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A Ratio moderna num prelúdio ao gênero biográfico

2.5 MIL E SETECENTOS: AS LUZES DA VERDADE ACESAS

2.5.1 A Ratio moderna num prelúdio ao gênero biográfico

O mundo espiritual e intelectual burguês do século XVIII transformou a História em um processo. Esse acontecimento, que inaugura a época nova, é idêntico à gênese da filosofia da história.

REINHARDT KOSELLECK Crítica y crisis del mundo burgués

Os domínios poéticos, as escritas de vida e as crônicas históricas despertavam atenções dos povos antigos inclusive antes de Heródoto. No presente subcapítulo, entretanto, buscarei esclarecer como as pesquisas em história se vinculariam à paulatina corporificação dos saberes ocidentais. O quinto momento da ciência histórica se demarcaria, no século XVIII, pelas primeiras instituições consagradas à história e pelo alargamento do terreno às curiosidades históricas.

Ampliava-se também o exame crítico dos documentos, com vistas a uma possível determinação das leis que regiam o mundo. O retorno à Antigüidade não se daria somente nas artes: “dos humanistas do Renascimento aos filósofos das Luzes, houve a dominância de uma história didática, cujo método baseou-se em lugares-comuns, tributários dos estóicos, dos reitores e dos historiadores romanos” (LE GOFF, 2003, p. 111).

Quase a modo de prelúdio a tal cenário, os resultados obtidos pela revolução gloriosa na Inglaterra de 1689 iam derivar em tentativas de sintetização do enciclopedismo com o iluminismo. Por volta da guerra dos 30 anos (1618-1648), os impérios da razão começavam a empreender o racionalismo francês de René Descartes e o empirismo inglês de Francis Bacon (1561-1626). O empirista notabilizou-se pela dúvida frente ao passado e pela contraposição da racionalidade ao imaginário.47

Formado em grande parte na cultura francesa, o racionalismo assimilava um percurso antecedente. A filosofia socrático-platônica desbravou-lhe as trilhas, quando ao examinar o problema do conhecimento pela retícula da linguagem. Desde Crátilo e Teeteto, ficou patente que a explicação racional se defrontaria com as palavras entre as coisas:

Na direção de um conhecimento que nos faça ver a verdade através dos nomes e além deles. Parece que tentando, desde aí, conquistar esse lugar neutro para o pensamento, sucessivamente ocupado pelo Cogito de Descartes, pelo amor

intellectualis Dei de Spinoza, pela analítica de Kant e pela redução de Husserl, a

filosofia começava a empreendar a ‘luta contra o sortilégio da linguagem sobre o nosso pensamento’, de que falou Wittgenstein (NUNES, 1973, p. 15).

47 No mesmo conjunto da Utopia, de More, e d’A cidade do sol (1602) de Tomás Campanella, pode ser incluída

A demanda pelo método científico dedutivo se fortalecia na Holanda, com Baruch de Espinosa, que contestava o dualismo da razão cartesiana mas, por tal meio, chegou à idéia monista do universo. No Tratado da correção do intelecto, esse filósofo ibero-judaico propõe o controle da imaginação, visando descobrir os motivos da existência dos objetos, porque a verdade seria inerente ao conhecimento. Para escolásticos e filósofos modernos que o precederam, haveria verdade apenas quando o intelecto se adequasse à coisa a ser conhecida.

No Livro V da Ética, Espinosa indica que a virtude consistiria no encontro com a Natureza, quer dizer, na felicidade em si mesma. Quem desejasse alcançá-la, precisaria fugir dos sentimentos adversos face ao infinito. “No autor da Ética, não há tragédia, nem há mistério; ao contrário, confiança plena na razão, capaz não só de conhecer, mas de fazer o homem trilhar o caminho das paixões positivas, a alegria e o amor” (CHAUÍ, 1979, p. XIII).

