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A biobibliografia, os bolandistas, beneditinos

2.4 MENSAGEIRAS DO PASSADO: BÍBLIAS E BIBLIOTECAS

2.4.2 A biobibliografia, os bolandistas, beneditinos

Não existem acidentes, por mais infelizes, dos quais os astutos não extraiam alguma vantagem, nem acidentes, por mais venturosos, que os imprudentes não consigam fazê-los voltar-se contra si mesmos.

LA ROCHEFOUCAULD Máximas morais

Durante o século XVII, as narrativas ficcionais e biográficas atingiam pontos decisivos. A cultura oriental despertava atenções do Ocidente graças às novelas históricas espanholas, ao Decameron e a L’Heptaméron ou História dos amantes afortunados, da escritora francesa Marguerite de Navarre (1492-1549). Antes de vingar nas colônias americanas, um eixo barroquista da estética barroca predominou entre italianos, ibéricos e alemães. Esse ângulo diferenciava-se, pois, do clássico, a prevalecer na França

desde Malherbe (1555-1628), sob Henrique IV, o primeiro Bourbon, até os ‘clássicos da Escola de 1660’ (La Fontaine, Molière, Boileau, Racine), e na Inglaterra — no período jacobeu, com o teatro ‘moralista’ de Ben Johnson (1573- 1637); nas décadas do meio do século com a épica de Milton (1608-1674); e em plena Restauração, com as sátiras de Dryden (1631-1700). Na crítica, o breviário do barroco barroquista é a Agudeza y Arte de Ingenio (1642), do jesuíta Baltasar Gracián; o do barroco racionalista, a Art Poétique (1674) de Boileau (MERQUIOR, 1977, p. 16).

Na segunda metade do século XVI, uma espécie cultista de barroco foi denominada “preciosismo”, indicando certa mudança na poética francesa. Madame de Sévigné (1626- 1696) e Madeleine de Scudéry (1607-1701) aderiram às formas preciosistas. A última transferiu a vida social de sua época para o cosmos da Antigüidade, nas seguintes novelas, publicadas sob o nome de seu irmão Georges, também escritor: Ibrahim (1642); Artamenes ou

Le Grand Cyru (1649-1653); Clélie, história romana (1654-1660); Almahide, l’esclave reine

Em Ciro, o Grande, Mademoiselle Scudéry mascarava-se na personagem Sapho; em

Clélie, usava o nome ficcional de Clarinte para representar sua amiga, a marquesa de Sévigné.

O autor preciosista Jean-Louis Guez de Balzac (1597-1654) levou a termo um elogio ao soberano Luís XIII na obra Le Prince (1631) e ainda escreveu: Socrate chréstien (1652) e

Aristippo, ou homem da corte (1658). Martín Le Roy Gombersille e Madame de Capranède,

em ordem respectiva, legaram as seguintes ficções de protagonista: A Jovem Alcidiana (1651) e A princesinha Alcidiana (1661).

Marie-Madeleine Pioche de La Vergne (1634-c. 1693-96) publicou La Princesse de

Montpensier (1662) e Zaide (1670), além de redigir as Memoires de la cour de France pour les annés 1688, 1689 e a Histoire de madame Henriette d'Angleterre. Os livros dessa senhora,

que se tornaria famosa como a Madame de La Fayette, ficaram inéditas até o século XVIII. Situada na corte de Francisco II, sua obra-prima — A princesa de Clèves (1678) — é talvez o primeiro romance moderno em língua francesa (CARPEAUX, 1980, p. 714-128).

À frente do próprio tempo, algumas narrativas européias provocaram sentimentos de revolta contra as formas da anciã civilização. Um típico representante dessas criações, o escritor francês de nome Huet, transmitiu à posteridade o manuscrito de um romance intitulado O falso Inca (1667). “Ou seja, a representabilidade daquilo que é provocado pelo

como se significa que nossas capacidades se põem a serviço desta irrealidade para, no

processo de irrealização, transformá-la em realidade (ISER, 1983, p. 407).”

