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Desconstrução, multiculturalismo, pós-colonialismo

3.2 MAL DE ARQUIVO: AS ESTÉTICAS E AS POLÍTICAS

3.2.3 Desconstrução, multiculturalismo, pós-colonialismo

Falar dos silêncios da historiografia tradicional não basta; penso que é preciso ir mais longe: questionar a documentação histórica sobre as lacunas, interrogar-se sobre os esquecimentos, os hiatos, os espaços em branco da história. Devemos fazer o inventário dos arquivos do silêncio e fazer a história a partir dos documentos e da ausência de documentos

JACQUES LE GOFF História e memória

Nos anos finais de 1960, as críticas à totalidade, ao sujeito e ao conhecimento, desenvolvidas pelos pós-estruturalistas, chegaram à América do Norte, onde Jacques Derrida ganhava centralidade. Linguistic Turn, ou “desconstrução”, era o nome dado pelos norte- americanos à critica derridiana e à filosofia elaborada por outros pensadores franceses. Formulações desenvolvidas pelo desconstrucionismo norte-americano se multiplicariam até a década de 1980. A hegemonia da sociedade branca, anglo-saxônica e protestante viu-se abalada pelos efeitos da guerra do Vietnã e da liberação sexual, assim como pelas comunidades hippies ou por crescentes reivindicações de feministas, gays, negros e indígenas.

O termo “multiculturalismo” nomearia um sistema de pensamento, gerado no meio universitário, e que tentava intervir na sociedade. Os multiculturalistas baseiam-se,

72 A vida literária faz-se através de mecanismos extra-oficiais: contatos entre produtores, editores, meios de

circulação e receptores; não se sustenta apenas no texto, muito menos em sua qualidade intrínseca ou imanente. Consiste naquelas atividades feitas na vida em si, na rua, nos bares, nas academias, nos grupos, nas instituições etc. Para ilustrar, já entre os séculos XIX e XX, se “o Estado não se responsabiliza pela alfabetização do público, nem preserva os interesses do país no mercado nacional, a nomeação de escritores para cargos públicos consistia, de um lado, na confissão de sua impotência institucional; de outro, na tentativa de remendar a impotência de forma canhestra, mutilando simultaneamente a instituição literária, por não reconhecê-la enquanto tal, e o serviço público, no qual postulava a existência do ócio necessário à criação” (LAJOLO; ZILBERMAN, 2003, p. 71).

73 Siegfried Schmidt pensa que modelos diferentes de histórias literárias devem levar em conta outros sistemas

sociais, imbricados ao tipo de representação que neles se deseja imprimir. Câmbios nas estruturas e funções do sistema literário precisam ser descritos como processos de múltiplas faces, redes complexas entre sistemas, não podendo elidir os papéis do sujeito nos sistemas literários modernos, os quais, assim, se revelam como área de grande interesse aos estudos da biografia. Cf. SCHMIDT, 1996, p. 101-131.

fundamentalmente, nos conceitos de diferença e descentramento, do pós-estruturalismo francês, mas com freqüência, seus trabalhos dispõem os conceitos desconstrução/construção em relacionamentos binários. Segundo Maria da Glória Bordini (p. 18, 2006), quando New

Criticism e psicanálise

foram perdendo força explicativa, em virtude de seu imanentismo, nenhum novo suporte garantia o prestígio de estudos literários ou culturais. Dessa forma, as questões da identidade e da diferença, reformuladas pela Escola Francesa, se transformaram no corpo mais apreciado de pensamento nos departamentos de Inglês, que passaram a atrair estudantes de outras áreas, igualmente interessados nas possibilidades transdisciplinares que ali se abriam. De outra parte, o espírito pragmático dos norte-americanos logo percebeu que esse novo âmbito de conhecimento oferecia respostas a problemas não apenas acadêmicos. A discussão sobre identidades múltiplas e diferenças culturalmente situadas propiciava o encaminhamento de condutas políticas sem pressupor a luta de classes.

Muitas vezes, o desconstrucionismo reduz-se a interpretações errôneas, como as de Hayden White (1995), na muito difundida, embora malfadada, inventiva para “descontruir” a história. Verificando um processo retórico em obras de filosofia da história e historiografia redigidas no século XIX, o autor confunde os discursos histórico e literário; define as formações de enredo como originariamente poéticas, “ao considerar os modos pré- configuracionais como verbalmente exauríveis. Essa admissão leva-nos a acrescentar: no exato momento em que a Lnguistic Turn encontrava, com o Metahistory, um de seus instantes capitais, ela descobria seu calcanhar-de-Aquiles” (COSTA LIMA, 2006, p. 20).

