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Parte I – Das peculiaridades dos espaços e tempos da docência universitária

3.2 A ciência como profissão no início do século XX

Weber (1973), no início do século XX, ao fazer uma conferência sobre a Ciência como vocação, parte das seguintes questões: “Como se apresenta a ciência como profissão, no sentido mais material do termo? Qual é hoje em dia a situação de um homem formado que decidiu consagrar-se profissionalmente à ciência, dentro da universidade?” (WEBER,1973, p.140)

Para desenvolver suas análises, esse autor aborda as influências das condições materiais e das condições íntimas sobre a vida acadêmica e contextualiza essas condições comparando a repercussão da reforma universitária americana na vida acadêmica e a influência dela sobre as universidades alemãs.

Ao fazer esse percurso analisando as condições materiais da vida universitária, Weber (1973) considerava que as universidades americanas estavam em um processo de conversão em empresas do capitalismo de Estado nas quais ocorria a separação do trabalhador dos

seus meios de produção.

Nesse contexto, a organização da carreira científica nas universidades americanas baseava- se na burocracia e contrapunha à carreira alemã, centrada em pressupostos plutocráticos25.

24 Trata-se originalmente de uma conferência proferida por Weber, em 1919 para jovens estudantes. Essa

conferência foi traduzida em português como A Ciência como vocação e publicada juntamente com outra denominada A política como vocação. O conjunto dessas publicações foi consultado no livro O político e o

cientista, publicado em 1973, em Portugal.

25 Os pressupostos plutocráticos referem-se à detenção de poder e dominação de uma classe ou grupo baseados

Essa mudança repercutia diretamente sobre as condições de trabalho dos docentes convertendo-se em assalariados e sendo submetidos à carga de trabalho mais intensa.

Para ilustrar essa condição, Weber (1973) recorre à comparação entre o professor assistente americano e o professor assistente alemão. Sobre as relações de trabalho assumidas, ele assim expõe:

O trabalhador, neste caso o assistente, está vinculado aos meios de trabalho que o Estado põe a sua disposição. Consequentemente, tem tão pouca independência perante o diretor do Instituto como o empregado de uma fábrica perante esta, dado que o director do instituto pensa, com inteira boa fé, que este é seu, e actua como se realmente o fosse. A sua situação é frequentemente tão precária como qualquer outra existência ‘proletária’, tal como sucede também como assistant da Universidade americana (WEBER, 1973, p.144, grifos do autor)

Percebe-se, nesse trecho, a perda de autonomia do docente e a divisão do trabalho no interior da instituição refletindo uma hierarquização típica das empresas. Além das relações, Weber (1973) também aponta a diferença na forma de ingresso na carreira e o aumento da carga de trabalho assumida pelo docente iniciante nas universidades americanas com a seguinte comparação:

Privatdocent

Professor assistente alemão

Assistant

Professor assistente americano Começa com o contato com titular e com

seu consentimento qualifica para a função apresentando um trabalho original e submetendo-o a exame numa universidade determinada.

Trabalha sem salário e sem maior retribuição que a oriunda da matrícula dos estudantes, pode dirigir curso cujos objetivos ele fixa dentro dos limites da sua venia legendi

Começa com a Nomeação e muito tarde pretende a habilitação como privatdocent. O rapaz recebe desde início um salário, embora baixo trata-se de um ordenado fixo. Pode ser destituído se não ‘encher a sala’ de alunos, ou seja, não captar matrícula para suas aulas.

nessa perspectiva, basearia nas condições de origens do sujeito. Especificamente, na carreira alemã, como exposto mais adiante, pressupunha trabalho não remunerado mediante atividades qualificadas, supõe-se que ingressavam como docentes pessoas cujas condições materiais permitiam a eles dedicar-se a tal atividade. Em contraponto aos pressupostos plutocráticos, encontra-se os meritocráticos, que vincula-se ao ideal de igualdade de oportunidades conforme declaração universal dos direitos humanos de 1789. Postula a igualdade de todos os cidadãos serem admitidos em posto e empregos públicos segundo sua capacidade, virtudes e inteligência. (FISCHER, 1986) Nessa perspectiva, a definição da posição social é vista a partir da capacidade e mérito individual e não por privilégios de nascimento. No caso da carreira americana, é mais aberta em termos de acesso e exige-se algumas condições individuais para o docente iniciante, entre elas, a capacidade de atrair matrículas. No entanto, Weber (1973) analisa que em ambos os casos a carreira acadêmica apresenta semelhanças em seu percurso diante da casualidade da vida acadêmica.

No início da carreira: Dá menos aula e tem mais liberdade para dedicar ao trabalho cientifico na juventude

As aulas mais importantes são dadas pelos titulares e os Privatdocent dedicam às questões secundárias.

Tempo de aulas e temas: 3 horas com foco específico

No início da carreira: O jovem cientista é mais assoberbado pelo trabalho docente e o programa é determinado pelas autoridades da especialidade.