A reflexão espinosiana parece absorvida pelo médico inglês John Locke (1632-1704), o qual, no “Ensaio acerca do entendimento humano” (1690), condena as ficções, já que a metáfora e outras figuras vetariam o acesso à verdade. O ensaísta visualiza três tipos de idéias, fornecidas pelas experiências: sensação, reflexão e ambas, concomitantemente. Localizada no segundo tipo, a memória se distinguiria do conhecimento sensorial imediato, havendo

uma clara diferença entre as idéias situadas em minha memória (sobre as quais, se estivessem apenas lá, eu teria constantemente o mesmo poder para dispor delas e arranjá-las à vontade) e aquelas que forçam a si mesmas sobre mim, e não posso evitá-las. E, portanto, necessita-se de alguma causa externa, e da ação brusca de certos objetos externos, a cuja eficácia não posso resistir, e que produzem estas idéias em minha mente, quer queira, quer não. Ademais, não há ninguém que não perceba por si mesmo a diferença entre a contemplação do sol, como adquire esta idéia em sua memória, e atualmente olhando para ele (LOCKE, 1978, p. 315).

O Século das Luzes abrigava correntes tentativas de conciliação entre um frágil racionalismo e uma sólida religiosidade. Encarnada na figura do honnête homme, a classe burguesa reproduzia a vida cortesã na sociedade urbana. O cidadão burguês revelava-se como “principal suporte de um novo éthos religioso: a ascese intramundana (Weber), combinação eficacíssima do desprezo pelo mundo com o mais resoluto pragmatismo, que foi a têmpera tanto do puritanismo calvinista quanto da militância jesuítica” (MERQUIOR, 1977, p. 13).

Já organizados em instituições como arquivos e bibliotecas, os estudos históricos esposavam a necessidade duma metodologia que substituísse o manejo das fontes, encastelado nas circunscrições eruditas. Giambattista Vico (1668-1744) oferecia uma visão da história como processo, recusando Descartes. O pensador italiano propunha como alternativas à razão

e à crítica: o engenho (faculdade para descobrir o que pode ser verossímil); a tópica (espécie de arte que disciplina as invenções do engenho).

Para Vico, o método científico resulta da compreensão humana, razão pela qual, as verdades são verossímeis e muitas delas escapem à demonstração lógica, envolvendo-se por mitos, fábulas, alegorias e várias linguagens. Vinculado à filologia, seu conceito de tempo histórico guiava-se pela circularidade mítica. Sua obra Scienza Nuova tornava mais espessa uma constelação de “filósofos da história” cujo princípio de vigência remonta, no mínimo, a Maquiavel.

O conceito de “filosofia da história” é devido a François-Marie Arouet, o Voltaire (1694-1778), mas pode retroceder ainda mais, encontrando Santo Agostinho, Heródoto e alguns trechos bíblicos do Primeiro Testamento. Neste caso, Waldir Cauvilla (2007) infere que o seguinte fragmento estatuiria um sentido de permanência, a ser levado em conta:

Não há nada novo debaixo do sol, e ninguém pode dizer – Eis, aqui está uma coisa nova, porque ela já existe nos séculos que passaram antes de nós. Não há memória das coisas antigas, mas também não haverá memória das coisas que hão de suceder depois de nós entre aqueles que viverão mais tarde (Livro do Eclesiastes, 1, 4,8-11).

As mudanças advertidas na cultura e na sociedade ocidentais sustentaram-se ainda na ética natural de Hugo Grotius (1583-1645). O filósofo holandês ganhou destaque por sua posição favorável aos direitos da Espanha, de Portugal e do Reino Unido sobre o comércio nos mares. Conforme William Walsh (1978, p. 13), durante a 16ª e a 17ª centúrias, a segunda escolástica, dos jesuítas espanhóis e portugueses, dava corpo ao conjunto filosófico da história, declarado em forma subliminar desde a Antigüidade greco-romana à “ciência política” de Maquiavel e a Francesco Guicciardini (1483-1540).

