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Magistra Vitae: a história, as memórias e a retórica

1.3 METAMORFOSE: PÁGINAS E VIDAS

1.3.3 Magistra Vitae: a história, as memórias e a retórica

Tanto historiare quanto figurare significam ‘representar em imagens’, ‘ilustrar’; a primeira, no entanto, apenas no sentido literal, mas a segunda também no sentido de ‘interpretar alegoricamente’.

ERICH AUERBACH Figura

Até o ponto em que as intermediações doxográficas e outros registros permitem deduzir, os estudos poéticos, históricos e retóricos desenvolveram-se junto ao clássico embate da filosofia com a sofística. Representante da última zona discursiva, o encômio à moda Isócrates não deixou de ter popularidade na era helenista, fornecendo a noção de cronologia para os estudos históricos. Mais tarde, a retórica latina estabeleceria que, ao lado das ações de pessoas dignas, os oradores ressaltassem tanto seus caracteres quanto as passagens memoráveis em suas existências (HENGST, 1981, p. 44).

Referir-se a detalhes insignificantes – (In) Dignum Memoratu – seria inconciliável com a operação da Elocutio, dificultando entender uma história contada. O vocábulo

Monumentum indica que sua raiz indo-européia – Men – exprimia uma das funções essenciais

do espírito: a memória (Memini). Entre outras acepções, Monere pode ser traduzido por “fazer recordar”, ato que se afigurava como retrospectivo desde que a narrativa mostrou ser um espaço primordial à veiculação da memória:

Representa a fonte do contar, logo, a origem da narração, exposição primitivamente oral de um sujeito para um grupo de ouvintes, com o qual compartilha interesses e expectativas. Ulisses ocupa o lugar do paradigma, a partir do qual filósofos distantes no tempo e no espaço, como Platão e Walter Benjamin, refletem. Mas converte-se, ele mesmo, num profissional, metamorfoseando-se no rapsodo que se dirige aos ouvintes, esperando captar sua simpatia por referir-se a episódios com os quais aqueles guardam afinidade (ZILBERMAN, p. 130, 2006b).

28 Expressão devedora da seguinte trilogia, em seu conjunto, intitulada conforme o primeiro volume: COSTA

LIMA, Luiz. O controle do imaginário: razão e imaginação nos tempos modernos (1984); Sociedade e

A palavra “monumento” significa tudo que evoque o passado, inclusive atestamentos visuais e auriculares, a marcarem presença nos métodos históricos, desde o privilégio a eles conferido por Heródoto (c. 485-420 a.C.). A prioridade recebida pelos testemunhos, vividos ou colhidos diretamente, não se verificou na escrita, onde suas recolhas foram exíguas. A transmissão pela oralidade ainda se pronunciava em Tucídides (c. 460-c.400 a.C.).

Mesmo ao não dispor de arquivos, e ao trabalhar sobre diminuta base epigráfica, esse historiador grego libertou-se da tradição mítica, em sua história sobre a guerra do Peloponeso. Narrando-a com evidente domínio argumentativo, ele requeria o “meio de fixação dos acontecimentos, fazendo da imutabilidade do escrito uma garantia de fidelidade (bem ao contrário de Platão). Inaugura, assim, uma política da memória, e delimita os domínios de um novo saber histórico” (SMOLKA, p. 179, 2000).

Heródoto e Tucídides localizavam-se justamente no ponto em que a tecnologia de comunicação enfrentava mudanças, quer dizer, no trânsito da vocalidade à escrita. O senso de classe do último, aristocrata, fez com que repudiasse as escritas de caráter biográfico. Passados mais de dois séculos, Políbio (203/201 a.C-120 a.C)

insistia na necessidade de distinguir entre biografia e história. Porque estava convencido de que o objetivo da história não se reduzia à monografia, mas visava à síntese geral, considerava que os historiadores deviam evitar a dramatização da narrativa (procedimento próprio do teatro trágico) e empenhar-se em estabelecer e transmitir a verdade. Nesse sentido, a antonímia assinalada pela historiografia grega ultrapassava a questão do gênero biográfico e se inseria num debate mais amplo, no qual os valores estilísticos de simplicidade e clareza de que Políbio se tinha feito defensor se opunham ao ideal poético perseguido pelo sofista Górgias e por outros autores (LORIGA, 1998, p. 228).

