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Parte I – Das peculiaridades dos espaços e tempos da docência universitária

3.3 Do contexto da universidade contemporânea

A análise da universidade contemporânea e seus docentes implicou entender os traços que têm ganhado a docência nesse contexto. Para tal, fundamentou-se em Boaventura Souza Santos (1995). Ele inicia o estudo da universidade, problematizando a perenidade dos objetivos da universidade no mundo ocidental, desde seu apogeu na Modernidade europeia até os tempos recentes. Nessa direção ele aponta os três grandes objetivos fundacionais da universidade moderna e fortemente consolidados na concepção liberal de universidade da seguinte forma:

Porque a verdade só é acessível a quem procura sistematicamente, a investigação é o principal objetivo da universidade; porque o âmbito da verdade é muito maior que o da ciência, a universidade deve ser um centro de cultura, disponível para a educação do homem no seu todo; finalmente, porque a verdade deve ser transmitida, a universidade ensina e mesmo o ensino das aptidões profissionais deve ser orientado para a formação integral. (SANTOS, 1995, p.188)

Segundo Santos (1995), esses objetivos de ensino, investigação e a prestação de serviços somente foram abalados a partir da década de 1960. Nessa época as universidades passaram por importantes transformações dada a expansão da educação superior e a criação de novas áreas de saber. Nesse contexto, as funções das universidades foram ampliadas abarcando uma multiplicidade muitas vezes contraditória entre si.

As contradições geradas em torno das diversas funções assumidas pela universidade têm como consequência tensões tanto no interior das próprias universidades quanto na relação das universidades com o Estado e a sociedade. Para Santos (1995), as tentativas de reformas e intervenções sobre as contradições não abordam, em profundidade, suas causas. Estas, para ele, residem numa tríplice crise da universidade: “crise de hegemonia, crise de legitimidade e crise institucional.” (SANTOS, 1995, p.189)

A crise de hegemonia perpassa as demais e adquire certa centralidade porque trata-se da perda de hegemonia da universidade na exclusividade dos conhecimentos produzidos e transmitidos. Tendo em vista que o eixo estruturante da universidade moderna foi seu posicionamento como lugar privilegiado de alta cultura e conhecimento científico avançado de excelência, ao perder essa hegemonia, na verdade, há uma ruptura com uma concepção de universidade.

A esse respeito, Santos (1995) explica que a crise de hegemonia é dada pelo deslocamento dessa concepção de universidade à medida que ela passa a ter que dar conta de conjugar alta cultura e cultura popular; educação humanística e formação profissional; busca desinteressada do conhecimento com investigação aplicada; tendo como mediação uma nova relação entre universidade e produtividade e universidade e comunidade.

Com referência à crise de legitimidade, ela se instaura-se a partir do desvelamento do caráter elitista assumido pela universidade desde suas origens e a reinvindicação por sua democratização. Dessa forma é colocado em xeque “a função tradicional de produzir conhecimentos e de transmitir a um grupo social restrito e homogêneo, quer em termos das suas origens sociais, quer em termos dos seus destinos profissionais, de modo a impedir a sua queda de status” frente à demanda de atendimento às camadas populares. (SANTOS, 1995, p.211)

Argumenta, ainda, Santos (1995) que a crise de legitimidade encontra-se articulada com a crise de hegemonia, uma vez que “o tipo de conhecimento produzido (questão de hegemonia) tende a alterar-se com a alteração do grupo social a que se destina (questão de legitimidade).” (SANTOS, 1995, p.211)

Nesse sentido, adverte esse autor que, embora a crise de legitimidade tenha sido resultado da luta pelo direito à educação, na prática, os estudos sociológicos revelaram que a massificação da educação não alterou o padrão de desigualdade social prevalecente no âmbito da educação superior.

