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paideia (Rαιδεια) no modelo ateniense

No documento Em busca da boa sociedade (páginas 169-173)

A democracia ateniense da época clássica (508–429 a.C.) é o exemplo recorrente do Estado no qual a política não é, como nos nossos dias, atributo de uns poucos profissionais, mas sim direito

daqueles que são cidadãos e que, através da fala e da discussão pú- blicas, decidem em comum os destinos da Pólis. (Rousseau, na sua concepção da República, do Estado como a soma de todos, inspirou- -se na Pólis ateniense.) Na Pólis ateniense clássica, o Estado era a coletividade política, a população-cidadã e quem não participasse desta esfera pública era literalmente idiota, preso ao id, ao pessoal e particular (os estrangeiros – metecos –, as mulheres e os escravos). Segundo Aristóteles, quem não fosse cidadão, não participasse desta esfera pública, não era humano: “O homem que está isolado, o que é incapaz de participar dos benefícios da associação política, ou que não necessita participar por ser auto-suficiente, não pertence à pólis e é, portanto, um animal ou um deus.” (Aristóteles, in “Política, Livro I, cf. citado por Morrall, J.B., in “Aristóteles”, 1985:57).

A consciência de ser parte de uma totalidade social – a Pólis – e dela participar ativamente estava intimamente relacionada e depen- dente da forma de democracia direta, sem representantes intermediá- rios, que tanto parece ter inspirado Rousseau, a Comuna de Paris e os Sovietes de Lenin. Assim Finley (1988, p. 31) a descreve:

A democracia ateniense era direta, não representativa, em dois senti- dos. O comparecimento à Assembléia soberana era aberto a todo cida- dão e não havia burocracia ou funcionários públicos, exceto uns poucos escriturários, escravos de propriedade do Estado, que faziam registros inevitáveis, como cópias de tratados e leis, listas de contribuintes inadimplentes ou similares [....] A Assembléia, que detinha a palavra final na guerra e na paz, nos tratados, nas finanças, na legislação, nas obras públicas, em suma, na totalidade das atividades governamentais, era um comício ao ar livre, (na colina Pnyx)1 com tantos milhares de cidadãos com idade superior a 18 anos quantos quisessem comparecer naquele determinado dia. Ela se reunia freqüentemente durante o ano todo, no mínimo 40 vezes e, normalmente, chegava a uma decisão sobre o assunto a discutir em um único dia de debate, em que, em princípio, todos os presentes tinham o direito de participar, tomando a palavra.

Isegoria, o direito universal de falar na Assembléia, era algumas vezes

empregado pelos escritores gregos como sinônimo de democracia. A decisão era pelo voto da maioria simples dos presentes.

A democracia ateniense, a Pólis, era uma comunidade de cida- dãos (demos) reunidos na ecclesia, ou assembléia, para exercerem o

direito de falar – isegoria – e de votar, sob a obrigação moral de dizer abertamente suas intenções (parrhésia).

As tarefas administrativas desta Pólis eram desempenhadas por ocupantes de cargos anuais e por um Conselho dos 500 (Boulé), todos escolhidos por sorteio, pois, segundo Aristóteles (apud FINLEY, 1988, p. 32), as eleições seriam procedimentos aristocráticos, não democráticos, uma vez que introduziriam o elemento da escolha, da seleção das melhores pessoas, em vez do governo por todos. Além de ser direta, via Assembléias de cidadãos, a democracia ateniense desconhecia a burocracia, o governo, no sentido moderno, e partidos políticos: a administração (polícia, guarda dos arquivos públicos, finanças) era realizada por escravos.

No entanto, quem eram os cidadãos atenienses? Quantos iam às Assembléias? Seriam os mesmos ou não? O exercício e a tomada de decisões eram efetivamente majoritários?