Entusiasmado por figuras do mundo intelectual, o escritor português Francisco Manuel de Melo (1608-1666) realizava seus Quatro apólogos dialogais. No quarto apólogo, “Hospital de letras”, imagina-se a conversar com: os humanistas Boccalini e Justo Lípsio; o fidalgo espanhol Francisco de Quevedo. Conceituado representante do barroco luso, Dom Francisco assinou as narrativas biográficas Teodósio I e Tácito Português, vida e morte, ditos e feitos de

El-Rei D. João IV, ambas, publicadas no século XX.

Ainda em Portugal, frei Luís de Sousa escrevera o relato biográfico Dom Frei

Bartolomeu dos Mártires (1619) e Jacinto Freire de Andrade, Dom João de Castro, quarto

vizo-rei da Índia (1651). Na França, Jean de La Bruyère produzia Caracteres de

Théophraste, traduits du grec, avec les caratères ou le moeurs de ce siècle (1688). A maior

parte das biografias enfocava personalidades conhecidas, enquanto as obras ficcionais detiam-se em costumes, festas e diversões populares que não ameaçassem o status quo. Basicamente, “no âmago da arte barroca e da insegurança material do artista, permanecem a omissão do momento histórico como tema, a miséria, a opressão ou as tragédias de

camponeses e dos pobres, sem lugar no espaço artístico do século XVII” (GRAWUNDER, 1996, p. 80).

Peter Burke (p. 89, 1997) sublinha o destaque oferecido, na vasta seara do espaço biográfico, às falas entre as personagens e ao desenvolvimento da personalidade. Cada vez mais dramático e usual a partir do século XVI, o diálogo recobrava tamanha importância que, mais tarde, se transformaria em gênero do espaço biográfico. Um dos primeiros tipos assim elaborados, a Apologia de Sócrates, por Xenofonte, havia sido modelar para os autores renascentistas Galeotto e Panormita.

Na 17ª centúria, o texto inspirou Baltasar Porreño a compor seus Dictos y hechos del

señor rey Don Felipe Segundo (1628). O biógrafo espanhol também produziu relatos acerca

de Dom Juan da Áustria, bem como sobre os cardeais Gil de Albornoz e Gonzalo Jiménez de Cisneros. Na Itália, Giovan Battista Manso escreveu a Vita di Torquato Tasso (1621) e, a modo de uma carta ao príncipe Leopoldo de Medici, Vincenzo Viviani elaborou Racconto

istorico della vita di Galileo (1654).

Giovanni Passeri (1610-1679) seguiu os passos de Vasari ao biografar artistas barrocos, assim, comprova que os modelos italianos para as escritas de vida se impunham como prioritários, encontrando adeptos por todos os lados. Karel van Mander igualmente havia-se orientado pela obra de Vasari para criar seu Livro dos pintores (1604). O artista holandês demonstrava sinais apreciáveis da “biografia íntima”, porém, tal característica se manifestara em textos antecedentes, conforme acentuam as investigações desenvolvidas por Donald Stauffer (1964).

No correr do século XVI, as narrativas biográficas eram formadas em séries categóricas, quase todas, cabíveis às espécies da 17ª centúria. Algumas delas podiam ressaltar as categorias morais (constância, coragem, estabilidade, prudência etc); outras, os atributos médicos (caráter sanguíneo, fertilidade, melancolia, robustez etc). Avultava certa tensão entre o indivíduo pensado como exemplar e, por outro lado, como um ser único; salientava-se o fator estático da personalidade, quer dizer, como resultado fixo duma equalização de vários “humores” (HAMPTON, 1990).

A previsibilidade do futuro heróico dependia, em certos casos, de toda uma conjuntura favorável, intimamente ligada com o nascimento do ser humano a ungir-se pela fama. De mais a mais, vingava uma noção de que a pessoa se desvelaria por meio das frases proferidas, idéia que manifesta duas concepções retóricas: da palavra como gesto e ação; do talento

performativo. À primeira vista, incompatíveis com os caracteres digressivos dos textos biográficos, todas essas marcas eram vislumbradas desde os séculos anteriores.