Muitos discursos históricos demonstravam elevado grau de clareza e ordem, contudo, visavam conferir eficiência dramática ao acontecimento, já que desempenhavam a função retórica da Illustratis e serviam para explicar pensamentos morais ou políticos. Tais produções não desprezariam a história pessoal, “como na caracterização de Catilina por Salústio e, sobretudo, na de Tibério por Tácito. Mas aqui está o limite. Moralismo e retórica são incompatíveis com a compreensão da realidade” (AUERBACH, 1971, p. 34-35).

Os relatos memorialísticos identificavam-se como um gênero poético-retórico desde o princípio da era romana: seus caracteres específicos já radicavam nos Comentários do imperador Júlio César (séc. II-I a.C.). Assim como as Vidas e os gêneros poéticos, as memórias foram seduzidas pelo briografismo, quando a honraria e o triunfo eram “o máximo que um simples mortal poderia desejar. Tudo isso converge para a convicção de que o

passado é o fundamento do presente e do futuro. É a crença, em última análise, de que a vida só se torna perfeita através da morte” (DALPIAN, p. 266, 2000).

As memórias romanas uniam o sentido nacional à publicidade e à historicidade, próprias da consciência biográfica. Flávio Josefo (séc. I d.C.) efetua um compósito de memórias políticas, história militar, auto-recomendação e apologia moral ou religiosa em

Autobiografia, pioneiro testemunho do influxo greco-romano sobre a cultura judaica. Se a

palavra “autobiografia” era desconhecida, o título não deve proceder do escritor, entretanto, seu trabalho se adequaria ao conceito romano de Vita, caso ele não se referisse à própria “conduta de vida” (MISCH, 1950, p. 315; SCHEINER, 2001).

Outra narrativa seria impropriamente rotulada como autobiografia – Sobre os meus

próprios livros – de Galeno (129-c. 200). Nascido em Pérgamo, esse intelectual expressou em

grego suas reflexões filosóficas, lógicas e retóricas, além de escrever a respeito de si mesmo e de ingressar nos estudos poéticos. Os tons autobigráficos de seu texto, antes destacado, confirmam que, na era imperial de Roma, o ser humano passou a entender-se como responsável pela própria sorte, fato que daria prestígio às Vidas (SANCHEZ MARÍN, 1992).

Muitas narrativas, como a de Galeno, não se furtaram às abordagens da experiência, mas continuariam no domínio público-retórico até os tempos medievais. Nesse trajeto, a Ars

Memoriae teria consistido em arte tópica: o “artista” grego ou latino recapitulava um grupo de

topoi ou loci que, na retórica, eram bem familiares: a casa do memorialista ou o fórum.

Realizando sua força imaginativa, “ele testemunha em seqüência ordenada os conteúdos isolados da memória, depois de primeiro os ter transformado em ‘imagens’ (grego,

phantasmata, latim, imagines), se já não o forem por natureza” (WEINRICH, 2001, p. 31).

O espaço biográfico, e nele, o gênero memorialístico, punham-se ao lado de uma história que buscava relatar o passado, juntando escritos e os convertendo em testemunhos. De sua parte, a razão lógico-analítica pareceu vencer uma luta desenvolvida a partir do século V a.C. e que teve como principais expoentes, num lado da arena, Isócrates e seus encômios; no outro, Platão com seus diálogos confessionais. Na primeira centúria depois de Cristo, a retórica se incorporou das composições letradas em geral, finalmente, absorveria a poética.