A propósito, os jovens oriundos das camadas populares tenderam à formação técnica e à diferenciação e estratificação assumidas pelas instituições de ensino superior. Em função do tipo de conhecimento produzido, foram traduzidas em diferenciação e estratificação segundo a origem social dos estudantes:

Os múltiplos dualismos, entre ensino superior universitário e não universitário, entre universidades de elite e universidades de massas, entre cursos com grande prestígio e cursos desvalorizados, entre estudos sérios e cultura geral, definiram-se, entre outras coisas, segundo a composição social da população escolar. (SANTOS, 1995, p.212)

Assim sendo, a massificação não gerou democratização da universidade. Para Santos (1995), o conjunto de desafios sobrepostos à universidade e as crises desencadeadas não podem ser vistos desarticulados dos estágios de desenvolvimento do capitalismo que foram configurando novas demandas em torno do conhecimento e da tecnologia. Do mesmo modo, os Estados nacionais foram tomando novas formas. Nesse sentido, a reação dos Estados nacionais e agentes econômicos foi buscar meios fora da universidade para dar conta do desempenho suficiente para atender ao desenvolvimento.

Essas demandas levaram a universidade a deixar de ser a única produtora de pesquisa e ensino e a ter que conviver com outras instituições de ensino superior e centros de pesquisas avançados não universitários tanto públicos quanto privados.

Na avaliação de Santos (2004), as mudanças no cenário da educação superior nas últimas décadas do século XX distorceram o sentido de universidade. Portanto, é necessário lutar por uma nova definição de universidade perante a transfiguração do ensino superior. E ressalta: “As reformas devem partir do pressuposto que no século XXI só há universidades quando há formação graduada e pós-graduada, pesquisa e extensão. Sem qualquer destes, há ensino superior, não há universidade.” (SANTOS, 2004, p.65)

Por outro lado, esse autor acrescenta que, internamente, as universidades passaram a conviver com a lógica de produtividade industrial gerando distorções institucionais por meio

da introdução de mecanismos de patenteamento da investigação e divulgação científica cujo controle centra-se na quantidade de produtos. De maneira combinada, as universidades públicas passaram a conviver com cortes orçamentários e busca concorrencial por financiamento tanto público quanto privado.

Esse cenário desencadeado pela crise de hegemonia e legitimidade repercutiu na crise institucional, caracterizada pela perda de autonomia para definição de valores e objetivos da universidade.

Esses fatos dão indícios de que a dicotomia assinalada por Weber, no início do século XX, sobre os professores universitários, tenha tido maior complexidade. Santos (1995) acredita que são os professores as prováveis vítimas das alterações internas da universidade, conforme expressa este trecho:

Ao nível do corpo docente, pela acentuação das diferenças de salários entre os docentes cujos temas de investigação são economicamente exploráveis e os restantes docentes, diferenças que se repercutem nos investigadores e docentes mais jovens quando corresponde um alargamento, que alguns consideram perigoso, do que se deve entender por ‘atividade aceitável e legítima’ de um investigador universitário (predominância do trabalho de consultoria de empresas, formação e gestão de empresas, etc.) (SANTOS, 1995, p. 204, grifos do autor)

Além desse risco, Santos (1995) ressalta que a universidade sofre outro impacto da marginalização das áreas das ciências sociais e humanidades pelo fato de ambas serem áreas de menor comercialidade.

Diante do exposto, a conformação dos docentes diante das transformações da universidade tem sido marcada pela diferenciação da condição econômica diante das demandas externas à universidade. Na opinião de Santos, essas são alterações imediatas e visíveis em curto prazo. No entanto, subjacente a elas, ele vislumbra outra alteração, a longo prazo, que é a mudança do grau de respeito aos valores da ética científica, como “o comunismo, o desinteresse, o universalismo e o cepticismo organizado” (SANTOS, 1995, P.204) às quais a comunidade universitária sempre aspirou com maior ou menor concretização.

Assim sendo, com base em Santos, infere-se que a docência universitária se encontra em mudanças de ordem objetiva e subjetiva, caracterizando novos perfis cuja proximidade

temporal não possibilita discernir com precisão, apenas colecionar alguns traços dessas mudanças.