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Testemunha dos tempos: indivíduo nas escritas

2.3 MIMESE: LIVROS & DOCUMENTOS

2.3.1 Testemunha dos tempos: indivíduo nas escritas

A obra de Dante tornou realidade a essência cristã-figural do homem e a destruiu na mesma realização; a poderosa moldura rompeu-se pela supremacia dos quadros que envolvia.

ERICH AUERBACH Mimesis

Consignada na Antigüidade, a noção da existência de um sentido nos destinos individuais fez-se mais intensa com a mimese medieval. Ao sobrelevar antigos mitos escatológicos, a doutrina cristã salientou a indestrutibilidade do indivíduo. A percepção da história e da realidade imanente, atingida pela Divina comédia, levou à idéia de que uma vida concreta estava intrinsecamente ligada ao destino final dos seres, conceito que os artistas tentavam conservar, junto à herança de Dante.

Num outro esforço, para fixar a memória que resistia à transmissão por meio da experiência, mostraram-se de grande valia as atividades de advogados, magistrados, funcionários, conservadores de arquivos do século XV. Primordiais à organização da história, os atos dispositivos do mundo jurídico se estenderiam aos anos de 1500. Seria esse o terceiro momento da ciência histórica, marcado por instaurar perspectivas laicas de abordagem e pelo delineamento de uma crítica documental apoiada na filologia (LE GOFF, 2003, p. 117).

O fazer histórico dos humanistas já procurava se afastar das fábulas, das lendas e dos mitos. Os historiadores profanos guardavam certa distância do viés sobrenatural e, para tanto, encontraram apoio em Lourenço Valla, inaugurador da crítica dos documentos, através da obra De Falso Credita et Ementia Constantini Donatione Declaratio (1440). A história estreitava seu elo com a erudição e lançava os fundamentos das ciências que lhe serviriam de auxiliar, iniciando-se numa perspectiva crítica.

A partir do prelo com tipos móveis, invento creditado ao mestre gráfico Johannes Gutemberg, o uso do papel se alastraria. Embora a imprensa só alcançasse maior público nos séculos XVIII e XIX, seu desenvolvimento contribuiu para difundir as biografias e na preservação de fontes históricas. No momento em que precisaram rever suas técnicas, os impressores conduziam o mundo da leitura a novo objeto: “a busca da correção tipográfica, o desejo de editar os textos do ‘bom manuscrito’, tudo isso estimula os estudos filológicos” (FEBVRE; MARTIN, 2000, p. 338).

Crônicas de estilo medieval, textos neolatinos e antigos eram lidos por pessoas da lei, integrantes da corte, militares, burgueses mercadores, simples artesãos. Cada vez mais, esse

público se interessaria pela história nacional e pelas histórias imaginárias, mas pouco se importava em distinguir entre o lendário e o supostamente verdadeiro. Toda essa demanda laica por obras históricas tornaria o espaço biográfico um tanto quanto suspeito para os historiadores.

Gesta Ferdinandi (1445-46), trabalho daquele mesmo Lourenço Valla, foi

severamente criticado por mencionar risadas e roncos de soberanos. Estando na zona histórica, “mais dignificante” do que a biográfica, seu autor deveria eximir-se de tais detalhamentos. Das Vidas, exigir-se-ia um conceito mais satisfatório à gradativa busca da autenticidade documental, que poderia colocar em risco a baliza das existências prodigiosas (MADELÉNAT, 1983, p. 45).

Burckhardt exemplifica a natureza versátil do “novo indivíduo” através de Enea Silvio Piccolomini que, além de assumir o papado em 1458 como Pio II, era poeta e cosmógrafo. Em

Commentari, o papa se confundiria em retratista e biógrafo, representando as criaturas

humanas por meio dos caracteres que mais as identificavam. Os Comentários ainda transformam o autor-protagonista em sujeito da história: “a autobiografia se resolve em historiografia, contudo, não se anula nessa” (GUGLIELMINETTI, 1977, p. 210).

Na parte norte da Itália, os tiranos faziam-se príncipes ou requintavam seus meios de dominação, envoltos na complexidade do aparelho estatal-citadino, com certa independência do poder pontifício. Giannantonio Campano (1429-1477) e Pier Candido Decembrio (1392- 1497) elaboraram, nesta ordem, as Vidas dos condottieri Braccio da Montone e Niccolo Piccino. Inspirada em Suetônio, a escrita biográfica de Decembrio abarca igualmente Filippo Maria Visconti e Francesco Sforza, sucessivos governantes do ducado de Milão.

