidadã”, um processo em construção:

A participação cidadã diferencia-se da chamada “participação social e comunitária” [...]. Tampouco se trata de simples participação em grupos ou associações para defesa de interesses específicos ou expressão de identidades [...]. Não se confunde também com a expressão “participa- ção popular”, muito utilizada para designar a ação desenvolvida pelos movimentos [...] visando ao atendimento de carências ou à realização de protestos e que [reduz] a política à ação no cotidiano, sem relação com o institucional [idealizando-se] o saber popular [...]. Além disso, a expressão foi cunhada com evidente sentido ideológico, reduzindo os atores aos segmentos sociais mais explorados, [...] excluindo os setores médios [...] que tiveram fundamental importância nos pro- cessos de transição [democrática] de vários países, assim como na ampliação de direitos e conquistas sociais e [que] [...] dão suporte técnico, institucional e financeiro, por intermédio das ONGs, às diver- sas iniciativas cidadãs.

Ao referir a “participação cidadã” tenta-se, portanto, contemplar dois elementos contraditórios presentes na atual dinâmica política. Primeiro, o fazer ou tomar parte, no processo político institucional, por indivíduos, grupos, organizações, que expressam interesses, iden- tidades, valores que poderiam se situar no campo do “particular” [...]. O segundo, o elemento “cidadania” [...] enfatizando as dimensões de universalidade, generalidade, igualdade de direitos, responsabilidades e deveres, [...] à propensão ao comportamento solidário[...].

A participação-cidadã implica a democratização efetiva do Estado, ou seja, a desprivatização da máquina de governo. Implica

também a organização popular autônoma dos cidadãos e a criação de canais contínuos de ligação entre as organizações populares e a máquina do Estado. É iniciativa e invenção dos cidadãos.

Como analisa Teixeira (2000), trata-se de criar uma nova insti- tucionalidade, que decorre “do debate público nos espaços sociais, da interlocução de diferentes atores, até a constituição de um conjunto de proposições que serve de balizamento para as esferas de decisão formal”. Modifica-se, assim, portanto, “a natureza dos filtros pelos quais o sistema tradicional processa as demandas da população”, que passam a estar balizadas pelo “interesse público”. Uma das formas que o autor historia e questiona é a dos conselhos de políticas públicas, um “aparato misto, pelo qual a sociedade penetra no Estado”, criando novas agendas e novos parâmetros.

A proposta atual dos conselhos populares herda a inspiração dos Conselhos da Comuna de Paris (1871) e dos soviets de Petrogrado de 1905 e da Revolução Russa de 1917, segundo Teixeira. Eles precisam ser autônomos, com mandatos revogáveis e imperativos (as posições tomadas pelos representantes devem resultar de deliberações ante- riores da sua organização). Uma pesquisa (SANTOS JÚNIOR et al., 2004) sobre a experiência dos conselhos municipais no Brasil ouviu 1.540 conselheiros em regiões metropolitanas do Rio de Janeiro, Belo Horizonte, São Paulo, Recife e Belém (o universo da pesquisa não é explicitado. Assim, não sabemos qual seria o número total de conselheiros municipais nas referidas regiões). A pesquisa chega às seguintes considerações finais, que aqui destacamos:

• há alta escolaridade entre os conselheiros;

• há precariedade e dificuldade no exercício das funções; • há, todavia, influência sobre as ações das prefeituras; • os conselhos são arenas de interação, de conhecimento

mútuo e de convívio entre os interesses do mercado, do poder público e da sociedade, propiciando acordo cog- nitivo sobre a realidade dos municípios e estabelecendo parcerias e alianças;

• os segmentos sociais mais vulneráveis não têm sua agenda de demandas representada;

• a abertura destes canais não aparece como resultado de um projeto local, mas é impulsionada pelo governo fe deral;

• é um processo pedagógico em curso, embora com o risco de os conselhos se transformarem em estruturas buro- cráticas formais.

