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Biografia romântica e literatura, das revoluções aos impérios

3.1 MÉTODO: OS SABERES E OS PODERES

3.1.2 Biografia romântica e literatura, das revoluções aos impérios

Aristóteles estava errado; dizia que a arte imita a vida, mas é o contrário: a vida imita a arte. Onde estavam as névoas de Londres antes que Turner as pintasse? Não existiam. Ele teve de vê-las pela arte, para que depois elas passassem a fazer parte da vida, para que as pessoas começassem a vê-las.

OSCAR WILDE

As academias contribuíram ao avanço do gênero biográfico, a ocorrer no final do século XVIII.60 Seu paradigma romântico, segundo Madelénat (1983), instaurou-se por meio da obra de James Boswell, The Life of Samuel Johnson (1791). Jorge Luis Borges declara que Boswell teria feito dessa biografia “uma obra dramática, com diversas personagens. Aí está Reynolds, aí está Goldsmith, algumas vezes, os integrantes do ‘Cenáculo’ ou, como diríamos agora, do círculo literário do qual Johnson era o líder” (ARIAS; HADIS, 2001, p. 151).

Nos passos da Vida de Samuel Johnson, muitas vezes comparada às Conversações

com Goethe (1836-1848), de Johann Peter Eckermann, apareciam inumeráveis narrativas

acerca dos “grandes vultos da história”, como Danton, Robespierre, Wellington etc. Em obras biográficas marcadas por aspectos romântico-positivistas, despontavam assinaturas de intelectuais famosos, como Jules Michelet, Max Stirner, Thomas Carlyle, Thomas Macaulay e outros. Na Paris de 1846, inclusive surgiu a “História de Napoleão, redigida por um mulato baiano, Caetano Lopes de Moura, que servira de médico nos exércitos do imperador e que se fixara como tradutor na capital francesa” (NEVES, 2002).

O conceito da personalidade em desenvolvimento, verificado nas Confissões de Rousseau (1770), também alcançava o universo romanesco, através do Tristram Shandy (1759) de Lawrence Sterne e do Bildungsroman, “romance de aprendizagem ou formação”, moldado em Goethe. No mesmo ano em que era publicado o volume primeiro daquela narrativa romanesca, Dr. Johnson editava The History of Rasselais, usualmente, comparada ao

Cândido de Voltaire. Além da composição biográfico-ficcional centrada no príncipe Rasselais

da Abissínia, o escritor inglês produziu trabalhos de cunho biobibliográfico sobre poetas conterrâneos, reunindo-os em Lives of the Poets (1779-1781).

A distinção entre as “belas-letras” e a literatura passou a vingar com as séries de fragmentos do romântico alemão Friedrich Schlegel (1772-1829), classificadas como

Kritische Fragmente, ou Lyceums-Fragmente (1797), e Athenäum-Fragmente (1798). A

primeira delas reservava especificidade às abrangências da poesia e, à zona literária, destinava

o amplo leque usualmente abarcado pela retórica. Aparentemente contraditórias, ambas as séries resultavam de concepções em vigência na então cultura germânica:

A antiga unidade das letras, corporificada por aquele que sabia combinar palavras e períodos, tende a se dissipar, substituída pela aproximação entre poesia e literatura. Mas tanto a preservação da unidade como a aproximação mais estreita são apenas tendências, passíveis de contradições. Para verificá-lo, será conveniente um breve percurso pelos dois conjuntos de fragmentos. Embora eles não tenham um objeto de eleição, é patente que privilegiam as formas poéticas e o que já é o gênero saliente da literatura, o romance (COSTA LIMA, 2006, p. 321-322).

Literature não fez parte do vocabulário inglês até os anos de 1800 enquanto, nas

últimas décadas de 1700, Poetry designou as escritas, nem tão apenas em verso, contrapostas à ideologia do capitalismo inicial, como delata o ensaio de Percy Shelley, A Defense of Poetry (1821). A prosa seria considerada vulgar ou carente de inspiração e o conceito abarcado pelo termo “poesia” significava “imaginativo”. Sua ambigüidade sugeria essas visadas, pois encerrava a “ressonância do qualificativo ‘imaginário’, significando o que é ‘literalmente inverídico’, mas é também, de certo, um termo avaliativo, que significa ‘visionário’ ou ‘inventivo’” (EAGLETON, 1983, p. 20).

No final da centúria iluminista, literatura implicava qualidade estética, segundo acepções veiculadas pelo trabalho de Jean-François Marmontel, Eléments de littérature (1787). O mesmo pode ser dito sobre Madame de Staël e sua hiper-referida obra De la

littérature considéré dans se rapports avec les institutions sociales (1800). Desde o exílio

dessa escritora e de Chateaubriand, a França começou a importar outros livros e ia perdendo a hegemonia literária sobre o mercado europeu, conquistada no início do século.