A história do rei Alfonso de Aragón, narrada por Antonio Panormita (1394-1472) e Bartolomeu Fazio (1440-1467), soma-se às precedentes para comprovar a paridade entre os príncipes e aqueles braços do mercenarismo, quando se trata da dignificação pela memória. Ao exibirem os topônimos de nascimento, ao lado dos nomes batismais, Sigismondo de Rimini e Federico de Urbino indicam o grau de liberdade gozado pelas cidades italianas. Entre demais poderosos, eles davam forma a um tipo de municipalismo em cujo seio gerava- se o mundo da cultura: “O Império da Igreja mantinha, com os poderes principescos ou republicanos locais, uma relação extremamente variada, em acordo com a multiplicidade de formas em que tais estados se apresentassem” (FERNANDES, p. 185, 2004).

Coetâneas às Vitae reunidas no De Viris Illustribus (1456) por Bartolomeu Fazio, as

Croniche de Matteo Palmieri (1406-1475), os Decadi de Biondo da Forli (1392-1463) e as

crônicas dos Villani demonstram em que intensidade a urbis centralizou tanto a organização sócio-administrativa e político-cultural da Itália quanto suas relações de poder. Organismo da

vita civile, a cidade confundia o aparelho estatal com seus limites e funcionamento. Uma

dessas cidades, Florença deu abrigo para o humanismo neoplatônico, segundo a exposição do cardeal Nicolau de Cusa (1401-1464).

As Vite degli uomini illustri del secolo XV, escritas por Vespasiano da Bisticci (1421- 1498), entre as quais se contam as Vidas do humanista Pomponio Leto e do mecenas Cosimo de Médici, converteram-se na fonte básica para o trabalho de Burckhardt. Além das figuras do mercador e do estadista, aí constam personalidades do círculo sacro, homens e mulheres ilustres. Suas biografias funcionam como meios de acesso a eventos, hábitos e valores que permitem inferir sobre os ofícios e as ações do ser humano nesse tempo.

Por meio de tais obras, as gerações futuras podem verificar a semelhança de Leonardo Bruni com sua personagem Dante: ambos eram homens que “economizavam as palavras”. Pela mesma via, Giannozzo Manetti dotava-se de “memória maravilhosa e dormia apenas cinco horas por noite. O papa Eugênio IV gostava de ler na cama. O connoisseur Niccolo Niccoli gostava de usar finos tecidos vermelhos e tinha suas refeições servidas em ‘pratos lindos e antigos’” (BURKE, p. 90, 1997).

Os domínios biográficos também se demarcavam por intermédio de Bartholomeus Platina, com as Vitae Pontificum (1481) e de Giacomo Filippo Foresti, com o Supplementum

Chronicarum (1483). O último escritor dedicou De Claris Mulieribus (1497) a Beatrice de

Aragón. Esse livro deve a Boccaccio não apenas o título, mas também sua organização, destacando mulheres humanistas, a exemplo de Cassandra ou de Isotta Nogarola.

No decorrer da 15ª centúria, Philippe de Commynes relatou a história do rei francês Luís XI, ao passo que um texto anônimo enfocava Pierre Terrail, o senhor de Bayard. Os espanhóis assistiram ao incremento das Crónicas de reinados com Alfonso de Palencia, Andrés Bernáldez, Diego Enríquez de Castillo, Diego de Varela e Pedro de Escavias. Ao último cronista, tributa-se a autoria dos Hechos del condestable Don Miguel Lucas de Iranzo (c. 1475).

A biografização pela qual passou a nobreza ibérica exemplifica-se pelo trabalho de um autor desconhecido: Crónica de Don Alvaro de Luna, condestable de Castilla, maestro de

Santiago (1455-1460). Fernán Pérez de Guzmán, em Generaziones y semblanzas (1450-

1455), oferece retratos de personalidades das cortes de Enrique III e Juan II: Ayala, Villena, Dom Alvaro de Luna etc. Conhecido pela narrativa de corte biográfico, Hernando del Pulgar, em Claros varones de Castilla (1486), focaliza os reis Juan II e Enrique IV, bem como a órbita cortesã, em que se contam, dentre outros, Dom Rodrigo Manrique e o marquês de Santillana (SÁNCHEZ ALONSO, 1947-1950).

