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Parte II Da condição ampla da profissão de professor

3.7 Dimensões da docência universitária em sua profissionalidade

3.7.1 Os saberes e a prática da docência

Os saberes representam o elemento em torno do qual todas as vertentes que abordam as profissões como objeto de estudo tendem a reconhecê-los como fundamentais para a constituição da profissionalidade. Eles constituem o corpo de conhecimentos necessário ao desenvolvimento da prática profissional e são aprendidos por meio de formação específica.

Na visão de Cunha (1999) as variações dos saberes nas práticas profissionais ocorrem em virtude das características que elas assumem ao ser desenvolvidas. Nas profissões mais assentadas em procedimentos técnicos e científicos, há pouca incidência das dimensões contextuais e valorativas sobre seus resultados, conforme ilustra este trecho:

Configurada uma situação, geralmente explicitada com dados precisos, a tarefa profissional se define por si só. Há pouca interferência valorativa no processo de trabalho. São profissões em que o produto é o elemento de mensuração e nas quais os componentes de sua natureza possuem atributos mais ou menos constantes. (CUNHA, 1999, p.143)

Neste caso, de acordo com a autora, a profissionalização tende a ser mais definida e manejável, pois situa em torno de um conjunto de conhecimento e habilidades próprios da ocupação. Esse conjunto pode ser aprendido e aplicado sem muitas variações.

Por outro lado, existem profissões cujos saberes só podem ser compreendidos em relação com o contexto no qual estejam inseridas as atividades de trabalho. Portanto, essas

profissões carregam consigo uma dependência das condições socio-históricas e valorativas para a definição do seu estatuto. Sobre isso, assinala Cunha (1999):

Nelas, o processo pode ser muito mais valioso que o produto e os procedimentos técnicos e científicos estão na dependência de questões éticas, estéticas e políticas. Seus resultados são sempre produto de interações sociais e a imprevisibilidade e a incerteza são suas características permanentes. Nunca há segurança absoluta dos resultados e sua qualificação dependerá dos valores impregnados no ambiente em que se instala. Talvez os magistrados, os professores e os psicólogos possam ser bons exemplos dessa categoria de profissão. (CUNHA, 1999, p.144)

Diante dessas duas perspectivas, a localização da docência no âmbito das profissões que envolvem maior complexidade implica considerar que a definição de seus afazeres e os saberes a eles necessários não são puramente dados a priori e sim, construídos em interação constante com a prática profissional.

No entanto, esse entendimento dos saberes docentes tem sido continuamente negado em prol de um tratamento puramente técnico, reduzindo o ensino a uma abordagem meramente procedimental independentemente do contexto em que ocorre.

Em oposição a essa perspectiva tecnicista, estudos como de Tardif (2010) situam os saberes docentes entre a dimensão individual e social do professor, trazendo consigo as seguintes implicações:

o saber dos professores depende, por um lado, das condições concretas nas quais o trabalho deles se realiza e, por outro, da personalidade e da experiência profissional dos próprios professores. Nesta perspectiva, o saber dos professores parece estar assentado em transações constantes entre o que eles são (incluindo as emoções, a cognição, as expectativas, a história pessoal deles, etc) e o que fazem. O ser e o agir, ou melhor, o que eu sou e o que eu faço ao ensinar, devem ser vistos aqui não como dois pólos separados, mas como resultados dinâmicos das próprias transações inseridas no processo de trabalho escolar. (TARDIF, 2010, p.16)

O entendimento dos saberes da docência nesta interface do docente como pessoa e como profissional implica sistematizá-lo na sua totalidade e isso requer processos formativos que articulem as dimensões experienciais com os conhecimentos teóricos acumulados.

Tardif (2010) defende que os saberes dos professores têm que ser vistos em sua natureza

social sendo importante considerá-los a partir das seguintes relações: a relação do saber com

o trabalho, visto que os saberes docentes não são meramente cognitivos, mas construídos no e pelo trabalho; a relação com a diversidade de saberes mobilizados em uma prática docente

como: saberes pedagógicos, saberes disciplinares, saberes curriculares e saberes experienciais. Ele ainda, acrescenta a temporalidade do saber docente, pois incide sobre os saberes docentes, a trajetória profissional e pessoal do docente.

Se esses pressupostos sobre os saberes da docência, principalmente, no âmbito da educação básica, têm sido amplamente discutidos e constantemente revisada, no âmbito da educação superior, são ainda tímidos e iniciais.

Na verdade, os professores do ensino superior têm sido historicamente considerados como aqueles que produzem e aplicam os próprios conhecimentos, sendo sua prática profissional sedimentada na perspectiva de que quem sabe, sabe ensinar. (PIMENTA E ANASTASIOU, 2005; CUNHA, 2009)

No entanto, as transformações sociais recentes, a (re)significação do lugar do conhecimento com a disseminação de informações, bem como os problemas pedagógicos enfrentados pelas universidades frente aos processos de democratização, tais como evasão e repetências dos alunos, têm sido apresentados como alguns dos desafios que se impõem ao ensino universitário por diversos autores. (CUNHA, 1999; MASETTO, 2009)

Nessa perspectiva, tem sido problematizada a importância dos saberes docentes no âmbito da educação superior, considerando as múltiplas atividades desenvolvidas pelos professores em torno do ensino, da pesquisa, da extensão e seus reflexos no ato de ensinar.

