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Parte II Da condição ampla da profissão de professor

3.7 Dimensões da docência universitária em sua profissionalidade

3.7.5 A vocação

A dimensão vocacional é tema espinhoso e muito refutado nos estudos por sua intrínseca relação com a origem religiosa da docência e suas conseqüências. Por exemplo, a manutenção da negação da docência como profissão em virtude de ser vista como um sacerdócio e vinculada à ideia de um dom inato aos sujeitos que a exercem.

Contudo, os sujeitos sempre recorrem à vocação ao referirem-se às suas escolhas ou atuações profissionais. De fato, essa palavra apresenta vários sentidos, dentre eles, teológicos: chamamento, escolha, inclinação para a vida religiosa, etc.

Por outro lado, a vocação também é inerente às constituições das profissões liberais. Como dito anteriormente, incorporar-se a uma corporação de ofícios pressupunha aderir a uma profissão de fé e executar desinteressadamente as atividades de trabalho, pelas quais recebia- se honorários e não salários.

É sob essa ótica, defendendo a ciência desinteressada, característica da universidade liberal, que Weber (1973) discursa sobre a vocação para a ciência expondo os processos disciplinados e metódicos pelos quais um cientista por vocação deveria ingressar na profissão e exercer seu trabalho.

Nessa perspectiva, Tenti Fanfani (2008) enfatiza que vocação e profissão não se contradizem:

Se podrá decir que vocación y profesión no son términos contradictorios, sino complementários. Se puede afirmar que por lo general, un trabajo bien hecho es por lo general obra de alguien a quien le gusta lo que hace, que encuentra satisfación haciendo lo que hace (vocación) y que al mismo tiempo espera una recompensa por el trabajo realizado, ya que vive ‘de el’. Por lo tanto, la figura del ‘vocacional’ (amateur) y la del profesional son figuras típicas que configuran un continuum, es decir un espacio de posibilidades donde ambos componentes pueden estar presentes en proporciones desiguales. (TENTI FANFANI, 2008, p.03, grifos do autor)

Para esse autor, o componente vocacional na história da profissão docente demonstra variações históricas, tendo sido mais presente na origem da docência. Hoje não é o que predomina devido aos movimentos de profissionalização e qualificação dos docentes, entre outros, a formação que pressupõe domínio efetivo de um saber formalizado.

Enguita (1991), por seu turno, compara a vocação no âmbito das profissões liberais e a vocação na docência, considerando que o termo professor remete a vocação, mas o termo maestro diz simplesmente de trabalhador qualificado. Para esse autor:

Tradicionalmente reconhecia-se um componente vocacional na prática da docência, mas o retorno do individualismo consumista associado à boa saúde política e ideológica do capitalismo em nossos dias parece estar terminando com isto: a imagem do graduado num curso universitário que dedica ao ensino se move entre a de alguém que renunciou à ambição econômica em favor de uma vocação social e a de quem não soube nem conseguiu encontrar algo melhor. Em todo caso, o docente é um assalariado, e as opiniões sobre a adequação ou não de seu salário dependem da valorização que se faça do seu trabalho que, diferentemente do de um profissional, sim, possui um preço. (ENGUITA, 1991, p. 45)

Entende-se, pois, que a vocação como uma escolha pelo trabalho docente era negada tendo em vista a desvalorização da docência. Para ilustrar essa questão, Enguita recorre à postura do governo espanhol em relação aos professores grevistas. Assim, para justificar a baixa remuneração dos docentes, submetia os próprios professores a tais condições, alegando que eles se mantinham professores porque não tinham competência para outro trabalho mais valorizado.