A biografia transpunha os limites românicos, por meio de Tito Livio Frulovisi, um italiano expatriado, que se volta para o rei inglês Henrique V em Vita et Gesta Henrici Quinti (1438). O alastramento do humanismo ao Norte europeu também se daria por intermédio da vida de Petrarca, narrada pelo erudito holandês Rudolf Agrícola (1473-1474). Narrativas como essas se contaminaram por estratégias ficcionais e normas da retórica, tanto que

Jouvencel (c. 1465), por Jean de Bueil (1405-1477), receberia a etiqueta de “romance

biográfico” (HUIZINGA, 1952).

Após o humanismo do Trecento, a farsa realística dos mistérios conduziu a formas que não se mostraram suficientemente enérgicas para manterem as interpretações figurais, decorrentes da mistura estilística cristã. Uma viva representação do ser humano, quer dizer, a “imagem criatural”, ultrapassava os limites do cristianismo, acorrendo em simultâneo com o “cavaleirismo cerimonial”. Essa convivência se alastrara pelo século XIV, embora tivesse adquirido contornos mais definidos no decorrer do século XV (CARPEAUX, 1978, p. 271-437).

Assim, Iñigo López de Mendoza — o marquês de Santillana (1398-1458) — pôs a figura de Boccaccio no contexto da derrota naval sofrida pelo rei Alfonso V, em sua

Comedieta de Ponza. O autor realizava um encômio ao revés, na diatribe contra Dom Álvaro

de Luna que constitui sua obra Doutrinal de privados. O nobre poeta dispôs ainda de outras figuras históricas em Coronación de Mosén Jordi de Sant Jordi, Defunción de Don Enrique

de Villena e Diálogo de Bías contra la Fortuna.

Juan de Mena (1411-1456) valeu-se do mesmo recurso na composição de estilo trovadoresco Coronación del Marqués de Santillana. Em intertextualidade mantida com a

Divina comédia, ele trouxe Dom Álvaro de Luna e Lorenzo Dávalos, entre outras

personalidades históricas, para a recriação textual d’El laberinto de Fortuna, ou Las

trescientas. De forma similar, na antologia intitulada Cancionero de Stúñiga, figuram

Em Tirant lo Blanc, Joanot Martorell (c. 1405/1415-1468) descreve fatos corriqueiros, festas e combates. O escritor catalão utiliza estilo que, como outros livros de cavalaria, parece dever às crônicas reais. Produto de um ressurgimento do cavaleirismo na Itália e no Flandres do século XV, o êxito alcançado por tais narrativas vincula-se a uma capacidade para retratar a degeneração da experiência democrática citadina e a gradativa assimilação da cultura européia aos padrões corteses.41

As produções do cavaleiro provençal Antoine de La Sale (c.1390-c.1461) não rompiam com a linguagem do próprio estamento, revelando-se medievais. Não seriam clássicos, nem humanistas, seu romance Hystoyre et plaisante cronique du petit Jehan de

Saintré, ou as narrativas que congraçava em Réconfort de Madame du Fresne. As escritas

medievais ainda se impunham, todavia, sob olhares diversificados, como na sátira de Luigi Pulci (1432-1484) ao ideal cavaleiresco, denominada Morgante Maggiore (1481).

O poeta italiano narra como Roland e o primo Renaud largam Carlos Magno ao sabor da sorte, nesse trabalho que não deixa de apresentar seu lado sério, mas cujos altos momentos residem na comicidade alegórica, encoberta pelo gigante protagonista, e direcionada ao cristianismo. Na mesma cultura, Roland protagonizou Orlando enamorado, poema narrativo composto em 1483 por Matteo Maria Boiardo. Os heróis Roland/Orlando reenviam ao ciclo de Carlos Magno, diluído no conjunto arturiano, na Demanda do Santo Graal.

