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2.2 MONUMENTO: RECORDAR E VIVER

2.2.2 O romance histórico e A divina comédia

Leitor, não se espante que eu evoque tantos autores. Porque só com tais exemplos podemos indicar o que consideramos construção da mais alta qualidade.

DANTE ALIGHIERI De como escrever em vernáculo

O decurso da Alta Idade Média (1050-1300) assistia à generalização do sistema de citações e ao crescimento das bibliotecas. Creditado aos árabes, o estudo das obras aristotélicas impulsionava futuras reorientações na filosofia do Ocidente. Conforme Óscar de La Cruz Palma (p. 21-28, 2002), a fé não-cristã também sofria intentos de ser combinada com a razão, por meio do sábio hebraico Maimônides (1135-1204) e do filósofo muçulmano Ibn Rochd, o Averroés (1126-1198).

Se a tonalidade narrativa estendeu-se por todas as temporalidades medievais, na zona latina, predominava uma concepção oratória. Esse fato deve-se ao continuado prestígio da retórica, bem como ao surgimento da “gaia-ciência”, técnica e arte de versificar segundo modelos que floresciam entre os anos de 1000 a 1200. Os vernáculos já ofereciam peças merecedoras de conservação por suas culturas, a partir dos trovadores occitanos e de suas canções, erroneamente, denominadas provençais.35

O lirismo occitano resultava de poemas amorosos muçulmanos e dos hinos em latim médio, a circularem no sudoeste da França. Destinado, em geral, a glorificar os nobres, penetraria nas composições galaico-portugueses de escárnio e maldizer, nas cantigas d’amor e d’amigo, no romance cortês. Entre sátiras e fabliaux, as Chansons de Geste iam girando em torno dos seguintes heróis: Roland; Alexandre; Carlos Magno e seus 12 pares; Garin de Monglane (Guilherme de Orange, núcleo da gesta Chanson de Guillaume).

35 A poesia dita provençal é, de fato, occitana, compreendendo a produção em “língua de oc” (lange d’oc), do Midi

francês e da região ao sul do rio Loire. Como nação sem Estado, a Occitânia abrange não só a Provença, mas também: Aquitânia, Auvérnia, Gasconha, Guyenne, Lemosim, Poitou, o Languedoc e o Delfinado. Considerando o fator linguístico-cultural, englobaria alguns vales alpinos na Itália e o Vale de Arã na Catalunha.

Um novo gênero inaugurou-se a partir do Romance de Alexandre, escrito em 1130 por Albéric de Pizançon. Não haveria qualquer motivo para lhe negar o qualificativo de romance e o epíteto de histórico, no sentido moderno desses termos. “Parece, pois, haver fundamento em pensar que os primeiros romances ocidentais eram romances históricos. Entretanto, o termo não aparece quase nunca entre os historiadores da literatura medieval” (LE GOFF, p. 166, 1972).

A lenda celta de Tristão e Isolda (séc. IX) confluía aos ciclos arturianos do Santo Graal. Além de circularem oralmente, as histórias do rei bretão eram referidas em alguns manuscritos, ajudando a gerar vários subciclos ficcionais e adaptações para diversos meios. Filmes, livros infantis, peças teatrais, telenovelas, até os dias de hoje, tomam por base a Artur, Gawain, Gareth, Lancelot, Percival, Tristão, dentre outros heróis, “cavaleiros da távola redonda”.36

Assim, Geoffrey de Monmouth convocou narrativas arturianas para sua Historia

Regum Britanniae [História dos reis da Bretanha]. No reino de Castela, o guerreiro Rodrigo

Díaz de Vivar transformava-se no herói nacional El Cid Campeador e no protagonista do

Cantar de Mio Cid. Esse texto anônimo, um fragmento do Cantar de Roncesvalles, mais uma

parte do cantar das Mocedades de Rodrigo, foi o pouco que restou da gesta espanhola (RIQUER, 1975).

