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Preâmbulo de ouro: novas vidas, imagens, novelas

2.3 MIMESE: LIVROS & DOCUMENTOS

2.3.3 Preâmbulo de ouro: novas vidas, imagens, novelas

Mas como puderam os escritores do Renascimento ignorar a individualidade dessa maneira? O problema se assemelha ao uso da mesma matriz de madeira para imprimir retratos de indivíduos diferentes em livros impressos nos séculos XV e XVI.

PETER BURKE

A invenção da biografia e o individualismo renascentista

Na extensão do século XVI, a remodelagem dos protagonistas narrativos alcançaria, com êxito similar, a biografia e o cosmos ficcional. Giovio, assim, dedicou-se ao papa Leão X

(1548) e Giovanni Battista Pigna dirigiu o foco de uma Vita ao poeta Ludovico Ariosto (1554). O arquiteto Filippo Brunelleschi veio integrar um elenco de artistas cujas vidas fundamentaram os trabalhos de lições moralizantes, desenvolvidos pelo pintor Giorgio Vasari (1511-1574).

Também arquiteto, esse artista narra histórias envolvendo Piero della Francesca, como se fossem reais, mas que parafraseiam anedotas sobre:

antigos pintores gregos contadas por Plínio em sua História natural. A história sobre como o cardeal Granville ditava simultaneamente para diversos secretários é o eco de uma anedota que tanto Plínio quanto Plutarco escreveram sobre Júlio César. Os historiadores se acostumaram ao fato de escritores medievais usarem topoi dessa natureza, tal como acontece no famoso caso da vida de Carlos Magno por Einhard, que adorna o biografado com as características heróicas de vários imperadores romanos, inclusive tomando de empréstimo expressões como corpore fuit amplo

ataque robusto (BURKE, p. 83, 1997).

O pintor-biógrafo proporcionou a única nota sobre Oderisi da Gubbio, iluminador que, transformado em personagem, representa a futilidade da glória na Divina comédia. Muitas vezes, o autor dessa obra sui generis converte-se em fonte exclusiva sobre as pessoas aí mencionadas, e das quais existem apenas pinturas. Quando discorre sobre opositores de César, a exemplo do general Catão, “Dante menospreza inteiramente as relações desses homens uns com os outros, interpreta cada figura individualmente, e lhe atribui o lugar que lhe cabe com vistas à finalidade do mundo” (AUERBACH, 1997a, p. 122).

Vasari adaptou formas que antes utilizara o antigo filósofo Diógenes Laércio, em suas biodoxografias, e como aquele, Ascanio Condivi assinava uma narrativa sobre Miguel Ângelo

Buonarroti (1553). Ao melhorarem suas posições na sociedade, os artífices, cortesãos e

cavaleiros ganhavam novo status nas escritas de vida, tomando lugar às figuras de mercadores e de humanistas. Expandiam-se as representações biográficas, em meio a textos centrados na matriarca ítalo-francesa Catarina de Médici; nos humanistas franceses Guillaume Budé e Petrus Ramus; no artista belga Lambert Lombard.

As façanhas dos imperadores de Roma ofereceram matéria-prima à Historia imperial y

cesárea, do cronista espanhol Pero Mexia. O compositor flamenco Josquin Desprez integrava

um relato do humanista suíço Henricus Glareanus (1488-1563), quando também avultavam

La vie de Pierre Ronsard por Claude Binet (1586) e a Vida de Calvino, pelo teólogo

protestante Theodore Beza (SCHAFF, 1979, p. 811-827). Os modelos de Plutarco e Suetônio desfrutavam de contínuo movimento receptivo e inspiraram os “Grandes capitães”, do soldado francês Pierre de Brantôme (1540-1614).

Desde o final do século XV, as biografias dos escritores eram publicadas como preâmbulos de seus livros. Edições dos antigos poetas Estácio, Plauto, Claudiano e Horácio precediam-se das narrações de suas vidas, realizadas pelo humanista florentino Pietro Crinito, e que antes haviam integrado uma coleção (1508). Por meio idêntico, as narrativas biográficas de São Jerônimo e Erasmo valeram como prefácios e as Ouevres, ou Opere, de Calvino, recebiam o acréscimo da versão francesa de sua Vida ou da tradução desse texto ao latim.