Tardif (2009), ao abordar a profissionalização dos docentes universitários, argumenta que o ensino e a pesquisa formam o centro da vida profissional dos professores. Portanto, torna-se necessário rever como têm sido construídas essas aprendizagens.

Para esse autor, no âmbito do ensino, já não se sustenta a concepção de que para ser professor universitário basta “ter boas ideias ou reproduzir o comportamento de um professor apreciado na sua formação”. Também no âmbito da pesquisa não se pode admitir que “a aprendizagem dos professores no domínio da pesquisa se realizava numa dinâmica de osmose entre um mestre e um aprendiz, numa equipe de pesquisadores.” (TARDIF, 2009, p.64)

Cunha (2007) também reforça essa análise. Segundo ela, nem o estereótipo do docente erudito, nem o docente que interpreta os conhecimentos já produzidos são suficientes para atender às demandas do atual contexto educacional. Neste caso, com a revolução tecnológica contemporânea, não há mais lugar para o docente como principal fonte de informação. Portanto, é necessário repensar e instituir uma profissionalidade docente em que o professor enfrente outros desafios: desempenhar o papel de mediador entre os conhecimentos disponíveis e os dos educandos; não somente os cognitivos, mas também socioculturais. (CUNHA, 2007, p. 18)

Para essa autora, os desafios desse processo consistem em enfrentar as próprias condições de trabalho dos docentes, cujas carreiras são centradas na meritocracia e na individualidade, prevalecendo a valorização da atividade de pesquisa sobre o ensino e extensão, dos títulos adquiridos sobre as experiências formativas em si, enfim, favorecendo um percurso individualizado e até mesmo concorrencial.

Nesse contexto, segundo Cunha (2007), é importante resgatar o trabalho coletivo como condição para as construções dos saberes docentes, os quais “implicam consciência, compreensão e conhecimento.” (CUNHA, 2007, p.22)A construção desses saberes envolve uma consistente relação entre teoria e prática, na qual a capacidade investigativa é importante, pois “a docência como atividade profissional, exige a condição de saber justificar as ações desenvolvidas, recorrendo a uma base de conhecimentos fundamentados e a uma argumentação teoricamente sustentada.” (CUNHA, 2007, p.22) Eis, portanto, as bases para uma atuação crítica e reflexiva e para a construção de uma perspectiva emancipatória da profissão.

Compartilhando essas análises, vários autores defendem a necessidade de formação dos professores universitários visando ao desenvolvimento de competências para sua atuação, nas diversas funções, de maneira equitativa. O objetivo é conscientizar os docentes de suas responsabilidades profissionais e éticas junto aos estudantes e a comunidade. (Lucarelli, 2000; Zabalza, 2004; Pimenta e Anastasiou, 2005; Cunha, 2009, 2007; Tardif, 2009; Masetto, 2009; Soares, 2009 e outros)

Diante dessas perspectivas, tem sido desenvolvido, no contexto da América Latina, o campo da pedagogia universitária por meio de estudos, pesquisas e intervenções sobre os saberes e

as práticas docentes universitárias. Também se verifica, em alguns países europeus e nos Estados Unidos, o desenvolvimento de trabalhos nessa direção. (LUCARELLI, 2000)

Particularmente na América Latina, Lucarelli (2000) destaca os estudos desenvolvidos no México, Brasil e Argentina, em estreita articulação de pesquisas com as práticas de ensino nas universidades. Sobre a Argentina, segundo essa autora, esse campo de estudos esteve sempre articulado com os processos de democratização e no período da ditadura, houve interrupção dessa vertente instituindo práticas centradas no tecnicismo pedagógico.

Com o período de redemocratização, a formação e o ensino universitário passaram a ocupar um lugar significativo nas universidades argentinas: proliferaram iniciativas concretas de institucionalização de unidades de pedagogia universitária e de práticas de assessorias pedagógicas nas faculdades, principalmente, nas universidades nacionais. De acordo com a autora, houve crescimento no interesse pelas pesquisas sobre esse campo e, nas últimas décadas, elas têm sido favorecidas pela criação de pós-graduações em educação, políticas e gestão da educação superior. (LUCARELLI, 2000)

Também no Brasil tem ampliado, significativamente, o campo de produção nessa área e mais recentemente, tem sido realizadas algumas iniciativas de institucionalização de espaços dedicados a promover formação e assessorias pedagógicas no ensino universitário. Esse contexto tem favorecido a produção de conhecimento sobre os saberes e práticas da docência universitária e possibilitado ações efetivas no ensino. (VEIGA, 2010; CUNHA, 2009)

Cunha (2007) assinala a importância dessas iniciativas e a necessidade de torná-las mais legítimas perante as políticas públicas por meio de proposições “mais sistemáticas de investimentos na formação profissional do professor universitário, reconhecendo que os saberes para a docência exigem uma preparação acadêmica numa perspectiva teórica e prática” (CUNHA, 2007, p. 22)

Diante dos aspectos tratados neste tópico, conclui-se que os saberes necessários às práticas educativas no ensino superior têm sido problematizados procurando ampliar a compreensão das atividades desenvolvidas pelos docentes e sua relação com os educandos. Nessa direção, os estudiosos dessa questão têm apontado a necessidade de ampliar as bases da formação

dos docentes universitários que, tradicionalmente, têm se assentado apenas no desenvolvimento da pesquisa acadêmica. Nesse sentido, propõem, também, uma formação pedagógica crítica e reflexiva aos docentes responsáveis pelo ensino nas universidades, atualmente.