As regiões hoje compreendidas pela Catalunha e pela França transmitiam sua herança poética por meio de influentes epopéias, como a Chanson de Roland. Em estilo elevado e rígida estrutura, os cantares heróicos podiam separar inflexivelmente o cotidiano e o sublime, mas não deixavam de ser populares. Junto a outras canções, farsas e estórias em prosa vernacular, integravam o repertório da oralidade, contrapondo-se ao idealismo das narrativas de cavalaria.

As crônicas históricas despontaram somente por volta de 1200, mas a epopéia heróica rememorava os acontecimentos reais, demonstrando a qualidade básica das ficções, quer dizer, uma relação triádica entre o real, o fictício e o imaginário. O último desses elementos

36 Mesmo imbricado às canções de gesta, o romance medieval apartou-se daquelas produções, as quais se valiam

do canto e tematizavam as façanhas do herói que encarnava uma ação coletiva. O romance destinava-se à leitura e à recitação, demonstrando caráter descritivo-narrativo. Cf. ZUMTHOR, 1993. Baseado nesse medievalista, Aguiar e Silva (1974, p. 9) esclarece: “o romance medievo encontra-se profundamente ligado à historiografia - na língua francesa, durante os séculos XII e XIII, os vocábulos roman e estoire são equivalentes -, com a qual partilha de importantes caracteres estruturais. Apareceram assim, nas literaturas européias da Idade Média, extensas composições romanescas, freqüentemente em verso, em que podemos discriminar duas grandes correntes: por um lado, o romance de cavalaria; por outro, o romance sentimental.”

vem a ser “experimentado antes de modo difuso, informe, fluido e sem um objeto de referência. Ele se manifesta em situações inesperadas e daí que de advento arbitrário, situações que ou se interrompem ou prosseguem noutras bem diversas” (ISER, 1983, p. 386).

O primeiro traço marcante da ficção residiria numa ausência de univocidade:

Por mais ignorantes que sejamos em ciências exatas, devemos saber que o objeto de uma ciência exata é tanto mais correto quanto mais unívoco for. Neste sentido, diremos que o objeto ficcional se desloca no antípoda do objeto científico (ou mesmo filosófico). Em termos menos técnicos, no ficcional, os elementos componentes são ao mesmo tempo signos — eleitos por sua materialidade, pela luminosidade ou obscuridade engendrada por sua expressão sonora — e expressão de desejo. Desejo entretanto não menos ambíguo: se, por um lado, não deixa de ser uma apetência de fato mantida pelo sujeito empírico que o inscreve. Apetência então de quem? Da possibilidade que o autor se permite atualizar sob o disfarce do fingimento (COSTA LIMA, 1987, p. 487).

Diversas lendas sedimentaram o mágico ambiente do romance cortês, que se ausentava dos papéis histórico-sociais, vistos em figuras épicas. Experiências perigosas tornavam-se a predestinação duma classe ascendente, representada por Chrétien de Troyes, mas o ciclo história-aventura-catástrofe durou aproximadamente um século, desenrolando-se entre cerca de 1140 e 1240. O cavaleiro não mais veria sentido em correr riscos; para tanto, havia leituras, e os atos de fingir provocavam “a repetição no texto da realidade vivencial, por esta repetição atribuindo uma configuração ao imaginário, pela qual a realidade repetida se transforma em signo e o imaginário, em efeito do que é assim referido” (ISER, 1983, p. 385-386).

Utilizada como um eficiente modo de reconciliar o ser humano com o mundo histórico, a aventura se transformava em refúgio. Obras evasivas, “de amor e armas”, passariam por reelaborações autorais, de que oferece testemunho a cadeia entre André le Chapelain, Guillaume de Lorris e Jean de Meung, resultando no Roman de la Rose. Das mencionadas transmissões, derivaram dois expoentes do lirismo biográfico da Occitânia:

Jaufre e Flamenca.