No mesmo rumo, a Vita di Boccaccio, por Francesco Sansovino, resultaria de encomenda para o Decameron a ser editado em 1546. A narrativa sobre o poeta Ariosto, de Giovanni Pigna, seria incluída junto ao Orlando furioso, a partir do ano 1556. Assim também, desde 1583, o construto biográfico de Bernardino Marliani —Baldessar Castiglione — passaria a fazer parte de um conhecido texto do escritor biografado: O cortesão.

Presente nas Vidas de artistas, certa hibridez do retrato com a biografia teve por modelo Imagines, de Varrão. Segundo Peter Burke (p. 87, 1991), tornava-se uma prática bastante trivial que os textos dramáticos e poéticos trouxessem as imagens de seus autores. Elas eram dispostas, “geralmente, por frontispício, como nos casos de Ariosto (1532), Erasmo (1533), Petrarca (1536), Ronsard (1552), Vasari (1568) e Shakespeare (1623).”

O bardo inglês e o ficcionista castelhano Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616) situam-se na arte “maneirista”, que vingou a partir da década de 1520. Seus adeptos buscavam maior expressão à subjetividade, no bojo de renovado interesse pelas vidas heróicas e por uma cavalaria nem tão forte quanto a medieval. O maneirismo vincula-se à realidade política da Europa, conforme as descrições de Maquiavel n’O Príncipe (1532) e do cronista espanhol Luis de Avila y Zuñiga, em Comentário de la guerra de Alemania por Carlos V (1548).

As novelas de cavalaria experimentavam grande sucesso junto a espanhóis e franceses, enquanto as ficções narrativas da França e da Itália seguiam fornecendo seus protótipos às demais regiões européias. Ainda vigoravam reescritas poéticas, tais como Orlando furioso (1516), texto no qual Ludovico Ariosto (1474-1533) valia-se de obra homônima, do já referido Matteo Boiardo. O assinalamento do intertexto aqui opera no sentido de revelar o discurso entre ficções e, assim, “mostra a preocupação de impedir que uma ficção, que não se evidencia por si mesma, se qualifique como realidade” (ISER, 1983, p. 399).

Apresentando os discursos ficcionais de maneira explícita ou implícita, os domínios da poética estendiam sua magnitude à Espanha quinhentista. Com motivos de sobra para qualificarem o período como Siglo de Oro, seus artistas tomavam a linha dianteira no mapa

cultural do Ocidente. Mesmo ao tentarem se explicar, a princípio, para fugirem a seu estatuto ficcional, as obras literárias espanholas davam-se a conhecer sob uma aparência de realidade, da qual se valiam para que operassem como transcendentes ao real.

Entre os fios que teceram o extenso “Século de Ouro”, Los quatro libros de Amadís de

Gaula centram-se numa única personagem, à moda das escritas de vida. O anônimo texto

português circulava desde o século XIV, mas uma versão definitiva dessas novelas seria fixada em 1508 pelo escritor castelhano Rodríguez de Montalvo. A consistir no primeiro ciclo espanhol de cavalaria, originou as séries dos Amadis, imortalizados por Feliciano da Silva.

O protagonista de Don Palmerín de Oliva (1511) seria reproduzido à exaustão, como em Don Palmerín da Inglaterra (1547) e nos inúmeros cavaleiros, andantes ou não, cujas aventuras correriam mundo.43 Muitas vezes, os autores de tantos Palmerines não explicitavam suas fundamentações, mascarando o ato de fingir, traço básico a uma obra ficcional. Seguindo as formulações de Iser (1983, p. 398), “a renúncia ao desnudamento não resulta necessariamente de uma intenção de fraude; ele não se realiza porque do contrário seria afetado o valor da explicação ou da fundamentação.”