Embora alguns biógrafos da época se orientassem pela cronologia, geralmente, a apresentação estrutural de seus trabalhos mostrava-se temática ou tópica. As biografias sublinhavam as origens, a formação, a atividade profissional e a personalidade do biografado. O epitáfio funerário e as inscrições proféticas, que envolviam a magnitude do protagonista, eram temas de grande utilização, tal como antes nas hagiografias medievais ou nas Vidas dos ilustres varões da Antigüidade (MAYER; WOOLF, 1995).

Em língua francesa e inglesa, os respectivos termos Biographie, Biography, ganharam circulação nos anos derradeiros de 1600. No mesmo fim de século, alterava-se a configuração biográfica, em fundamental, graças à obra do enciclopedista francês Pierre Bayle (1647- 1706). Seu Dicionário histórico e crítico (1696-1697) serviria de referência aos critérios racionalistas de julgamento religioso, principalmente, na defesa da tolerância e da liberdade de crença. A maioria dos trabalhos de cunho biográfico dedicava lugares privilegiados

a eventos que os historiadores modernos (pelo menos até recentemente) deixariam de lado como ‘meros rituais’. Os leitos de morte, por exemplo, descritos de maneira dramática e patética, ganham espaço considerável, correspondendo ao interesse dos contemporâneos pela última cena de uma peça biográfica. Se o protagonista ocupa um cargo público, os rituais ligados ao cargo podem ser descritos com detalhes cuidadosos (BURKE, p. 88, 1997).

Os próprios Ensaios de Montaigne resultaram, entre outras coisas, de seus diálogos com citações, coletâneas de exemplos ou coleções de provérbios. Referências essas, que retroagiam dos tempos medievais ao mundo greco-romano e, desde o século XVI, veiculavam o programa humanista. Ao mesmo tempo, a política reinante se guiava por um dos leitmotivs do manual político de Nicolau Maquiavel e da alegoria autobiográfica de Thomas More: a organização da pólis grega.

Numa outra era, a “cidade letrada” de Ángel Rama (1998) conceberia o espaço americano sob a forma dum grandioso laboratório para o “saber barroco”.Em seu interior, os preceitos imperativos do velho mundo e dos novos impérios esbatiam-se com a fértil imaginação e a particularidade das colônias. Foi o conhecimento das realidades natural e humana do Novo Mundo que reestruturou a história seiscentista, caracterizada por dar abertura a uma prática erudita coletiva.

Pioneiro quanto a esse aspecto, Héribert Roswey havia organizado certo elenco de santidades, no qual se baseou Jean Bolland para publicar suas Vidas de santos ou documentos

hagiográficos, a serem apresentados pela ordem do calendário. O padre Roswey deu fundamento à obra jesuítica de Bolland e Jean Mabillon. A partir de 1643, a hagiografia tornava-se uma especialidade dos “bolandistas”, responsáveis pela edição das Acta

Sanctorum.

Num volume de 1675 dessas atas, Daniel Von Papenbroech [Papenbroch] divulgou seu método para discenir o “verdadeiro do falso em velhos pergaminhos”, sem que lograsse êxito ao aplicar a metodologia. Coube ao monge Mabillon o papel de fundar a diplomática: publicada em 1681, sua obra De Re Diplomatica fundamentou a crítica da documentação dos arquivos. O beneditino francês concluiu ser possível o estabelecimento da verdade por meio da concordância entre duas fontes, afirmativa inspirada em René Descartes (1596-1650).