Como não existiam limites nacionais nos terrenos cobertos pelos idiomas originários do latim, suas obras, temáticas ou personagens migravam de uma para outra região; de um tempo a outro. Histórias, autores e personagens denotam uma ampla operação de hibridizações e reescrituras. Foi assim que as línguas vernaculares, ou romance, puderam-se afirmar e oferecer a público seus bens simbólicos, primeiramente, concentrados com maior destaque nas culturas do Languedócio, entre o Mediterrâneo e o Maciço Central, os Pirineus e a fronteira italiana.

Sob as máscaras da mimese, o realismo popular dos últimos tempos medievais revelou-se devedor de São Francisco. As atitudes franciscanas, bem como as posturas de outros movimentos mendicantes, agiram sobre a poesia religiosa que, durante a 13ª centúria, propagaria descrições intensamente dramáticas do martírio de Jesus. No cristianismo, as linguagens baixa e sublime vinham juntas “desde o princípio, especialmente na encarnação e na paixão de Cristo, nas quais se tornam realidade e são unidas, tanto a sublimitas quanto a

humilitas, ambas, no mais alto grau” (AUERBACH, 1971, p. 129).

A espiritualização ultrapassou a órbita eclesiástica durante a Alta Idade Média. Personagens das epopéias e dos ciclos lendários foram subsumidos pela interpretação figural, junto a outras formas, alegóricas e simbólicas. A Europa latina dispôs as figuras heróicas “como cruzados, ligou seus feitos de guerra com os caminhos da peregrinação e criou, a partir da morte de Roland em Ronceval, o paradoxo do guerreiro mártir, para o qual a morte em combate significa uma vitoriosa realização transcendente” (AUERBACH, 1997a, p. 35).

O trovadorismo aportou na corte sulina da Itália, entretanto, na península do Cor

Gentile, as confissões cifradas do hermético Trobor Clus occitano conduziram o vernáculo

florentino ao Dolce Stil Nuovo e a Dante Alighieri (1265-1321).37 Se Francisco de Assis estimulara os dramas italianos, o franco trovador Arnaut Daniel contribuiu para que Dante viesse trazer mais vida à poesia: em Fiore, esse autor dialoga com o Roman de la Rose, apontando para um espaço exterior ao texto, assim como ao tempo que lhe precede.

Por outro lado, não há evidências biográficas de que o amor do poeta de Florença com Beatrice Portinari algum dia se consumara, mas a presença da musa transpôs-se à Comédia, cujo epíteto de “divina” lhe seria dado pelo escritor franco-italiano Giovanni Boccaccio (1313-1375). Igualmente referido n’A divina comédia, São Bernardo pode enviar a um ser histórico, qual seja, ao fundador da Ordem dos Templários. A retórica do poema não exclui o acontecimento real, mas a personagem histórica aí opera como uma figura da verdade, menos importante do que seu preenchimento.

Da Antigüidade real à realidade textual da Comédia, migrara Virgilio; da contemporânea vida do escritor, procedeu a mulher que amoldaria sua protagonista. O antigo vate, a bem-amada e o Santo Bernardo transformam-se nos condutores biograficamente qualificados do próprio autor-personagem. Todos encontram inúmeras figuras da órbita greco-

37 O círculo de Guido Guinizelli (1230-c.1276) contou com Dante, Guido Cavalcanti (c. 1250-1300) e Cino da

Pistóia (falecido em 1337). A poesia nuova italiana mostra-se mais lógica do que aquela realizada pelos poetas francos Bernard de Ventadour (c. 1125-1200) e Peire Vidal (c. 1175-c.1205).

latina ou do próximo Oriente, pelos numerosos espaços dessa, que é uma das máximas catedrais da cultura ocidental.