Devedor dos elementos cavaleirescos e de temas trágicos ou burlescos à poética italiana, o subgênero da novela sentimental viu-se representado na Península Ibérica por Diego San Pedro. Em sua obra Cárcel de amor (1492), o protagonista Leriano, encarcerado, sofre de amores pela princesa Laureola. Essa mistura do biográfico e do ficcional serviria como importante fundamento dialógico para um texto atribuído a Fernando Rojas, original à época, por misturar aspectos do drama e da ficção narrativa: La Celestina (1499).

Subtitulada como “tragicomedia de Calisto y Melibea”, o título da Celestina destaca o nome da alcoviteira que intercede para a união do casal de personagens que lhe intitula, recorrendo em especial ao intertexto com Petrarca. Sua vasta intertextualidade é fixada, entre demais nomes, com a Commedia Poliscena de Bruni; Historia Duobus Amantibus, do cardeal Piccolomini; Elegia di madonna Fiammeta, de Boccaccio. A remissão às novelas de cavalaria ocorre no plano simbólico do rapaz que, por acaso, encontra uma bela moça.44

A história toma rumos distintos, quando centrada na referência à burguesia urbana espanhola, e matizada por uma finalidade moralizante, no sentido de reprimir as seduções

43 Necessário inferir que o século XIV já registrava os antecedentes da cavalaria espanhola, em notório diálogo

com a poética francesa: a Gran conquista de Ultramar e o Libro del Caballero Cifar.

44 A obra apresentou, fundamentalmente, duas versões: a Comédia (1499, 16 atos) e a Tragicomédia (1502, 21 atos).

materiais. A paródia ao amor cortês dirigia-se às personagens das classes altas, enquanto a cobiça devia atingir outros estratos sociais. Os motivos da avareza, do egoísmo e do individualismo somam-se aos temas do amor proibido, da corrupção e das lutas entre opostos, representadas especialmente pelas contendas entre cristãos novos e judeus conversos.

Todas essas temáticas não equivalem ao fictício apresentado pela híbrida tragicomédia

La Celestina. Tampouco as mudanças nas relações sociais e os múltiplos espaços de sua

cidade arquetípica:

quanto menos o sentido é este fundo, tanto menos o fictício é capaz de sê-lo. Se o sentido é a operação semântica que se realiza entre o texto, como configuração fictícia de um imaginário, e seu receptor, então o fictício, como ato negador do imaginário, é apenas a condição para a reformulação das realidades postas e daí transgredidas no texto. Como, no entanto, o imaginário no texto literário se concretiza e se torna eficaz apenas através do fictício, ele precisa introduzir-se na língua (ISER, 1983, p. 412).

A relação fictício-imaginário-real teria continuidade com o subgênero picaresco que, na Espanha, fez jus à palavra feminina da qual seu idioma se vale para também denominá-lo. A picaresca espanhola inaugurou-se com La lozana andaluza (1528), de Francisco Delicado. A novela pícara teve sua paradigmática representante numa obra de autoria desconhecida, mas cujos título e conteúdo utilizaram a simulação auto(biográfica) que se tornaria característica desse tipo narrativo: La vida de Lazarillo de Tormes y de sus fortunas y adversidades (1554).

A novelística sentimental ainda se fazia representar por Juan de Flores, com a Historia

de Grisel y Mirabella e o Breve tratado de Grimalte y Gradisa, ambos os livros, publicados

ao redor de 1519. Sem autoria conhecida, La Cuestión de amor (1513) enfoca Flamiano de Valência, o qual não se vê correspondido em sua paixão pela jovem Belisena. O protagonista depois morre na guerra contra a monarquia francesa, quando então serve ao rei Carlos I.

Demais povos igualmente contavam com seus “livros de ouro”, a exemplo dos franceses. Assim, o pensamento do humanista italiano Pico della Mirandola, com influxo similar ao que desempenhava sobre Erasmo de Roterdã, veio ao encontro de François Rabelais (c. 1483-1553). Esse atentou à potencialidade do ser humano em transformar-se constantemente; suas narrativas davam novo sentido a perspectivas carnavalescas ou pitorescas que lhe antecederam, revelando a face grotesca do Renascimento (BAKHTIN, 1999).