Uma personagem recorrente nos contos em verso da Espanha medieval — Dom Bueso — marcava presença na antiga fração do Cancionero de Hijar (século XV). Sua figura provém de Ortwin, o noivo da protagonista cujo nome dera título à epopéia germânica

Kudrun. Até meados da 15ª centúria, o romanceiro espanhol contava com exemplares

procedentes da épica: Bernardo del Carpio, El Cid, Fernán González, Infantes de Lara etc (MENÉNDEZ PIDAL, 1977, p. 97-106).

Na outra metade do século, as composições tradicionais circulariam nos palácios, sob as formas: do ciclo histórico nacional; da gesta francesa; mourisca (a exemplo dos romances

Abenámar y El Rei Don Juan e Reduán); noticiosa (tipo Romance sobre Don Pedro, el

Cruel); novelesca (no estilo do Romance del conde Arnaldos). Processados por tais releituras,

os textos históricos ou lendários não permaneceriam fixos em suas temporalidades pois, no abismo temporal que os separava, iam-se transformando os meios de controle do imaginário. Já era possível aceitar enredos para cuja legitimação

41 No tempo e no espaço representados, a nobreza via uma orientação didática em ficções de tal espécie e se

bastava que pudessem ser alegorizados conforme os níveis de interpretação medieval. No momento, contudo, em que essa cosmovisão entrou em crise e o julgamento individual assumiu o peso que já se lhe reconhece no século XV, o álibi do fictício deixa de vigorar. Noutras palavras, o risco do controle do ficcional existiu pelo menos desde que a linguagem teológica teve a necessidade de se armar em dogmas, evitando a fluência imagética da linguagem mítica. Mas esse risco só se atualizaria quando a rigidez conceitual da cosmovisão teológica já não se mostrou capaz de se conciliar com o peso concedido ao julgamento individualizado (COSTA LIMA, 1988, p. 361-362).

A sátira popular da Espanha quatrocentista foi reunida nas Coplas del Provincial, que não poupam os mais importantes medalhões da corte de Enrique IV. Frei Íñigo de Mendoza (1424-c.1508) teria escrito as Coplas de Mingo Revulgo (c. 1464), nas quais o referido soberano transfigura-se no pastor Candaulo. Jorge Manrique (c. 1440-1479) prestava tributo à memória do pai nas Coplas por la muerte de su padre e seu tio — Diego Gómez Manrique (c. 1412-1490) — havia procedido dessa forma honorífica nas Coplas a Diego Arias de Ávila.

Juan del Encina (c. 1469-1529) produziu éclogas inspiradas pelo bucolismo à italiana:

Fileno; Zambardo y Cardonio; Cristino y Febea; Plácida y Victoriano. O autor, entretanto,

não abandona os traços nacionais em suas últimas obras. Se as primeiras imitações efetuadas durante a regência da escatologia cristã ligaram-se ao firme objetivo de vivificar histórias da Bíblia, Dante animou, dentro da moldura figural, todo universo histórico e toda figura humana que sua pena conseguiu atingir.

A partir das inúmeras vozes, tornadas audíveis pela voz do escritor italiano, a mimese: “não estava mais sujeita às leis aristotélicas e já não se enquadrava em qualquer dos gêneros clássicos. Nisso ela se parecia a toda a arte cristã da Idade Média, embora de modo mais consciente” (AUERBACH, 1997a, p. 117). Sucedendo ao humanismo florentino, a narrativa francesa ressaltou determinadas características sensíveis-criaturais:

Boccaccio e o primeiro humanismo não mais sentiam aquela seriedade criatural na experiência da vida; na própria França, e em toda parte, ao norte dos Alpes, todo realismo sério estava ameaçado de morte por sufocação, causada pela trepadeira da alegoria; mas a força espontânea do sensível era mais forte, e dessa forma, o realismo medieval-criatural alcançou o século XVI; conferiu ao Renascimento um forte contrapeso oposto às forças separadoras dos estilos, que brotaram da imitação humanista da Antigüidade (AUERBACH, 1971, p. 224).

Dessa maneira, torna-se necessário agora estudar as produções biográficas, assim como a convergência entre poética e retórica, sob a égide do humanismo. Acontece que, na moldura da Renascença, e no interior do espaço biográfico, antigos modelos de Vidas continuariam acenando aos narradores italianos. Tais exemplos já se mostravam transpostos

por algumas expansões, ora conectadas com as mudanças que seriam infringidas à mímesis de Aristóteles.