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Parte II Da condição ampla da profissão de professor

3.7 Dimensões da docência universitária em sua profissionalidade

3.7.4 A autonomia

A autonomia é a categoria-chave em todas as vertentes que discutem a profissionalidade docente. No entanto, ela assume distintos sentidos conforme o objeto estudado: autonomia sobre o processo de trabalho, autonomia no controle da profissão e, ainda, autonomia nas atividades de trabalho. De acordo com Lessard (2010) essas distinções decorrem das abordagens escolhida para análise. Ele distingue três grandes abordagens disciplinares provenientes da sociologia e da ergonomia. A primeira, a sociologia clássica do trabalho:

que associa a autonomia dos trabalhadores a sua capacidade coletiva de subtrair-se ao controle patronal; a sociologia das profissões: que concebe essa mesma autonomia em termos do controle exercido por um determinado grupo sobre um campo de atividade socialmente legítima e sobre a capacidade dos membros desse grupo de nele definir, regulamentar e dispensar um serviço reconhecido, e por último: a ergonomia cognitiva francesa: que faz da autonomia no trabalho uma condição essencial da eficácia desenvolvida pelos trabalhadores. (LESSARD, 2010, p. 1)

Considerando essas três abordagens, pode-se dizer que a autonomia refere-se às condições norteadoras das situações dos sujeitos trabalhadores, abarcando, de maneira coletiva e individual, as dimensões do trabalho em suas condições mais estruturais e em microcondições em termos da atividade do trabalho em si.

De acordo com Lessard (2010), na abordagem da sociologia clássica do trabalho, deve-se partir do entendimento de que o trabalho, numa sociedade capitalista está marcado pelas feições das relações de produção inerentes a esse sistema. Portanto, “o que é primordial e determinante é a relação salarial de trabalho, o fato de o trabalho estar inserido em um sistema de relações sociais marcadas pela exploração, pela submissão, pela alienação e pela dominação.” (LESSARD, 2010, p.01)

Visto por esse ângulo, o trabalhador perde o controle sobre seu trabalho e dessa condição sobressaem duas possibilidades, manter-se submetido a tais condições ou resistir a elas, lutando por mais autonomia. Essa luta pode ocorrer por meio de ações coletivas ou individuais, reivindicando mudanças concretas capazes de ampliar os níveis de autonomia dos trabalhadores. Nessa perspectiva, “a autonomia profissional é sinônimo de luta pelo controle, por parte dos trabalhadores, de um trabalho dominado e da liberação das pressões pesadas demais e desumanizantes.” (LESSARD, 2010, p.01)

Na sociologia das profissões, a autonomia profissional refere-se à capacidade de o grupo, semelhante à corporação, ter o domínio sobre o campo de trabalho em suas diversas facetas: a qualificação e a formação, o recrutamento dos membros, a carreira, a remuneração e o status social, o próprio trabalho, sua organização e avaliação.

Como apresentado anteriormente, a noção de profissionalização assentava-se na ideia de estabelecimento das profissões, cuja referência era o monopólio sobre essas condições. Desse modo, o grupo profissional tinha plena autonomia para o direcionamento das suas atividades e representação no mercado de trabalho.

No entanto, Lessard (2010) ressalta que a autonomia é uma conquista e é relativa, conforme neste trecho: “os acadêmicos, preocupados com sua autonomia em pesquisa, constatam cada vez mais sua dependência em relação aos órgãos de financiamento, públicos e privados, e às

políticas governamentais que associam o desenvolvimento científico e tecnológico ao desenvolvimento econômico.” (LESSARD, 2010, p.2)

Segundo esse autor, a autonomia pressupõe ausência de controle externo e autoridade legítima para execução do trabalho, em acordo com as regras do próprio grupo profissional. Assim, a autonomia é essencialmente coletiva e pressupõe que o sujeito que se forma e insere-se na profissão vai seguir sua atuação profissional em acordo com o estabelecido pelo grupo.

Dadas essas condições, Lessard (2010) ressalta que a autonomia ocorre na convergência de dois sentidos: um que cria as condições necessárias e outro que permite agir com liberdade:

Isso se dá nos dois sentidos: a autonomia, em certas condições, torna possível o desenvolvimento da competência do grupo profissional e a competência demonstrada, isto é, eficaz, reforça a autonomia reivindicada. Daí vem o segundo sentido da autonomia, ‘freedom to’, liberdade de agir, de afirmar uma competência, de ‘professar’ valores de serviço, e autorização e responsabilidade (‘empowerment’). Estamos aqui além da liberação das pressões e controles, estamos no mundo da operacionalização, enquadrada, é verdade, mas autônoma, de um serviço socialmente reconhecido. (LESSARD, 2010, p.02, grifos do autor)

Além desses dois sentidos amplos assumidos pela autonomia, ela ainda pode se expressar nas situações práticas, como uma condição sine qua non em que o sujeito, ao desenvolver determinada tarefa, age com autonomia na eleição das ferramentas e procedimentos com vista ao desempenho eficiente de seu trabalho. É nessa perspectiva que a autonomia é tratada pela ergonomia: uma condição inerente à situação de trabalho, concretamente localizada entre o trabalho prescrito e o trabalho realizado.

