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A democracia como uma ética e uma luta

No documento Em busca da boa sociedade (páginas 183-186)

Entre nós, brasileiros, há uma proposta democrática nas esquer- das que parece fazer a síntese de Kautsky, Bernstein e Luxemburgo: refiro-me ao pensamento de Betinho (Herbert de Souza) e Carlos Nelson Coutinho (1992, 1980), seguidores de pensadores comunistas italianos para os quais socialismo e democracia estão indelevelmente

ligados. Seguindo Enrico Berlinguer, ambos insistem na democracia como um valor essencial, historicamente universal, sobre o qual se funda a sociedade socialista:

Quando falamos em “valor”, não temos em mente uma norma abstrata e intemporal, que “valeria” independentemente da história e de suas leis, ao modo do “direito natural” dos contratualistas [...] Lukács, ao falar de democracia, prefere corretamente usar o termo “democrati- zação”, já que, para ele, “trata-se aqui de um processo e não de um estado”. Essa democratização torna-se um valor na medida em que contribui para explicitar e desenvolver os componentes essenciais do ser genérico homem. [...]. O consenso hoje quase unânime em torno do valor universal da democracia é a expressão subjetiva de um fenô- meno primariamente objetivo (COUTINHO, 1992, p. 19-27).

Coutinho lembra que, se nas formações sociais em que não ocorreu uma significativa socialização da política – em que não existe Sociedade Civil pluralista e desenvolvida –, a luta de classes se tra- va em torno da conquista do Estado-coerção, mediante um assalto revolucionário, nas sociedades ocidentais, nas quais o Estado se ampliou, as lutas por transformações radicais travam-se no âmbito da Sociedade Civil, visando à conquista do consenso da maioria da população e orientam-se, desde o início, para influir e obter espaços no seio dos próprios aparelhos de Estado. O centro da luta está no que o marxista italiano Gramsci denominou de guerra de posições, ou seja, na conquista paulatina de espaços no interior da sociedade civil e, através e a partir dela, no próprio seio do Estado. Essa guerra de posição seria o processo de construção de uma democracia de massas, da democracia de base, para usar a expressão do eurocomunista P. Ingrao, convergente com Coutinho na proposta de um procedimento democrático, apoiado em organismos de base, que transformaria a democracia política em democracia social (INGRAO, 1980, p.144-145). Tal democracia de massas seria, em relação à democracia liberal, a negação dialética, a superação, que conserva e eleva a nível superior as conquistas da segunda. (COUTINHO, 1992).

Para Betinho (SOUZA, H., 1987), a democracia seria a negação dialética da sociedade capitalista e sua proposta igualitária, diversa e participativa, tem um caráter radical. Produzir a democracia significa, portanto, questionar o capital em todas as suas dimensões e a toda

hora, uma vez que no capitalismo não existiria a possibilidade de democracia, no capitalismo a democracia seria impossível:

No capitalismo não existe a possibilidade da democracia. Por mais que os liberais afirmem que só no capitalismo a democracia é viável, ocorre exatamente o contrário: no capitalismo a democracia é im- possível [...]. Na sociedade moderna a possibilidade de democracia passa pela superação/negação do capital. Mas isso não é suficiente. A democracia só é possível como invenção de uma sociedade nova, porque ela, a democracia, não nasce do capital, nem de qualquer outra forma de sociedade anterior à existência da democracia [...] (SOUZA, H.,1987, p. 16-35).

Para Betinho, pois, a invenção da sociedade democrática se dá pela radicalização da democratização, pela recuperação do conceito de cidadania, do sentido da vida, do futuro, do desenvolvimento.

A luta política, acrescenta Coutinho, já não mais se trava apenas entre uma burguesia entrincheirada no Estado e as vanguardas ativas, mas restritas da classe operária, pois

todo um tecido complexo de organizações sociais e políticas, envol- vendo também as camadas médias, espalha-se agora pelo conjunto da sociedade capitalista. Assim, entre os aparelhos executivos (civis e militares) do Estado e os partidos de vanguarda do proletariado, criou-se uma rede de instituições com um papel efetivo na vida política (COUTINHO, 1991, p. 91-101).

A proposta democrática de Coutinho guarda similaridade com a noção de sociedade democrática de Tocqueville, põe o foco da questão não apenas na vida parlamentar, mas na vida associativa de uma sociedade civil plural e ativa.

Isto posto, já não haveria lugar para o paradigma jacobino13 de Augusto Blanqui, pelo qual a mudança revolucionária é concebida como fruto da ação de uma “aguerrida vanguarda de poucos e cora- josos combatentes” que tomariam o Estado, livrando-o da condição de “comitê executivo da burguesia” e colocando-o sob a “ditadura do proletariado”; o processo de transformação teria passado, então, a ser um processo de reformismo revolucionário; nele a classe operária, “sem perder sua centralidade”, não é mais o único segmento social

empenhado em promover uma transformação socialista e democrática da sociedade (COUTINHO, 1992, p.30).

O reformismo revolucionário proposto por Coutinho envolve a criação de sujeitos políticos coletivos, a criação de novos insti- tutos políticos coletivos, a mudança de função de alguns velhos institutos, como os parlamentos, não após a conquista do poder, mas como o processo da democracia de massa. Longe da “fetichiza- ção da democracia direta” (os sovietes de Lenin), Coutinho defende uma articulação entre a democracia representativa e a direta, com o parlamento vindo a ser a síntese política das demandas dos vários sujeitos coletivos. Relembrando que Marx teria falado na possibilida- de de uma revolução pacífica e parlamentar nos Estados Unidos, na Inglaterra e na Holanda, e que Engels, no ano de sua morte, propôs uma nova transição ao socialismo, baseada na auto-organização e na luta institucional, Coutinho critica as afirmações datadas do Manifesto

comunista e aponta para outros paradigmas marxistas de revolução:

a revolução como um processo, uma seqüência orgânica de rupturas parciais. E arremata raciocinando que, se a história é uma unidade contraditória de continuidade e de ruptura, “o revisionismo faz parte da essência do método marxista”.

Só numa democracia de massas, onde o protagonismo político passa cada vez mais para a sociedade civil e seus atores, é possível fazer com que uma política conseqüente de reformas de estrutura conduza gradualmente à superação do capitalismo. E é nessa medida que a luta pela democracia e a luta pelo socialismo são duas faces solidárias da mesma moeda (COUTINHO, 1992, p. 45).

No documento Em busca da boa sociedade (páginas 183-186)