O estudo da história se vincularia ao estabelecimento documental, concentrado nos bolandistas e nos beneditinos. Segundo Michel de Certeau (2002, p. 65-119), formava-se um grandioso complexo, a ocupar espaço e tempo bem definidos (Ocidente do século XVII), que se vinculava a um grupo (dos eruditos), a lugares (bibliotecas), assim como a determinadas práticas (de cópia, impressão, comunicação etc.). Entre suas técnicas, o documento hagiográfico demonstrava uma organização textual capaz de favorecer o desdobramento das possibilidades antevistas nas denominações que lhe conferiam:

Acta, ou mais tarde, Acta Sanctorum. Deste segundo ponto de vista, a combinação

dos atos, dos lugares e dos temas indica uma estrutura própria que se refere não essencialmente ‘àquilo que se passou’, como faz a história, mas ‘àquilo que é exemplar’. As res gestae não constituem senão um léxico. Cada vida de santo deve ser antes considerada como um sistema que organiza uma manifestação graças à combinação topológica de ‘virtudes’ e de ‘milagres’ (CERTEAU, 2002, p. 267). Haveria progressiva clivagem entre a nova perspectiva histórica, em declínio, e a erudição dos jesuítas, que alcançava progresso. A história dos anos de 1500 e 1600 seria enfrentada como prática libertina, devido a suas preocupações com as causas dos acontecimentos, no lugar de confundi-los com a poesia ou a narração pura. Os historiadores humanistas optaram por abordagens universalizadas e determinavam as civilizações como matéria de estudo, tendo em mente que uma civilização inicia sempre antes da escrita.46

Ao final da 17ª centúria, o honnête homme encarnava um tipo de conhecimento não- profisionalizado, mas apto a exercer julgamentos de gosto: nem erudito, ao nível dos especialistas, nem inculto como a plebe. O labor dos principais historiadores dos anos de 1500

46 Entre tais historiadores, destacaram-se os franceses, como Bodin, Louis le Roy, Lancelot-Voisin de la

e 1600 não se reduziu à noção de uma história exemplar, pois era ultrapassado pela história “perfeita”, “integral” ou “acabada”. Mesmo entre os que defendiam esse conceito, seguiu vigorando a teoria providencialista cristã, do agostinismo histórico, cuja mais relevante expressão se daria por meio de Jacques-Bénigne Bossuet (1627-1704).

Seu trabalho Discours sur l’historie universelle (1681) abriria flancos a um senso de racionalidade histórica, pois tomava os acontecimentos particulares, verificados na história dos impérios, como integrantes de sistemas gerais. Para Bossuet, a intervenção divina seria rara e se viabilizaria por intermédio de causas secundárias. A oscilação do teocentrismo à

Ratio moderna encontra suas imagens no livro sagrado e no saber livresco, duas formas

representativas do aparelho regulador do imaginário, uma no século XVII e a outra, no que lhe sucederia.

O romance Dom Quixote de La Mancha e a coletânea de epigramas Maximes (1664), do escritor François de La Rochefoucauld (1613-1680), operam como exceções a uma regra quase geral. Ambos textos fugiram ao controle da imaginação, antes exercido pela igreja, mas que passaria a domínio secular, tendo suas fontes no iluminismo francês. Em ambos escritores, o termo comparativo a que visa o como se “recebe uma certa concreção. Outra vez assim se mostra uma característica do fictício, pela qual o mundo organizado no texto é transgredido em favor de atividades dele orientadoras. E também o imaginário se transforma na configuração concreta de atividades de representação” (ISER, 1983, p. 405).

Contudo, a estética marcada pelas contrariedades barrocas voltava-se contra si mesma: o pensamento neoclássico imbuiu-se do racionalismo de Boileau, ao passo que a língua francesa e suas belles lettres dominariam a cena cultural do Ocidente. Constantes agonias pelo unitário atingiram a infinitude do espaço e a incompreensão do silêncio, conforme as reflexões de Blaise Pascal (1632-1662). Uma sinfonia de angústias revelava-se como a grande peça dos séculos barrocos, ávidos por uma regência que unisse o racionalismo à sensibilidade humana sobre o universo, à maneira da orquestração metafísica encaminhada pela filosofia ontológica de Nicolas Malebranche (1638-1715).