Formas autobiográficas e biográficas vinham concedendo amplitude à vida íntima, embora não deixassem de sublinhar os exemplos e as virtudes. Ao mesmo tempo, sobrevivia uma noção antiga de figura, a qual se transferiu das escolas de oratória e dos mitos zombeteiros de Ovídio para outros domínios: “historia ou littera é o sentido literal ou o

acontecimento relatado; figura é o próprio significado literal ou acontecimento referido ao preenchimento nele oculto, e este preenchimento é veritas, de modo que figura torna-se o termo do meio entre littera-historia e veritas” (AUERBACH, 1997b, p. 40-41).

O timbre laudatório dos textos biográficos e poéticos, de gregos ou de romanos, pode remontar ao heroísmo cantado pelas epopéias helênicas. Doutra maneira, os brios, as glórias e os elogios afincam-se no cunho apologético das frações textuais reunidas pela biodoxografia. A identificação de tais nexos longe está de qualquer demanda por uma fonte originária, concentrando-se na tentativa de verificar possíveis amarrações entre os gêneros antigos e a ficção narrativa que, até o presente momento, ainda não cintila nesta pesquisa.

O verossímil resultava em noções aceitas pelo senso comum; naquilo que não extrapolasse as convenções fixadas quanto ao Decorum. Uma exceção às imitações de homens acima da média ficou por conta do Novo Testamento, ao tratar dos pescadores, da samaritana, dum fariseu, duma adúltera. Habitualmente, figuras extraídas de circunstâncias triviais, e postas frente a Jesus, revelavam suas tragicidades.

As novas escrituras mostrariam autênticas noções de ordem, época ou estados interiores. Conceitos abstratos, como a justiça, a morte, o pecado etc, já não significavam apenas um acontecimento, uma qualidade, apresentando-se como estratégias que conduziriam à mudança interna e histórica. Porém, “o caminho dessa transformação leva para fora da história, para os tempos finais ou para a sempiternidade, ou seja, para cima [...] o essencial ainda é o seguinte: as camadas profundas, que nos observadores antigos eram imóveis, entram em movimento” (AUERBACH, 1971, p. 38-39).

Os retóricos não puderam classificar os textos evangélicos; seu objeto via-se inadequado a qualquer gênero que eles discerniam. Por outro lado, na clássica era grega, e ao avesso das escrituras com foco na vida e morte do filho de um carpinteiro, inscrevia-se o deus das máscaras e das metamorfoses. Na poesia, Diónisos “não fala mais através de forças, mas como herói épico, quase com a linguagem de Homero” (NIETZSCHE, 2006, p. 62-63).

Os Evangelhos apócrifos justapõem as escrituras apostólicas ao feixe teofrástico, abalando uma estrutura que granjeria prestígio desde que Eduard Zeller publicasse A History

of Greek Philosophy… (1881). A doxografia dependeu de Teofrasto, “espelho das opiniões

históricas de Aristóteles, e se estas situam o pensamento primitivo num contexto de problemas que são aristotélicos, mas não pré-socráticos, então a tradição não pode ser histórica” (HAVELOCK, 1996a, p. 13).

Também na 19ª centúria, Hermann Diels editaria Doxographi Graeci, espécie doxográfica que dava menos relevo aos testemunhos do que às opiniões e teses, aos dizeres e sistemas. Sua utilização adentra na modernidade nietzscheana, pois não se pode constatar

até que ponto não há fatos, mas apenas interpretações, e interpretações das interpretações, Nietzsche sendo, aliás, como se sabe, exatamente contemporâneo ao momento da filosofia alemã no qual se constitui o objeto doxográfico, e tão atento ao palimpsesto que é o maior, senão o único, comentador de Diógenes Laércio. Assim, com a doxografia, o problema da transmissão se apresenta como um problema hermenêutico, uma questão de sentido. E o sentido não cessa de oscilar entre insuficiente e demasiado (CASSIN, 1999, p. 28-29).