Tal raciocínio expressa que o critério para escolha do trabalho era reduzido à remuneração logo, “negava-se aos docentes a possibilidade de que haviam decidido sê-lo, simplesmente, por possuírem uma vocação social superior à ambição econômica.” (ENGUITA, 1991, p. 57)

Por conseguinte, os vieses assumidos pela vocação no âmbito da profissionalização docente vão da negação à distorção dos seus sentidos enredados em discursos políticos oficiais. Essa situação exige uma compreensão histórica e política, conforme apresenta Costa (1995):

A representação da docência como vocação já foi largamente utilizada, afetando as exigências que são feitas às mulheres – o grande contingente supostamente vocacionado que se dedica ao ensino –, e não é recomendável que continuemos a incrementá-la nos meios educacionais. A manipulação da retórica das professoras como ‘eleitas’, ‘escolhidas’, agentes perfeitas em um trabalho marcado pela ‘doação’, já causou

demasiados danos às docentes e à educação escolar. (COSTA,1995, p.236, grifos da autora)

Os efeitos gerados pelos usos da vocação em favor da desvalorização profissional dos docentes, associados à discriminação de gênero, repercutem, ainda hoje, sobre a docência e continua sendo bandeira constante de luta do magistério.

A esse respeito,Tenti Fanfani (2008) comparando essa profissão com as demais como: medicina, engenharia e direito, mostra que a docência é a que revela mais vestígio da vocação. No entanto, na contemporaneidade, a vocação no âmbito do trabalho docente parece redefinir-se em prol de demandas singulares dos sujeitos dos processos educativos. O trecho abaixo esclarece a questão:

Dos dimensiones clásicas de la ideologia de la vocacion están definitivamente en crisis. Estas son la vocación como actividad no elegida o como mandato innato que el agente está obligado a asumir como uma misión y el componente de gratuidad, desinterés, sacrificio, etc. Sin embargo, en todos los trabajos que se realizan de persona a persona (servicios personales) se exige el dominio de ciertas competências técnicas instrumentales más un plus ético de ‘compromiso’, ‘respeto’ y ‘cuidado’ por el outro, en este caso el niño, el adolescente o alumno con quien trabaja el docente. Este elemento que bien puede denominarse ‘vocacional’ se considera que es un componente necesario en la definición de la excelência en la realización del trabajo docente y por lo tanto debe ser desarrolado y fortalecido mediante políticas específicas de formación y mediante dispositivos colectivos gestionados por el próprio cuerpo docente (tribunales de ética profisional, etc.) Este elemento ‘no racional’ del oficio deve ser incorporado em la definición de una nueva profesionalidad de la docência.” (TENTI FANFANI, 2008, p.03, grifos do autor)

Considerando a vocação como uma atitude de compromisso ético na relação educativa, Tenti Fanfani (2008) a concebe como uma dimensão constituinte da profissionalidade docente e ressalta a necessidade de vê-la articulada de maneira renovada com os componentes da profissão e da politização docente. Essa articulação pressupõe: fortalecimento da capacidade técnico instrumental da docência na solução dos problemas complexos e inéditos de ensino aprendizagem; vinculação desta capacidade com o compromisso ético e reconhecimento do aprendiz como sujeito de direitos; e ainda, a compreensão de que a docência não é neutra e nem individual, pois se trata de um ofício profundamente político. (TENTI FANFANI, 2008)

Nessa abordagem, o autor busca ampliar a noção de vocação aproximando-a dos valores éticos referentes ao exercício de ensinar de maneira intrínseca às dimensões da profissão e da sua politização.

O risco dessa abordagem para o contexto atual dos docentes é tomá-la sem a articulação com as demais dimensões, pois o trabalho contemporâneo tem sido marcado por um apelo às implicações individuais no exercício das funções envolvendo os sujeitos em suas dimensões subjetivas no processo de produção.

No caso da docência, tem sido apontada a ampliação de suas funções no cotidiano do trabalho. Isso demandaria dos docentes capacidade de lidar com a diversidade de condições de aprendizagem dos alunos combinada com condições de trabalho, muitas vezes, desfavoráveis dada a ausência de suporte físico e de pessoal especializado. (BALL, 2002) Diante do suposto, percebe-se que os docentes tendem a abarcar atividades administrativas e de apoio social e até mesmo psicológico, extrapolando suas funções. Desse modo pode-se pensar em uma conversão da docência: “convierten a la enseñanza en un oficio que cada vez compromete más a la persona y que expone al individuo en tanto que individuo (y no en tanto que rol profesional).” (TENTI FANFANI, 2007, p.337)