Um problema que permanece é a questão da legitimidade. Para Teixeira, este problema seria contornado pelo que chama de “legiti- midade substantiva”, que não é a legitimidade “procedimental” que decorre da decisão de maiorias (eleições). Segundo o autor, “embora não sejam eleitos como representantes da maioria da população, a legitimidade dos membros do Conselho decorre da sua estreita vincu- lação à sociedade através das entidades representadas e do processo de interlocução que estas desenvolvem ou podem desenvolver com a população” (TEIXEIRA, 2000, p. 105). O que, a nosso ver, mantém o problema, pois o processo de interlocução entre cidadãos ativistas, suas organizações e seus concidadãos mais passivos é muito limita- do: não há canais de comunicação social acessíveis e eficazes para a dita interlocução; não há o domínio de uma técnica de comunicação que seja motivadora e arrebatadora; há exigüidade de tempo para a participação-cidadã.19

Governança

Os conselhos populares são instrumentos do que vem sendo chamado “governança”. Governança é um conceito novo, que tem seu pé tanto no universo das corporações (gestão mais transparente, defi- nição das relações entre a direção de uma empresa, seus acionistas e seu conselho), quanto na esfera do Estado, onde significa não apenas um quadro poliárquico (a pluralidade de categorias de atores que de- cidem), mas a democratização das informações, a acessibilidade aos meios de controle dos bens e à participação efetiva dos governados na gestão pública. Um dos princípios da governança é a prevenção a fraudes, corrupção, ao mau uso da riqueza pública. Assim, falar em boa governança significa falar em participação efetiva dos governados, participação com poderes de sanção e que tanto pode impor limites quanto trazer inovações.

Segundo Santos Junior (2004), a governança não se limita a questões “sobre a eficiência e as condições de exercício do bom go- verno”, mas sim sobre o surgimento de novas formas de governo que articulam processos políticos e administrativos. A governança enfoca

a responsa bi lidade social, a transparência e o papel dos grupos da sociedade ci vil nas relações de governo, a interação entre governo e sociedade. Em suma, falar em governança é falar em participação- -cidadã.

A importância desta nova perspectiva é salientada por Santos Jr. (2001, p.59)em função de “mudanças no contexto socioeconômico vinculadas a três processos articulados:

• declínio das instituições políticas de representação de interesses tradicionais;

• a emergência de uma nova cultura política ligada à multi- plicidade de atores sociais com presença na cena política; • a emergência de um novo regime de ação pública, decor-

rente do novo papel exercido pelo poder público.

Em resumo, a participação-cidadã e a governança partem da premissa de uma atuação coletiva e da criação de novas instituciona- lidades que confiram poder efetivo a coletivos de cidadãos.

Por que há participação e por que não há?

Participação implica tempo disponível, economia e precisão no uso do tempo, técnicas de comunicação, adestramento e escolaridade. Sobretudo a convicção de que há a ganhar com o investimento na participação e na ação coletiva e no compartilhar de valores morais. Para Putnam (1996), o que aqui chamamos de governança ou partici- pação-cidadã implica também aquilo que ele denominou de “cultura cívica” e de “capital social”. Por cultura cívica, entenda-se uma cadeia de complexas relações sociais fundamentadas em confiança mútua, regras de reciprocidade, cooperação e horizontalidade, civismo e busca do bem-estar coletivo. Esta cultura cívica é cumulativa, auto- -reforçando-se, e forma estoques de capital social, que vem a ser um bem público, um atributo da estrutura social, que, quanto mais se usa, mais se tem. Putnam relaciona o desenvolvimento econômico local a esta cultura cívica e seu capital social.20

Após a redemocratização do país (se é que havia democracia plena antes da ditadura militar de 1964) e após 1990, com a ênfase dada pela ONU e algumas ONGs internacionais de incentivo a um desenvolvimento com rosto humano, começou-se a se pesquisar e publicar casos brasileiros de gestão participativa local,21 realizados através de diversos programas: apoio a pequenos empreendedores,

novas políticas de abastecimento e de segurança alimentar, incuba- doras tecnológicas, criação de núcleos culturais e de construção de identidades, vivência de planejamento estratégico. São incentivos à criação de lideranças locais, coletivos de cidadãos, estimulando-os a agir.

Mas há outras propostas de participação, de caráter mais es- tritamente político porque mais abrangente. É o que Michael Moore,22 autor de Stupid white men: uma nação de idiotas (2003), nos incita a fazer.

