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Limites e desafios à participação

No documento Em busca da boa sociedade (páginas 156-159)

A democracia participativa pode ser farsesca. Por enquanto, no cenário político brasileiro, há mais uma boa intenção mesclada a um jogo de participação cujo resultado é ainda pouco efetivo: os canais participativos ainda são estreitos, a população comparece em pequeno número, não há um limite muito claro entre a identidade do líder comunitário e a do cabo eleitoral partidário; a amplitude e o teor do que estaria sendo decidido coletivamente é ainda insuficiente e os mecanismos, como as audiências públicas, por exemplo, sem pro- mover participação e diálogo amplos entre o povo e as autoridades constituídas, caem em descrédito, como no caso que transparece da denúncia abaixo:

Niterói, 18 de Novembro de 2003. AOS DEFENSORES DE NITERÓI. AUDIÊNCIA PÚBLICA?

O objetivo da Audiência Pública, conforme consta no “Estatuto da Ci- dade” é a participação da população e das Entidades Representativas na gestão democrática do Município. Infelizmente e desastrosamente as Audiências Públicas convocadas pelo Executivo e pelo Legislativo vêm com o único objetivo de usar as Entidades para cumprir e legi- timar o Estatuto da Cidade e evitar uma Ação Civil de improbidade administrativa.

Vejam os procedimentos ocorridos normalmente nas Audiências do “PUR” [Plano Urbanístico Básico], da EIV, do Orçamento e do PUR – Re-

gião Norte: 1 – Pressa nas discussões; 2 – Não apresentam as propostas para análise das Entidades; 3 – Solicitam por escrito as propostas das Entidades e não fazem a “ATA”; 4 – Não apresentam a proposta final para discussão com as Entidades antes da votação; 5 – Péssima divul- gação das Audiências Públicas, para esvaziar as mesmas; 6 – Marcam as Audiências Públicas em horários difíceis e com isto têm pouca fre- qüência; 7 – Não acatam as propostas das Entidades, principalmente os itens fundamentais; 8 – Vão para a mídia e falam que houve “x” Audiências Públicas e o assunto foi exaustivamente discutido com a sociedade organizada pois o objetivo é a quantidade das Audiências; 9 – Não apresentam as emendas dos Vereadores nas Audiências; 10 – Ausência maciça dos Vereadores (70%) nas Audiências do Executivo e Legislativo; 11 – Votam sem comunicar as Entidades o dia da mesma; 12 – No caso do “PUR” a 1a votação não leram as emendas dos Verea-

dores e na 2a “fecharam a Câmara”, e às Entidades ficaram na rua sob

repressão da PM e Guarda-Municipal; 13 – A Câmara aprova a proposta do Executivo com pequenas emendas. Por este tipo de procedimento “normal” aos nossos políticos, não podemos ficar calados e temos de deixar de ser palhaços e de ser manipulados. Queremos usar o nosso direito de participar efetivamente se os nossos políticos não estão acostumados com isto, e vão ter que conviver com a participação popular em todas as questões da Cidade, porque temos o direito de exercer a nossa cidadania. As Entidades organizadas têm que fazer uma reunião geral para traçar uma estratégia para reverter este quadro de total desrespeito, inclusive de não participar mais destas Audiências Públicas de “fachada e imorais” que não acatam as nossas propostas e que só beneficiam a “especulação imobiliária”.

NÃO ADIANTA DAR SUA PROPOSTA, ELA NÃO SERÁ ACEITA, JÁ ESTÁ TUDO ACERTADO E PRONTO “ENTRE ELES”.

José de Azevedo – Presidente do CCOB [Conselho Comunitário da Orla da Baía].

Há pouca participação entre nós? Por quê?

Embora não tenha feito pesquisa sistemática sobre isto, apenas baseada em pequena experiência de ativismo-cidadão, creio que o grau de resposta dos representantes e dos governantes às demandas do cidadão é muito baixo e inadequado no Brasil, o que se torna em um desestímulo e um fator de descrença nas instituições e nos canais disponíveis para a participação. O que viria primeiro: novas práticas

dos cidadãos provocariam a acessibilidade da máquina do Estado ou a reforma do Estado, tornando-o confiável, incentivaria o cidadão a aproximar-se e tomar parte?

M. Moore sugere a Internet e o telefonema como meios de pres- são. Entre nós a Internet é ainda um instrumento restrito e telefonar para Brasília é pesado para o orçamento do brasileiro médio. A par- ticipação entendida como parceria com a máquina do Estado implica ter tempo, dinheiro, conhecimento e adestramento. Sem tempo, sem dinheiro e sem conhecimentos, como pode uma população protago- nizar um processo de democracia de fluxo contínuo?

Uma cultura política participativa pode ser também entre nós um risco de vida, como o exemplificam as mortes noticiadas de in- tegrantes de movimentos sociais. Nossa herança política autoritária, nosso caldo de cultura autoritário geraram uma violência e ferocidade que matam lideranças e ativistas. O “homem cordial” brasileiro é um mal-entendido. A expressão nasceu para referir-se a quem age por impulso, dando vazão aos impulsos, sem os ditames da razão.24

Ocorre, portanto, que o processo realmente participativo de tomada de decisões, além de poder ser visto como perigoso, é também oneroso, moroso e requer a construção simultânea de uma cultura de- mocrática de tolerância e de convívio, posto que se trata de encorajar a exteriorização de conflitos de interesses, de motivações e de visões de mundo dos diferentes atores sociais. Requer tempo para encontros e discussões, demanda informações e comunicação.

No Brasil, as pastorais eclesiásticas, as ONGs de assessoria aos movimentos populares focaram seus esforços na organização política dos segmentos sociais mais vulneráveis. Os segmentos médios, que teriam meios para agir como Michael Moore sugere, têm ficado à margem deste processo pedagógico. Nossas políticas participativas recentes, embora entendidas como políticas de integração e de inclu- são, ainda assomam como políticas sociais voltadas para a pobreza e que tomam a forma de parcerias pontuais em soluções locais (bolsa escola, mutirão para saúde e saneamento rural etc.). Os segmentos médios não se reconhecem neste processo.

Em janeiro de 2002, estudantes de História da UFF, organiza- dos na chapa “Trem Bala”, queixavam-se da “desmobilização” e da “letargia política” entre os estudantes, seu “ceticismo e comodismo” e sua negativa em relação à representação estudantil. Propunham-se a perguntar aos desmobilizados o que estes achavam de sua própria

desmobilização e o que seria a mobilização. O panfleto do Trem Bala não oferecia ele próprio definição para o que seria mobilização, mas fica nas entrelinhas pressuposto que vem a ser a organização em torno de interesses (Febraban, Fiesp, Firjan, igrejas, ONGs, sindicatos são atores citados como fortemente mobilizados e, portanto, influentes) e de idéias e valores (“anticapitalistas” e “antiopressão” são os valores mencionados pelos estudantes).

Por que a aludida desmobilização? Por que o ceticismo entre os estudantes? Deverá isto ser analisado apenas como letargia e como- dismo? Não poderá ser um repúdio a práticas já rançosas, preferindo outras formas? Os encontros nacionais setoriais de estudantes têm sido muito concorridos e um encontro sobre Anarquismo, realizado na UFF em 2004, lotou um amplo auditório, não obstante ter se reali- zado durante um período de greve (ver capítulo sobre Anarquismo).

No documento Em busca da boa sociedade (páginas 156-159)