Os franceses tinham destaque, por exemplo, com as literaturas feminina, de viagens e burguesa. Conforme Aguiar e Silva (1974, p. 7), pouco sobra duma gama de narrativas editadas desde o iluminismo à crise que assinalou a modernização epistemológica:

Durante o império napoleônico, por exemplo, publicavam-se anualmente em França cerca de quatro mil romances: desta mol desmesurada de produções romanescas, apenas alcançaram a imortalidade Adolphe de Benjamin Constant e os breves romances de Chateaubriand (René, Atala).

De acordo com Paul Valéry (1997), a poética se revitalizou a partir de Edgar Allan Poe (1809-1849). Uma “nebulosa” estabelecida em França traduzia as composições e reciclava as idéias desse escritor norte-americano, não sem antes debatê-las e testá-las. A contar entre tais poetas, críticos, estetas e artistas, Charles Baudelaire (1821-1867) responsabilizou-se por veicular a palavra Modernidade, num artigo a que intitulou “Le peintre

A utilização do vocábulo restringiu-se aos espaços artísticos, ao mesmo tempo em que a poética se limitava, normalmente, aos escritores e filósofos. A retórica destinava-se a professores e alunos, ou seja, às escolas e universidades, apenas oferecendo simplificadas enumerações de figuras em currículos dos anos de 1700 e 1800:

Rompe-se desse modo a congruência até então observada entre a literatura (clássica) e os discursos que a tomavam como objeto [...] Se o romantismo constitui, no âmbito das ideologias literárias, a senha para a superação da retórica e da poética, nos campos da especulação filosófica e da pesquisa cientifica, o mesmo pode ser dito respectivamente da estética e da história (SOUZA, 1992, p. 373).

Depois de 1848, uma vez apaziguados temporariamente os movimentos revolucionários, formavam-se os estados nacionais e ascendia o capitalismo industrial. O fortalecimento da cultura burguesa era seguido pela constituição do proletariado urbano e das organizações sindicais, bem como pela crítica de Marx à economia política em seu tratado

Das Kapital (1867). Não sem motivos, Hobsbawm (1988) catalogaria esse período, que se

estendeu até 1875, como a “Era do Capital”.

O mesmo historiador inglês (HOBSBAWM, 2003) denominaria “Era dos Impérios” ao interregno de 1875 a 1914, a se marcar pela expansão colonialista e pelas notações culturais da alta modernidade no transcurso do século XIX ao XX. Se literatura hoje significa pejorativamente uma expressão artificial ou afetada, isso se deve a Paul Verlaine (1844-1896) que imortalizou a frase Et tout le reste est littérature. O termo ainda nomeia uma sistematização do conhecimento literário, como acontece com: “literatura brasileira”, “literatura hispano-americana”, “literaturas afro-asiáticas de expressão portuguesa” etc.

Compartimentações dessa espécie vigorariam sob as práticas da literatura comparada, detida nas fontes e influências, ou se vinculando a uma das perspectivas da “história literária”. Por outro viés, os ensinamentos aristotélicos passavam aos manuais de estilo e retórica e a poética retomava o sentido anterior, de estudo das formas metrificadas, ou para expressar um conjunto de textos que apresentassem propriedades artísticas. Como disciplina, livrou-se da pecha normativa e incluiria a “vivência poética” entre seus objetos.

Na trajetória de institucionalização das ciências humanas, os estudiosos das letras dividiam-se entre a história da literatura, a crítica literária e a ciência da literatura, segundo as utilizações e os locais onde atuavam. Suas abordagens distribuíram-se entre os ângulos biográfico-psicologista, sociológico ou filologista. No final da 19ª centúria, somava-se àqueles ramos o “impressionismo crítico”, ligado ao estilo jornalístico a veicular-se nos diários, em periódicos, nas revistas e outros meios.

O método de Gustave Lanson (1857-1934) foi assinalado pelo eruditismo positivista dos compatriotas Charles-Victor Langlois (1863-1929) e Charles Seignobos (1854-1942). Segundo Compagon (2006, p. 24), uma obra daquele professor de retórica serviria de tertium

comparationis entre

o modelo da história da literatura e da história literária (a síntese versus a análise, o quadro da literatura em oposição à disciplina filológica, como o manual de Lanson,

Histoire de la Littérature Française [História da Literatura Francesa], de 1895,

frente à Revue d’Histoire Litteráire de la France, fundada em 1894).