O adjetivo multicultural veio a calhar para uma sociedade cujas bases históricas haviam-se constituído através dos seguintes mecanismos:

inicial colonização inglesa, de confissão puritana, com o genocídio das populações indígenas, a importação em massa de escravos africanos para o trabalho braçal, a abertura do país à imigração ocidental e oriental quando o progresso do capitalismo liberal tornou o país o sonho de redenção para as camadas pobres da Europa e do Oriente, resultando numa sociedade multirracial, dominada, porém, por uma ética protestante que favorecia o acúmulo de capital e o empreendimento individual. Em todos esses estágios de formação, o elemento nativo e o estrangeiro, aos olhos dos cidadãos anglo-saxões, foi visto como alteridade ameaçadora, que deveria ser eliminada ou submetida, assimilando-se à cultura dos dominadores (BORDINI, p. 19, 2006).

O multiculturalismo, portanto, não se confunde com os estudos culturais que, apesar de não terem uma só origem, relacionam-se à escola de Birmingham. Desde os anos 50, os

Cultural Studies vêm conjugando expressões populares ou de massa aos cursos de língua e

literatura. Seu raio de ação passa das proposições iniciais, focadas em abordagens transdisciplinares e no alargamento dos objetos da literatura, à desnacionalização e à desterritorialização dos locais da cultura.

Desenvolta de tamanha amplitude, a literatura comparada enforma área disciplinar e se insere nos campos da cultura, discutidos ou colocados em xeque pelos estudos culturais. Ambas práticas ocupam zonas limiares, chocando-se em algumas ocasiões; em outras vezes, trilhando as mesmas rotas. A partir da metade dos anos 80, as investigações comparatistas se difundiriam pela América Latina, pelas jovens nações francófonas e lusófonas da África ou por territórios orientais.

O comparatismo fixaria um ponto de contato com os estudos pós-coloniais, ou seja, com reflexões de teóricos radicados nos centros de poder, mas provenientes das ex-colônia do império europeu, como Edward Said, Gayatri Spivak, Homi Bhabha e Stuart Hall. Reflexões teóricas, críticas e hermenêuticas viriam a dedicar atenção para os espaços intervalares, às zonas limiares, preocupando-se com o limite, as margens, os contornos. Nesse sentido, Edward Said, em Orientalism (1978) e Borges, no livro Siete noches (1980), sublinham a construção da idéia de Oriente no mundo ocidental.

Nessa época, Lyotard designou interpretações históricas de peso, a exemplo do marxismo e da psicanálise, como metanarrativas, ou seja, grandes sistemas de conhecimento em estado de crise. Ao mesmo tempo, destacava certa emergência de uma simultaneidade, a qual viabilizaria o acesso a múltiplas visões do mesmo fenômeno, e ainda notou que o saber

muda de estatuto, ao mesmo tempo em que as sociedades entram na idade dita pós- industrial e as culturas, na idade dita pós-moderna. Essa passagem começou desde pelo menos o final dos anos 50, marcando, para a Europa, o fim de sua reconstrução. Foi mais ou menos rápida conforme os países e, nos países, conforme os setores de atividades: donde uma discronia geral, que não torna fácil o quadro de conjunto. Uma parte das descrições não pode deixar de ser conjectural. E sabe-se que é imprudente conceder um crédito excessivo à futurologia (LYOTARD, 2002, p. 3).

Especialmente após a guerra em África e a redemocratização dos países sul- americanos, elites intelectuais e organizações populares empenharam-se em redefinir suas atuações, inspirando-se nas medidas adotadas pelos culturalistas de Birmingham. Várias culturas passavam a exigir seus direitos à autonomia, “sem predominâncias ou assimilações que destruam suas especificidades, e se postula uma convivência fraterna entre as diferenças sociais, com respeito mútuo – e essa é a sua melhor faceta, pois significa uma recusa à homogeneização proveniente da hiper-administração” (BORDINI, p. 13, 2006).

Iuri Lotman (1995, p. 26) trata dos códigos semióticos que, à semelhança do que ocorreu entre os povos africanos e latino-americanos, fazem a “pessoa sem biografia” criar determinado texto sobre uma “pessoa com biografia”. O téorico dá relevo para duas grandes narrativas biográficas, “a de Tolstói e a de Dostoiévski, biografias sem as quais se tornaria

impensável uma percepção da obra dessses escritores e da cultura do século XIX em geral.” Por outro viés, Ernst Curtius projetara o texto literário sob a forma dum jogo, constituído por

topoi (peças temáticas) que podem ser enumeradas ad infinitum.