Já os pensadores ingleses Thomas Hobbes (1588-1679) e Isaac Newton (1643-1727) harmonizavam a fé religiosa com perspectivas mecânicas quanto ao funcionamento do universo. Suas visões conciliadoras não teriam o respaldo de projetos materialistas que se desenrolariam do século XVIII ao XIX, principalmente, com germânicos e anglo-saxões. Entre os últimos, George Berkeley (1685-1753) e David Hume (1711-1778) opuseram o discurso filosófico-científico às variações imaginativas.

Berkeley duvidava da existência em absoluto de tempo e espaço, referenciais cuja percepção situou na consciência. Hume assinalaria os distintos conteúdos perceptivos, as imagens produzidas em seqüências e os nexos entre causas e efeitos dos fenômenos, a constituírem o fluxo constante das operações mentais, ao qual, por equívoco, teriam dado o

nome de “espírito”. A partir dos empiristas, o eixo da filosofia européia, ora concentrado na Inglaterra, deslizava à França e à Alemanha.

A reflexão histórica de cunho filosófico ampliou-se com o enciclopedista Charles- Louis de Secondant, o barão de Montesquieu (1689-1755). As razões do iluminismo espraiavam-se a diferentes universos, favorecendo a diversificação de teorias nostálgicas, pedagógicas e utópicas. Na área da história, os críticos da segunda metade do século XVII haviam recomendado o estudo das cartas para fins de prova, mas agora, a reorganização das leis e do direito passava a situar o documento em primeiro plano.

Registros mantidos por instituições setecentistas apontam ao declínio dos monumentos e ao pleno ascenso dos documentos. A partir do século XVIII, a categoria biográfica da “felicidade”, existente nos antigos prodígios, se convertia em noção pessoal e privada. Junto aos monumentos, às inscrições e às estátuas, a biografia sinalizava ao desejo de memória das personalidades históricas. “As vidas exemplares dos homens ilustres, dos heróis e dos príncipes, concederam-lhes uma espécie de imortalidade literária e pedagógica para a edificação dos séculos futuros” (GUSDORF, p. 10, 1991).

Voltaire escreveu A história de Charles XII da Suécia (1734); O Século de Luís XIV (1752); Ensaio sobre a história geral, os costumes e o espírito das nações desde Carlos

Magno até nossos dias (1756). O maluco e infeliz rei sueco era contraposto a seu glorioso

adversário Pedro, o Grande. Se o biógrafo francês não enaltecia o heroísmo, “achava que as grandes inteligências permitiam reconhecer as surpresas da história, esses acontecimentos imprevisíveis e tão essenciais num campo onde necessariamente não acontece o que é verossímil” (LORIGA, 1998, p. 229-230).

A prática dos historiadores tocava nos frágeis limites da biografia:

Dos gregos do século V a. C. ao Dicionário histórico e crítico de Bayle no final do século XVII, passando pelos cumes de Suetônio, Plutarco, Eginardo, Joinville, pelos vales das hagiografias medievais e pelas encostas cada vez mais escarpadas da erudição nascente, com Bolland e Papebroch, o panorama mudou, mas conservaram- se em grande medida os artifícios retóricos, as preocupações de louvor e o caráter literário das construções, indicando quase sempre a ausência ou, pelo menos, o lugar secundário ocupado pelo aspecto referencial da narrativa, que fará a fortuna da historiografia posterior, propriamente moderna (NEVES, 2002).

O espaço biográfico tirava benefícios das diretrizes fornecidas pela erudição bolandista e maurista. As Confissões de Agostinho pesaram sobre a obra de Pascal e seu vigor faria sentir-se nas Confessions de Rousseau. Adequadas aos vetores predominantes na ciência,

as formas biográficas integrariam o clássico paradigma de Madelénat (1983) que, assim, não as distingue do gênero biográfico em si.48

A redescoberta da objetividade analítica, presente nas Bioi plutarqueanas, veio fortalecer as narrativas de teor biográfico: “quase podemos afirmar que o Renascimento durou até o século XVIII. Isso é verdadeiro pelo menos no que toca ao fascínio pelos heróis de Plutarco, que contaminou de Carlos XII a Benjamin Franklin, de Rousseau a Madame Roland” (BURKE, p. 94, 1997).