Charles Augustin Saint-Beuve (1804–1869) faz-se recordar por seus retratos biográficos, ao estilo da Galerie des femmes célèbres, editada pela Garnier em 1862. O famoso crítico literário seria para sempre lembrado por não conceder os devidos valores a Balzac, Baudelaire e Stendhal: “faltara a seu ofício fosse por dedicar dezenas de seus Lundi a escritores medíocres e nenhum a Baudelaire, de quem, entretanto, se dizia amigo, fosse, sobretudo, pelo método que desenvolvera” (COSTA LIMA, 2006, p. 337).

Para Baudelaire, o tempo era um instante, o vivido, fugidio; com essa idéia, o poeta deu ânimo a renovado confronto de “moderninhos contra os antiquados”. No fin-de-siècle, cada novo movimento artístico, literário, até mesmo religioso, batizava-se ou era batizado de “modernismo”. A presença da literatura francesa era marcante na América Latina, de 1800 a 1860, e “até o começo da Grande Guerra, continuou a fazer-se sentir fortemente, sem impedir a infiltração de outras literaturas e correntes de pensamento” (JOZEF, 2005, p. 12).

A derrocada do historicismo trouxe uma vacilação entre os métodos da história literária e da “teoria da literatura”. A “teoria” é definida como um feixe de reflexão, gênero misto, ainda novo durante os anos de 1800, quando já mesclava crítica literária, filosofia moral, história intelectual e profecia social. Seu grande mérito consiste em sinalizar para o fato de que o senso comum é historicamente construído, “um corpus ilimitado de textos escritos que está sempre sendo aumentado. A impossibilidade de dominar a teoria é uma causa importante de resistência a ela” (COMPAGNON, 2006, p. 24).

Na tentativa de oferecer maior especificidade ao literário, Alexander Potebnia (1835- 1891) escrevia uma obra a ser editada postumamente: Notas para uma teoria da literatura (1905). Os estudos literários esquadrinhavam suas fronteiras, onde ainda cabiam a comparação, a crítica e a historiografia literárias, as quais predominaram no século XIX. Trabalhos realizados pelos lingüistas Charles Bally, Ferdinand de Saussure e Karl Vossler

fariam com que uma herdeira da retórica — a “estilística” — engrossasse tal sistema de conhecimento e tivesse grande voga entre os alemães e os espanhóis.

A primeira guerra mundial dava início à Era dos extremos (HOBSBAWM, 1995) em cuja ponta, ocorreria o ato inaugural da teoria da literatura,61 atribuído ao movimento formalista russo. Em outro ponto, dilatava-se a produção criativa dos escritores ocidentais, em meio a tensionamentos constantes entre a continuidade modernista e o antimodernismo (LODGE, 1991, p. 3-16). Nem sempre apartadas pacificamente, essas tensões se inclinariam, de forma respectiva: a) ao privilégio da linguagem sobre a representação, de que é exemplo o concretismo brasileiro; b) aos modelos miméticos, cujas expressões bastante conhecidas encontram-se nos neo-realismos, no realismo socialista e no romance histórico.

A experiência imposta pela mimese veio gerando algumas dificuldades em teorizar acerca de tal conceito. Nem os tratados de Aristóteles lhe ofereceram tratamento explícito, ainda que o estagirita se demonstrasse lúcido ao formular, “com nitidez, a razão do interesse provocado pela mimesis trágica: o sentimento de alívio catártico. A poética da modernidade como que inverteu os fatores: a catarse é desprezível; o distanciamento, o desejável” (COSTA LIMA, 1981, p. 232).

Os historiadores julgariam o gênero biográfico inadequado, devido à carência de articulações lógicas e procedimentos analíticos, entretanto, as biografias não eram banidas, nem do universo dos escritores, nem dos leitores. Mesmo documentadas em textos, as vidas ilustres “podem classificar-se na linhagem clássica de transmissão da experiência comunitária. E foi, justamente, o esgarçamento dessa linhagem que sinalizou, para Walter Benjamin, a aceleração das perdas e transformações desencadeadoras da modernidade” (CARDOSO, 2002, p. 112).

A teoria e a arte poética de Paul Valéry ergueram a ponte que ligaria Edgar Allan Poe, a moderna lírica francesa e Jorge Luis Borges. Nascido na era do capital, aquele poeta das

Variedades presenciou a Belle Époque dos impérios e viria a falecer no “breve século XX”.

Da velha Europa ao Novo Mundo, a novidade apresentada pela estética dos tempos modernos reside na concepção de que os elos da literatura com o mundo, além de percorrerem o caminho do real ao imaginário, andam igualmente pela trilha inversa.

61 Considerações sobre a teoria da literatura são extraídas de: CULLER, 1999; LODGE, 1988; REIS, 1997;