Portanto, a autonomia assume um terceiro sentido: é considerada uma condição necessária para o desempenho de um trabalho; “é uma particularidade de cada trabalhador ou de cada coletivo concreto, confrontado a uma situação de trabalho complexa e incerta, que exige iniciativa e adaptação.” (LESSARD, 2010, p.03)

Tendo em vista essa análise apresentada por Lessard (2010), recorrendo-se à literatura sobre a docência verificou-se a influência desses diferentes sentidos sobre autonomia nos estudos efetuados.

Nesse ponto, parece oportuno reportar à primeira parte deste capítulo, precisamente à abordagem da origem da docência universitária. A esse respeito, Durkheim (1995) evidencia a relação entre a afirmação dos docentes e a autonomia profissional na composição da

universitas, que designava corporação de ofícios. Já Weber (1973), analisando os docentes

alemães e americanos mostra a perda da autonomia dada a natureza do controle de trabalho nas universidades americanas. Para ele, elas se assemelhavam a uma empresa e convertia os docentes em proletários. Por sua vez, Santos (1995) apresenta a devida dimensão da contemporaneidade, ao referir-se às crises substanciais que a universidade tem enfrentado repercutindo sobre sua autonomia. Como conseqüência, ele aponta a crise dos valores intrínsecos à comunidade universitária, como: comunismo, desinteresse, universalismo.

Feito esse parênteses, pode-se dizer que os docentes da educação superior eram tidos como um grupo que possuia mais autonomia sobre as formas de controle da profissão e dos processos de trabalho, quando comparado com os docentes da educação básica, conforme apontado por Enguita (1991):

Enquanto os professores não universitários estão limitados a dar as disciplinas ou áreas de sua especialidade que figuram nos programas, que são poucas, e devem seguir os temas preparados pela administração, os universitários podem dar qualquer conteúdo as suas disciplinas e mudar facilmente de uma para outra. Enquanto os primeiros se encontram submetidos em diferentes graus à autoridade de colegiados, diretores e proprietários, os segundos são plenamente autônomos frente às autoridades acadêmicas no exercício de sua docência. (ENGUITA, 1991, p.56)

Essa realidade descrita por Enguita (1991) tem sido cada vez mais questionada pelos estudos recentes sobre a educação superior. Musselin (2011), por exemplo, considera que as atividades de trabalho dos docentes universitários têm passado por profundas transformações convergindo-se para a intensificação do controle. Nesse sentido, entra em jogo uma série de condicionantes externos sobre o trabalho dos docentes rompendo-se com a exclusividade da autorregulação feita pelos colegas da profissão. Desta forma, Musselin cita alguns exemplos como: avaliação de produtividade baseada em publicações segundo critérios de agências nacionais e internacionais, realizadas por agências próprias para esse controle; em termos institucionais, incentivos a controles do trabalho que vão desde controle de presença a gratificações específicas para algum desempenho docente. (MUSSELIN, 2011)

Como ressalta Musselin (2011) “antes de ser questionada ou enfraquecida, a regulação pelos colegas de profissão se vê, portanto, complementada por outras formas de controle, e a ação

conjunta destas diferentes modalidades tende a reduzir a autonomia individual de que dispunham outrora os docentes de ensino superior.” (MUSSELIN, 2011, P. 662)

Também Chauí (2003) analisou a perda da autonomia dos docentes universitários. Suas considerações sobre a transformação da universidade, expõe que ela antes era concebida como instituição e hoje tem sido concebida como organização. Portanto, é preciso “definir a autonomia universitária não pelo critério dos chamados ‘contratos de gestão’, mas pelo direito e pelo poder de definir suas normas de formação, docência e pesquisa.” (CHAUÍ, 2003, p.12, grifos da autora)

Nessas circunstâncias, a autonomia compreende o poder de autorregulação da comunidade universitária sobre as definições do próprio trabalho e do seu papel perante a sociedade. Para isso, a autonomia compreenderia três sentidos principais:

a) como autonomia institucional ou de políticas acadêmicas (autonomia em relação aos governos); b) como autonomia intelectual (autonomia em relação a credos religiosos, partidos políticos, ideologia estatal, imposições empresariais e financeiras); c) como autonomia da gestão financeira que lhe permita destinar os recursos segundo as necessidades regionais e locais da docência e da pesquisa. (CHAUÍ, 2003, p.13)

Desse modo, os sentidos da autonomia universitária são inerentes às condições profissionais e de trabalho dos docentes. Portanto, autonomia significa a possibilidade dos docentes atuarem com liberdade para produzir conhecimentos e desenvolver formação independentemente de interesses particulares ou de origem meramente mercadológica.

Já na visão de Contreras (2002), a autonomia varia de acordo com os modelos de docência previstos na articulação que se faz entre a obrigação moral, o compromisso com a comunidade e a competência profissional. Assim, a docência se caracteriza conforme essas dimensões sejam concebidas e articuladas, constituindo: um especialista técnico, um profissional reflexivo ou um intelectual crítico.

Por conseguinte, a concepção de autonomia varia substancialmente conforme o entendimento desses três perfis, respectivamente: autonomia entendida como status ou atributo; autonomia entendida como responsabilidade moral individual; e a autonomia vista como processo coletivo dirigido à transformação das condições institucionais e sociais do

ensino. Nessa perspectiva, a autonomia profissional não configura apenas como uma exigência trabalhista, mas uma necessidade educativa. (CONTRERAS, 2002)