A França continuou a receber com interesse as séries biográficas de Brantôme, porém: O fosso entre as ‘Biografias’ eruditas e as ‘Vidas’ edificantes se amplia. As primeiras são críticas, menos numerosas, e tratam de santos mais antigos, quer dizer, são ao mesmo tempo relativas a uma pureza primitiva do verdadeiro e a um privilégio elitista do saber. As segundas, como milagres de ‘Flores dos santos’ populares, são muito difundidas e consagradas a contemporâneos mortos ‘em odor de santidade’ (CERTEAU, 2002, p. 268).

A nova conjuntura requeria uma imagem de “homem público”, a ganhar vulto em seu posto de cidadão bem-sucedido. A criatividade dos narradores dirigiu-se ao relato biográfico de caráter profissional, inserido na biobibliografia, no dicionário histórico, no discurso cerimonial e no elogio, formas que se autenticavam quando reconhecidas em existências concretas. Os avanços científicos engrossavam as circunstâncias que dariam centralidade ao ser humano no conjunto dos eventos sociais (CARINO, p. 153-182, 1999).

Recém a cultura inglesa se tornava conhecida no mundo. As biografias conquistavam o público-leitor; nem poderiam lembrar as mesmas narrativas que, durante o século XVII, ficaram ilhadas no Reino Unido. Em tal circunstância, distinguiram-se publicações: do bispo de Salisbury, Gilbert Burnet (1643-1715); de Izaak Walton (1593-1683), John Aubrey (1626- 1697) e Margareth Cavendish (1624-1674).

O jurista inglês Roger North (1653–1734) produziria vultososo trabalho sobre três dos seus irmãos. Editadas postumamente sob o título The Lives of the Norths, as biografias abarcam o primeiro ensaio crítico-teórico sobre a narrativa biográfica, definindo suas ligações com a história e tornando patente seu ideal de objetividade. Além de tudo, a obra se apresenta sedutora, no formato de uma deleitável narrativa (MADELÉNAT, 1983, p. 48).

Não seria contemporânea, pois, a atenção suscitada pelas biografias e gêneros a ela aproximados. Tampouco se revela inédito um procedimento como este – de Madelénat a

48 Ao estabelecer essa linha histórica, sobre a qual se haveria estendido a narrativa biográfica, Madelénat procede

reescrever Lejeune – para definir biografia: “narrativa em prosa, escrita e também oral, efetivada por um narrador, com foco numa personalidade histórica, realçando a vida desse indivíduo, bem como o prolongamento do seu caráter ao longo da existência” (MADELÉNAT, 1983, p. 18).49

Essas linhas mestras conduziram a biografia, de modalidade discursiva, para um gênero específico.50 O gênero biográfico se instituiu através da forma (narração, prosa); do plano narrativo (foco em determinada mundivisão e interioridade); do assunto (personagem fundamentada num ser histórico). A última categoria define a natureza de seus textos, como referenciais, e não ficcionais: “narrativa, narrador, histórico, indicam o pertencimento comum à literatura e à história, com a necessária discrição que exigem a complexidade do problema e as polêmicas que suscitou” (NEVES, 2002).

A história se fazia processo e a filosofia tentava mascarar o fingimento, próprio às obras ficcionais: “de Bacon a Vaihinger entende-se a ficção como se ela tratasse de dissimular o que é, do que deriva uma das tarefas principais da teoria do conhecimento: cada vez mais mostrar esta tendência” (ISER, 1983, p. 398). O mundo real dava acesso ao inventário de almas gentis nunca dantes imaginadas. Navegar haveria de valer a pena, ao menos, para bucaneiros, corsários e piratas; franceses, holandeses ou ingleses.