Ainda que eurocêntrica, a noção de linguagem comum, pressuposta em Curtius, viria juntar-se ao pensamento de Costa Lima (1981, p. 233):

Se esta conclusão parecer plausível, sua primeira conseqüência prática será o não privilégio, pelo analista, de alguma propriedade estética, substituído pelo estudo de como, em um período histórico demarcado, se atualiza a idéia de mimesis em

relação com as formas vigentes de representação social. Assim seria menor o risco

das normatividades estéticas, sempre abusivas, bem como menor a vigência do purismo absenteísta, i. e., a inclinação de abordar a arte por si mesma, fora da adequação com o seu contexto: quer o original, quer aquele a que ela se propagou.

Os estudos literários brasileiros abriam-se igualmente ao diverso e à alteridade, em concomitância ao singular. Tais posturas encontravam paralelo nos correntes empreendimentos para discutir e reconceituar os paradigmas das ciências humanas. Desde então, o setor das letras da academia, como outros, transita pelos espaços da intertextualidade, da inter-semiose e da transdisciplinaridade, encontrando arena em cursos de pós-graduação do país, assim como na Associação Brasileira de Literatura Comparada, fundada em 1986.

Os comparatistas latino-americanos juntavam-se à entidade que traz um designativo do nacional em seu nome. Ironias da semântica, pois um dos conceitos mais discutidos pelos estudos culturais e a literatura comparada seria justamente o de nação. Preocupações com o diluimento de seus limites chegaram a tal nível, que o eixo temático proposto pelo V Congresso da ABRALIC, realizado em Florianópolis no ano de 1998, alardeava: Literatura

Comparada = Estudos Culturais?

Graças à episteme pós-moderna, é hoje possível falar desde as próprias culturas da América Latina, cuja pluralidade requer:

um enfoque também plural, que reconheça as diferenças de ordem geográfica, lingüística, etnográfica, cultural, econômica etc. do continente e busque dar conta dessa diversidade de maneira desierarquizada [...] assim, deve ser abordada por uma ótica que leve em consideração o processo mesmo dessa construção através do exame da produção e recepção de sua literatura (COUTINHO, 2003, p. 86).

Neste caso, revalorando e contrapondo as referênciais de espaço e tempo frente ao simulacro produzido pelas vias digitais, Marilena Chauí (2006) pensa que o mundo virtual constitui uma realidade elaborada. Como um ato de criação, ocupa o antigo papel que os filósofos atribuíam à natureza e as religiões, à “palavra inspirada”. Por isso, tento avivar os referentes da percepção, da vivência individual e coletiva, da geografia e da história,

experiências basilares às concepções de alteridade e identidade; objetividade e subjetividade; acaso, contingência, desejo, liberdade, finalidade, necessidade, vício, virtude etc.

Na era pós-moderna, os desenvolvimentos teóricos em relação ao intertexto, aliados à noção de suplemento (DERRIDA, 2001) admitem estudar os arquivos do sujeito produtor, retirando a centralidade das análises de sua figura. A partir da revolução digital, informações que se avolumam requisitam pesquisas cujo horizonte não é mais a síntese, quer dizer, um entendimento atual do passado. Certeau (2002, p. 86) reitera que as investigações históricas devem proceder a “uma formalização (um sistema presente) para dar lugar aos ‘restos’ (indícios de limites e, portanto, de um passado que é produto do trabalho).”

Na modernidade inicial, as coleções davam aquecimento a uma “febre de memória”, que passaria aos eruditos e às efemérides; a museus e bibliotecas; à fotografia, ao cinema e à tela pequena. Na Grécia antiga, quem zelava pela segurança material e pelo suporte onde a escrita se depositava era o arconte, possuidor da faculdade hermenêutica, ou seja, do direito à interpretação dos textos. Como esse privilégio não parece de todo abolido, cabe agora explorar o acervo de outras culturas e seus hiatos, lacunas, esquecimentos; o testemunho em branco da ausência, a documentação da barbárie, os monumentos de um grande arquivo silenciador.

4 SETE PASSEIOS POR SENDAS QUE SE BIFURCAM

Percorre-se um bosque experimentando um ou vários

caminhos ou andando para ver como é o bosque e

descobrir por que algumas trilhas são acessíveis e outras

não: Há igualmente duas maneiras de percorrer um texto

narrativo. Todo texto desse tipo se dirige sobretudo a um

leitor-modelo do primeiro nível, que quer saber muito bem

como a história termina [...] Mas também todo texto se

dirige a um leitor-modelo do segundo nível, que se

pergunta que tipo de leitor a história deseja que ele se

torne e que quer descobrir precisamente como o autor-

modelo faz para guiar o leitor....

UMBERTO ECO