Tempo de aulas e temas: 12 horas com abordagens diversas

(WEBER, 1973, p. 143-145)

Verificam-se, nas análises de Weber (1973), intensas diferenças nas condições objetivas das carreiras acadêmicas. A carreira americana, supostamente, apresenta maior abertura em termos de acesso. Mas, em termos de condições de trabalho, ela é mais penosa para o professor iniciante, como: maior carga horária de aulas, maior diversidade de aulas e responsabilidade pela atração de matrículas de alunos.

Weber (1973) considera que a universidade se vê afetada tanto interna quanto externamente. E o elemento da carreira acadêmica que continua preservado e até intensificado na proposta da nova universidade é a oportunidade de ascensão na carreira.

Como se observa, embora a universidade esteja transformando-se em uma organização empresarial, ela qualifica o professor iniciante como assalariado com condições de trabalho docente bastante distinto, preserva algumas características da estrutura anterior, tais como as dificuldades de ascender na carreira chegando ao posto de professor catedrático e ou diretor de um instituto e ainda, a natureza da docência universitária que demanda do professor a capacidade para o ensino e pesquisa.

Nesse sentido, Weber (1973) considera que tanto o percurso na carreira acadêmica quanto o exercício da profissão são povoados de casualidades e conclui: “a vida acadêmica é puro acaso”. (WEBER, 1973, p.145) De acordo com esse autor a ascensão na carreira como fruto de um acaso e não apenas da capacidade do sujeito, trata-se de algo que depende das leis da colaboração humana intrínsecas às várias corporações que se articulam para a eleição.

Em relação à ‘dupla face’ da profissão acadêmica, que diz respeito às qualidades para ser professor e investigador, ele assim a considera: “Não será suficiente ser qualificado como sábio, mas há de também sê-lo como professor e estas duas qualidades não se implicam

reciprocamente, nem coisa que se pareça. Uma pessoa pode ser um sábio excepcional e ao mesmo tempo um professor desastroso.” (Weber, 1973, p.147)

Na sequência, Weber (1973) apresenta alguns elementos da condição profissional do docente universitário que contribuem para compreender sua configuração no início do século XX e que se estende em muitos aspectos até os dias atuais, tais como: carreira marcada pela divisão do trabalho e ascensão meritocrática, mas envolvida por casualidades; composição dos docentes como funcionários do Estado; complexidade da ‘dupla face’ da profissão acadêmica envolvendo ensino e pesquisa.

Além desses elementos de ordem objetiva, Weber (1973) apontou, também, os elementos da

vocação íntima do homem de ciência. Para esse autor, a vocação científica está

condicionada, em primeiro lugar, ao grau de especialização atingido pela ciência ao ponto de que a identificação de uma obra importante e definitiva pressupõe sempre que seja uma obra de especialistas. (WEBER, 1973, p.150)

Diante dessa condição, Weber (1973) aponta os componentes que constituem a vocação para a ciência: a paixão pelo fazer científico e a inspiração ao fazê-lo, sendo fundamental para a ocorrência desta o trabalho dedicado, metódico que permita apreciar e controlar sua ocorrência. A articulação desses três aspectos (paixão, inspiração e trabalho) é assim explicitada:

A ocorrência não pode substituir o trabalho, tal como este, por sua vez, não pode substituir nem forçar a ocorrência, como tão pouco pode fazer a paixão. Mas, em contrapartida, o trabalho e a paixão podem provocá-la, sobretudo se se encontram unidos, mas ela vem quando quer e não quando nós queremos... (WEBER, 1973, p.152)

Essa condição vocacional se insere no entendimento da especificidade do trabalho científico e implica uma relação com a produção de conhecimento de maneira autônoma e dentro de uma racionalidade própria da ciência moderna. Esse entendimento pressupõe que a produção científica se distinga por sua tendência a um progresso sem fim e, portanto, tem como destino a superação constante por meio de novas questões e produção de conhecimentos.

Por conseguinte, a ciência constitui “uma vocação que se realiza através da especialização a serviço da tomada de consciência de nós próprios e do conhecimento de determinadas conexões factuais” (WEBER, 1973, p.182)

Desse modo, Weber (1973) apresenta uma análise que possibilita apreender as complexas articulações materiais e subjetivas na configuração da docência, no âmbito da universidade em que vigora uma concepção de ciência articulada com formas de organização do trabalho do docente universitário.

Em suma, as inquietudes deste autor revelam traços marcantes e contraditórios dos docentes universitários, no início do século XX. Muitos deles podem-se dizer, encontram-se hoje, de maneira mais acirrada, no modelo meritocrático contemporâneo, atualmente impulsionado pela busca da titulação e pelo nível de especialização alcançado pela ciência. Essa situação se apresenta de tal forma a ponto de gerar isolamento disciplinar.