No século XX, Roland Barthes inverteria o sentido da mímesis platônica. Do contrário, Erich Auerbach não teria modificado a mimese aristotélica, a qual se fundamentara no verossímil, pautado por um “sentido natural (eikos, o possível), enquanto nos poéticos modernos, ela se tornou a verossimilhança em relação ao sentido natural (doxa, a opinião). A reinterpretação de Aristóteles era indispensável para promover uma poética anti-referencial que pudesse apoiar-se na dele” (COMPAGNON, 2006, p. 102).

A mimese deslizaria — duma referencialidade à natureza — para a cultura ou a ideologia, com o estruturalismo e o pós-estruturalismo. Nessa moldura, o doxógrafo ideal pouco se aparta do copista ideal: face a face com a idéia de origem e na busca da neutralidade, ambos terminam por apagar os intermediários. Conforme Jacques Derrida (1973), a escrita deveria reinvestir-se do papel de intermediária entre leitor e língua falada, pois a “metafísica logocêntrica” entendeu o lógos como fonte do verdadeiro, lócus onde o alfabeto não residiria.

Ainda de acordo com as idéias derridianas, o saber viria utilizando a escrita fonética de forma recalcada, razão por que vários planos de pensamento depositaram suas confianças na enunciação da verdade e na morte da letra. Por sua vez, ao desempenhar um papel da psique humana, o inferno personifica-se no mito grego de Hades, o vencido pelos defuntos. Isso acontece por meio duma identificação com os mortos, em consciente desvio perversivo, ou através de inconscientes tentativas que visem recalcá-los (DIEL, 1991, p. 42).

Alegorias de tal espécie dependiam de interpretações figurativas, do mesmo jeito, a palavra Figurare coube a fatos do Primeiro Testamento, entendido como prefiguração da Boa Nova. Historia e Littera não se distinguiam, mas a última resvalaria ao conceito de literatura. Suas histórias permitem vislumbrar copioso debate sobre a originalidade do estilo, a qual parece “favorecer mais o caráter arbitrário da narração que a fidelidade estrita à reminiscência ou o caráter documental do narrado” (MIRANDA, 1992, p. 30).

Os antigos já compreendiam que recordar pressupõe a oportunidade, o imaginário e certa habilidade no arranjo das composições:

E o mesmo acontece com respeito à antecipação do futuro. Enquanto é ativa, a antecipação é um imaginar que dá significado ao futuro, que constrói o futuro como significativo para o sujeito, em algum aspecto particular, e como aquilo para o qual pode traçar um percurso. A antecipação é a construção imaginativa de futuros possíveis (LARROSA, 2004, p. 16).

Transformações ocorridas na cultura ocidental imprimiram seus traços ao primeiro momento dos estudos históricos, o qual se prolongava à era cristã. Os latinos inventaram o conceito de testemunho e a lógica da história, fundada na noção de verdade, mas a produção histórica não existiria fora dos textos escritos, num liame a se consolidar durante os medievos. O argumento de que a escrita, grafia (Gráphein) compõe um dos termos basilares à tese ora desenvolvida, faz compreender, assim espero, a formatação introdutória do presente capítulo.

Ademais, o autor e a gênese de um texto envolvem assuntos pertinentes à biografia, enquanto as recepções da obra publicada convocam os fundamentos da história total. Daí que Antoine Compagnon (2006, p. 126) sugerisse a reabilitação da mimese, através duma terceira leitura da Poética de Aristóteles. Como as palavras não ficam presas à língua, além de serem protéicas, revelam que a esfera das antigas letras compartilhava suas formas orais ou manuscritas, fazendo-se, ela própria, metamorfose.

2 MESTRA DA VIDA: FICÇÕES NO PURGATÓRIO

Para navegar por águas melhores,

minha poesia agora,

deixa para trás aquele mar cruel

E segue para o segundo reino

onde a alma humana se purifica

e se torna digna de elevar-se ao céu

DANTE ALIGHIERI

Comédia