A diferença que uma pessoa consegue fazer

Moore, opositor mordaz dos governos norte-americanos e, principalmente, da era Bush, ele próprio, ao sugerir ações sobre como iniciar um vagalhão que derrubasse o presidente Bush, nos mostra a maior importância relativa do cidadão norte-americano no seu re- lacionamento com os representantes do Legislativo. Moore parte do princípio do cidadão individual, agindo com pragmatismo e por si só, e aproveitando os canais existentes no sistema político de seu país. Alguns dos pontos sugeridos para “uma ação que faz a diferença” denotam a acessibilidade aos representantes do povo no Congresso:

Mantenha contato com seus representantes uma vez por semana e convença seus amigos a fazerem o mesmo. Senadores, membros do Congresso e outros representantes eleitos PRESTAM MUITA ATEN- ÇÃO [destaque no original] aos telefonemas, cartas e telegramas que recebem [...] Gaste apenas alguns minutos por semana e torne seus pensamentos públicos. A política de Bush pode ser interrompida me- diante uma revolta pública e até mesmo algumas centenas de cartas podem transformar-se em uma revolta. Muitas das políticas de Bush já foram engavetadas depois de desaprovação pública. FUNCIONA! [destaque no original]

a) Ligue para 202 – 2243121 – o telefone geral do Capitólio. Simplesmente informe a eles seu CEP e eles o transferirão a seu representante. b) Escreva para Office of Senator [nome] United States Senate, Wa- shington DC 20510 [...].

c) E-mail: para os senadores acesse www.senate.gov.contacting/in- dex_by_state.cfm; para os deputados, acesse www.ouse.gov/writeresp/. d) Envie um telegrama [...].

As sugestões de M. Moore não se limitam, porém, a invocar os representantes do Legislativo. Envolvem também ação direta:

Atormente Bush em qualquer lugar que ele vá. Se vc souber que o Júnior vem para a sua cidade, organize um grupo de amigos para protestar no evento...Grite alto. Seja engraçado. Cartazes, teatro de rua, processos simulados – mostre a ele que não existe um abrigo seguro da Verdade. Moore também recomenda forçar o partido opositor a tomar uma atitude (no caso, o Partido Democrata). Além de assinar peti- ções on-line no site do próprio M. Moore, o cidadão que quer fazer a diferença deve:

Assumir o comando do Partido Democrata local. Na maioria dos con- dados, o Partido Democrata Local é administrado por apenas algumas pessoas, porque a maioria dos cidadãos jamais pensaria em aparecer por lá. Vá à próxima reunião do Partido na sua cidade ou condado e leve dez amigos. Na maioria dos casos, seu grupo será majoritário. Utilize as regras e o estatuto do partido estadual (freqüentemente podem ser encontradas na web e tome o poder (2003, p. 54-56).23

A participação que faz a diferença não tem como destinatário apenas a máquina do Estado. Ainda tendo M. Moore como referência, use a www, informe, convença. Quando Moore estava para publicar seu livro “Stupid white men”, sua própria editora o boicotava, alegando que o novo clima político do país impedia seu lançamento, a menos que ele o reescrevesse pela metade, de forma a suavizar suas críticas. No meio deste impasse, Moore foi dar uma palestra em um encontro anual de um conselho de ação comunitária, já há muito agendada. Ele propôs ao seu auditório de cerca de 100 pessoas ler algumas pá- ginas de seu livro, já que ele não seria publicado. Havia na audiência uma bibliotecária que, depois de ouvir Moore, foi para casa e lan- ço uma carta na Internet para bibliotecas e colegas bibliotecários sobre um clima de censura que nem mais se restringia a Moore, e pedia que todos escrevessem à editora de Moore e exigissem o lançamento do livro. E assim, milhares de pessoas o fizeram. Com o livro já lançado, Moore foi para a Internet divulgá-lo e, poucas horas após, a primeira edição, de 50 mil exemplares, havia sido vendida.

Moore está na linha de uma atuação mais individual, tal como a proposta de Henri Thoreau no século XIX, cujo mote era agir de maneira coerente com a sua forma de pensar. Se um cidadão norte- -americano era contra a guerra com o México e contra a escravidão, não deveria pagar impostos, para não sustentar um governo belicista e escravocrata, tal era a concepção de Thoreau, ele próprio detido por se recusar a pagar impostos.

Ficam aí exemplos de que cidadãos individualizados podem ter uma atitude diferencial, objetiva e inspirar outras atitudes. Desde que sejam detentores de alguma forma de poder (não comprar, boicotar, não votar, ter acesso aos meios de comunicação para ridicularizar, questionar etc.).

No documento Em busca da boa sociedade (páginas 148-156)