Finley (1988) calcula que os cidadãos atenienses – adultos, homens – estavam entre 35 e 40 mil pessoas.2 Quantos iam e quem ia às assembléias, não há como saber. O autor supõe que a população rural, os camponeses, pouco participariam dessas assembléias. Cada reunião da Assembléia tinha uma composição diferente, não havendo exatamente membros da Assembléia, mas membros de determinada Assembléia, em determinado dia (registros históricos informam que, no tempo de Aristóteles, a Assembléia se reunia pelo menos quatro vezes em cada período de 36 dias). Há indícios de que todo o processo era muito participativo, de que as votações eram precedidas por perío- dos de intensa discussão nas lojas, tavernas, praça e mesa de jantar. Segundo Finley, o comparecimento às Assembléias transmitia um in- tenso grau de envolvimento. Como indícios desta participação, Finley cita filósofos e políticos da época, cujas falas têm como ponto comum o enaltecimento à participação política: Protágoras, para quem todos os homens possuem a politike techne, ou seja, a arte do julgamento político, embora com graus de habilidade diferentes; Aristóteles, que definia como elementos comuns da koinonia – a comunidade – os laços de proximidade, a forma comum de vida, a consciência de um destino comum; Solón (594 a.C.), que, ainda no século VI a.C., aprovou uma lei contra a apatia: “Quando houver uma guerra civil na cidade, aquele que não lutar em um dos dois lados será destituído de direitos civis e de toda a participação nos assuntos governamentais” (apud FINLEY, 1988, p. 41). Já Péricles considerava “aquele que não participa da vida

de cidadão não como quem cuida de sua própria vida, mas sim como um inútil”(apud FINLEY, 1988, p. 42).

No entanto, o enaltecimento à participação política e a pero- ração dos filósofos contra os apáticos e idiotas também podem ser entendidos, ao contrário, como a própria evidência da existência destes. Cabia, naqueles tempos, ao arauto Estenthor – homem de voz possante (daí a expressão contemporânea “voz estentórea” para designar os donos de vozes tonitruantes) – não apenas percorrer a comunidade avisando os cidadãos da realização de Assembléia, mas incitá-los a participar, por processos mais veementes, até mesmo fechando estabelecimentos.

A democracia ateniense foi estabelecida em 508 a.C. por Clis- tenes, depois de um período de guerra civil, e durou cerca de dois séculos.3 Teve seu apogeu na época de Péricles (460 – 429 a.C.), um dos dez estrategas que comandavam o exército e a frota ateniense e que foi considerado pelo historiador Tucídides: o “primeiro cidadão”. A partir da Guerra do Peloponeso – contra Esparta – e da expedição de Alcebíades à Sicília (415–413 a.C.), Atenas caiu (404 a.C.) sob a hegemonia de Esparta. Segundo Finley, o ponto final na democracia ateniense foi colocado pelo exército macedônico, um ano após a morte de Alexandre, o Grande (323 a.C.).

A democracia clássica ateniense não se resumia a ser um regime político, mas assumia as formas de uma ética, embora excludente, isto é, tirando da sua ágora (praça pública) os escravos, as mulheres e os estrangeiros, que não eram considerados cidadãos. Por ser direta, a democracia ateniense dependia e estava fundamentada na paideia, isto é, na formação do indivíduo-cidadão, do homem político, inserido na sua comunidade.4 Como destacou recentemente o filósofo Cornelius Castoriadis (1986, p. 77):

somente a educação (paideia) dos cidadãos enquanto cidadãos pode dar um conteúdo substantivo de valor ao “espaço público”. Esta paideia não é, primariamente, uma questão de livros e créditos para escolas. Primeiramente, é o tornar-se consciente de que a polis é também você e que o seu destino depende também da sua opinião, comportamento e decisões; em outras palavras, é a participação na vida política. Como salientou Jaguaribe (1982), a democracia está fundamen- tada na cidadania, que é definida pela vinculação da pessoa à Pólis, ou

seja, à comunidade política, estabelecendo a permanente obrigação de cada um na defesa da cidade e na contribuição para o seu bem geral, bem como no direito de opinar sobre os seus destinos.

No documento Em busca da boa sociedade (páginas 169-173)