Entre suas bases e seus acabamentos, conciliam-se o estilo sincrético, verificado no

Cor Gentile, com a lógica do realismo tomístico:

Embora santo Tomás seja capaz de construir o mundo católico-aristotélico num bem-acabado sistema, um edifício no qual Deus, as ‘substâncias separadas’, o homem, sua alma, e a natureza têm, cada um, lugar apropriado, ele não o povoa com indivíduos, nomeados e caracterizados separadamente. Dante, por outro lado, vive entre figuras da sua fantasia poética, cada uma das quais brotou da inspiração irracional de um momento concreto e, com a ajuda do pensamento filosófico, ele consegue definir a natureza, lugar, classe e atividade próprias de cada figura (AUERBACH 1997a, p. 98-99).

Ainda que jamais narrasse o evento sob a forma desconexa das lendas, Dante valeu-se de figuras lendárias ou de pessoas conhecidas, a exemplo de Bruneto Latini, Cavalcante e Guido Cavalcanti; Farinata degli Uberti, Filippo Argenti, Francesca da Rimini e Pier della Vigna. Eliminando a temporalidade em sua obra, o poeta se aproximava de Aristófanes, porém, as semelhanças ficam por conta de suas críticas e da estratégia consistente em chamar personalidades históricas à ação poética. O florentino erige “um outro da multidão no Outro mundo, para que interprete lá sua realidade essencial, como se ele fora tão famoso como um dos seus contemporâneos, como uma figura mítica ou, pelo menos, historicamente estabelecida” (AUERBACH, 1997b, p. 182-183).

Os retratos do ser humano, que Dante pretendeu oferecer, ajudavam a estruturar seu projeto monumental. Ele assim exemplifica um dos pressupostos das teorias da recepção e do efeito, segundo o qual, a partir do momento em que “a realidade repetida no fingir se transforma em signo, ocorre forçosamente uma transgressão de sua determinação correspondente. O ato de fingir é, portanto, uma transgressão de limites. Nisso se expressa sua aliança com o imaginário” (ISER, 1983, p. 386).

A retórica então preponderava nas universidades, enquanto Agostinho continuou a ser bem recebido, em contato com as filosofias grega, judaica e árabe. A idéia platônica do conhecimento transparece nas leituras alegórias que São Tomás propunha, embasado nos conceitos do racionalismo e do realismo aristotélico. Buscando conciliar a filosofia clássica e a fé cristã, o teólogo excluía o sentido figurado das exegeses bíblicas:

Não está facultado à poesia, portanto, exprimir verdades essenciais, que só se encontram nas Escrituras, as únicas que contêm sentido espiritual, passível de ser desvendado pela alegoria factual. Contudo, Santo Tomás admite a possibilidade de as Escrituras apresentarem verdades que extrapolem a compreensão humana através da figura de coisas corporais, entendendo que a leitura do texto sagrado se funda,

acima de tudo, no sentido literal ou sentido histórico. [...] A teoria de Santo Tomás assenta-se na distinção entre simbolismo das palavras e simbolismo das coisas, cabendo à alegoria divina a virtude da arte autêntica. As ficções poéticas, não passando de um sentido literal, limitam-se a, no máximo, ilustrar uma verdade teológica (FONSECA, 1991, p. 22-23).

A escolástica não permitiu que os currículos universitários contemplassem a história; ocupando discreto lugar no saber, até o século XV, a ciência histórica nem seria considerada como auxiliar do direito, da moral ou da teologia. Mesmo assim, os historiadores testemunhavam a predileção do público laico pelas narrativas históricas. Obras ficcionais que continham figuras baseadas em seres históricos cresciam aceleradamente e logo se acompanhariam das narrativas biográficas italianas.

De acordo com Hilário Franco Júnior (1986, p. 18), o pensamento de “Sócrates só se entende a partir de seu caráter profundamente ateniense; também o de Dante só é compreensível por seu profundo florentinismo.” No entanto, desde os tempos do filósofo grego àqueles vividos pelo escritor italiano, nem as nações eram contornadas, nem seriam precisas quaisquer linhas que separassem a história da poesia. Daí perguntar em quanto a palavra poética se fez da mitistória e da narrativa hagiográfica, do lendário e do romance, bem como da biografia, essa antiga escrita de Bios ou de Vita.