Os gigantes rabelaiseanos Gargantua e Pantagruel viveriam no país imaginário cujo nome proveio da Utopia imaginada por Thomas More em 1516. Aqueles protagonistas atacavam o individualismo da Modernidade; sem nomearem qualquer pessoa, suas zombarias eram voltadas contra os acadêmicos da Sorbonne, os burgueses, cavaleiros e monges.

Rabelais tematizou as descobertas, enquanto More dispusera, no centro de sua obra, o lusitano Rafael Hythlodaemus, sobrenome que se traduz como “narrador de histórias fantásticas”.

O autor tinha bebido nas fontes da oralidade para compor Pantagruel (1532). Além disso, recorreu ao antigo poeta Luciano, a sermões da Idade Média Tardia, a uma edição de contos populares e a notícias referentes às terras novas, de maneira que uma de suas personagens chama-se Pietre Álvares, enviando ao capitão-mor da armada portuguesa que navegou para o Brasil. A história escrita antes, mas publicada depois – Gargantua (1534) – já se afastou das tradições orais; resultava numa linguagem mais permeável ao academicismo.

Vivendo no quadro artístico do ocaso medieval, Rabelais procurava um caminho oposto à moldura cosmológica e religiosa de sua época. Não quer dizer que tivesse um enquadramento anticristão, mesmo ao expressar a vitória da natureza e a dinâmica da corporalidade. Isso vem fortalecer a provocação de Arnold Hauser e dos medievalistas ao estudo das inter-relações medievo-renascentistas, possibilitando questionar o freqüente argumento sobre a “origem” do indivíduo na moderna Renascença.

As criaturas rabelaiseanas gozaram de maior liberdade em seus desejos, instintos e reflexões do que aquelas imaginadas nos períodos antecedentes. Não constitui um caso de simples resolução, todavia, que se distingam como mais individuais em virtude dessas prerrogativas. O caráter unitário do cosmos imaginado pelo cristianismo, e a conservação figural do mundano “na sentença divina, conduziam para uma permanência muito forte e indestrutível do pessoal, o que pode ser demonstrado com maior nitidez em Dante, mas também aparece em outros casos; é justamente isto que agora está em perigo” (AUERBACH, 1971, p. 238).

A cultura popular e o humor, revelados pelo escritor francês, uniam-se a uma concepção do ser humano

libertada dos conceitos emoldurantes cristão e estamentais da Idade Média. Mas nem por isso ele cabe na moldura dos conceitos antigos; a Antigüidade significa para ele libertação e ampliação do horizonte, mas nunca uma nova limitação ou compromisso; nada está mais longe dele do que a antiga divisão dos gêneros estilísticos, que levou na Itália, já no seu tempo e logo mais, na França, ao purismo e ao ‘classicismo’. Para ele, não há medida estética; tudo casa com tudo (AUERBACH, 1971, p. 238-239).

Ocorre que a noção de haver um afastamento entre o cenário da mimese e as representações encenadas fazia com que os objetos se tornassem dignos de serem conhecidos ou questionados. Esse vinco, ao mesmo tempo em que “impossibilita a atuação prática sobre o mundo, admite pensar-se sobre ele, experimentar-se a si próprio nele. Mas, se só a distância

quanto às representações caracterizasse a mimesis, ela se confundiria com o esforço de interpretá-lo analiticamente” (COSTA LIMA, 1981, p. 231).

Enquanto a narrativa ficcional se incrementava, o fictício se constituía sob a forma de um ato negador do imaginário que, ao mesmo tempo, não impedia seu desvelamento na materialidade textual das obras de ficção. Daí que seja necessário examinar com maior cuidado tais conceitos, a fim de distinguir a presença do imaginário na poética latina. Neste trabalho, a idéia de hegemonia nem aguarda exemplos e vai convocando a imagem duma única matriz impressora, no duro esforço para reproduzir as mais diversas xilogravuras.