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Presente grego na (pré)visão da história

2.1 METALEPSE: TESTEMUNHOS E IMAGINÁRIO

2.1.1 Presente grego na (pré)visão da história

O experimentalismo com relação à figura do narrador dá margem a que se elabore o conceito de ficção, o que, na esfera das novidades que se encontram neste último dos gêneros criados pelos antigos, talvez seja a mais surpreendentemente nova – a celebração de um novo pacto de leitura...

JACYNTHO LINS BRANDÃO

Narrativa e mimese no romance grego...

Jacques Le Goff (2003) estabelece o ato inaugural do relato histórico no transcurso do século V a.C. ao I d.C. Em consonância com o significado de Histoíre no dialeto jônico, a história era definida em função dos verbos “indagar” e “testemunhar”. Convertida em fonte essencial do conhecimento, a visão “leva-nos à idéia de que histor, aquele que vê, é também ‘aquele que sabe’; historein, em grego antigo, é ‘procurar saber’, ‘informar-se’. Histoire significa, pois, ‘procurar’” (p. 111).

A prévia apresentação da ciência histórica, embora debatesse a posição ocupada pelo testemunho, não teria apresentado um sentido crítico, ainda segundo Le Goff (p. 83):

Avançaram apenas, como esquemas explicativos gerais, a natureza humana (isto é, a imutabilidade), o destino e a Fortuna (isto é, a irracionalidade), o desenvolvimento orgânico (isto é, o biologismo). Sitou o gênero histórico no domínio da arte literária e atribuiu-lhe funções de distração e utilidade moral. Mas previu uma concepção e uma prática ‘científicas’ da história (Tucídides), a investigação das causas (Políbio), a procura e o respeito pela verdade (todos e principalmente Cícero).

Nos idiomas românicos, e em outros, a história se relaciona com determinada procura das ações concretizadas pelo ser humano. Os sentidos do termo abarcam também o próprio objeto de tal busca, ou seja, aquilo que foi realizado pela humanidade, a série dos acontecimentos relatados. Além disso, a palavra compreenderia uma narração histórica ou imaginária, envolvendo dicotomia que a língua inglesa soluciona, por meio da respectiva distinção entre History e Story; até pouco tempo, válida em português.

Carlos Rama (1978, p. 11) pensa que, assim como as ficções dramáticas e romanescas, a história derivou da poesia épica dos gregos: “Poderíamos dizer que surge quando se produz a crônica em que se objetiva o dado inserido na epopéia.” Embora se admita essa ligação entre o épico e o histórico, a forma oral da saga nunca poderia constituir um sistema de relações entre causas ou categorias e assuntos, pois cantava mais os feitos do que os eventos.

O Epos homérico não podia configurar um conceito abstrato de tempo, já que as ações épicas eram contínuas e, quando aparecia, Chronos marcava a espera ou períodos em que

nada era feito. Não se elimina totalmente a hipótese de sua apresentação como registro duma série de acontecimentos, todavia, o encadeamento paratático das ações não significa que “o poema épico primitivo seja uma crônica, pois a idéia de uma seqüência natural no tempo, imune à subjetividade por parte do poeta, é mais complexa [...] A cronologia depende em parte do domínio do tempo como uma abstração” (HAVELOCK, 1996a, p. 209).

A ação na Ilíada e a experiência na Odisséia preenchiam o espetáculo concretizado, que durava um dia. Homero adentrou ao terreno das composições periódicas, mas que nada teriam a ver com as antigas escritas históricas. Mais perto dessas narrativas, estariam os domínios de Bios, ainda que já fossem registradas algumas distinções entre tais áreas. No entanto, Aristóteles (1966, p. 78) parecia localizar as Vidas numa zona de abrangência da história, segundo esta passagem da Poética, muito difícil de elidir:

a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente ao universal, e esta o particular. Por ‘referir-se ao universal’, entendo eu atribuir um indivíduo de determinada natureza, pensamentos e ações que, por liame de necessidade e verossimilhança, convêm a tal natureza; e ao universal, assim entendido, visa a poesia, ainda que dê nomes aos seus personagens; particular, pelo contrário, é o que fez Alcibíades ou o que lhe aconteceu.

Como visto, uma configuração mais precisa do espaço biográfico se afirmava no início da era cristã. Plutarco havia fornecido importantes pistas quanto a diferenciar os relatos históricos daquelas narrativas cujos títulos, ao serem transliterados do grego para o latim, designariam igualmente sua natureza: Bioi e Vitae. O autor de Vidas paralelas “demonstrava pouco interesse pelos determinantes estruturais e sempre reivindicava com energia a superioridade dos sinais da alma sobre a etiologia política” (LORIGA, 1998, p. 228).

De tática semelhante, valeu-se o escritor duma colônia norte-africana de Roma, Lucius Apuleius (125-c. 180), em texto de marca encomiástica: Apologia. No século II, um satirista nascido na então província romana da Síria – Luciano de Samósata (125-c. 190) – enveredou pelos campos da teoria em Como se deve escrever a história. Brandão (2001) afirma que o libelo, dirigido aos historiadores das guerras párticas, aborda o manejo da história em relação ao ficcional (Pseûdos); ao “verdadeiro”; à política; à “liberdade pura” do poeta.

O trecho que se pôde conservar do Satyricon – “Banquete do Trimalcião” – (século I d.C.) apresenta-se como uma das produções mais alheias ao briografismo. Nele, as personagens eram focadas em traços esquemáticos:

O romance, finalmente, fabula milesiaca, gênero ao qual pertence, no fim de contas, a obra de Petrônio, está, em outros fragmentos ou obras que conservamos, tão fortemente carregado de elementos mágicos, aventurosos, mitológicos e, sobretudo, eróticos, que de maneira alguma pode ser considerado uma imitação da vida quotidiana de então – sem falar da estilização irreal e retórica da linguagem. O que mais se aproxima da representação ampla, verdadeiramente quotidiana da existência, é algo da literatura Alexandrina; talvez as duas mulheres do festim de Adônis, em Teócrito, ou o processo do alcoviteiro, de Herodas. Mas também estes dois trechos – composições em verso – são, com respeito ao realismo, à infra-estrutura sociológica, mais brincalhões e mais estilizados na linguagem do que Petrônio (AUERBACH, 1971, p. 26).

Geralmente, os atos de mesclar a realidade com a ficção elencavam dados, compósitos e suposições. Tal vínculo, apresentado como duplo, via-se convertido em tríplice, confirmando a teoria de Wolfgang Iser (1983, p. 385). Para o estudioso germânico, “o texto ficcional contém elementos do real sem que se esgote na descrição deste real, então, o seu componente fictício não tem o caráter de uma finalidade em si mesma, mas é, enquanto fingido, a preparação de um imaginário.”

Com precedentes nas culturas orientais, a narrativa ficcional era divulgada no mundo europeu através dos gregos. A novidade do gênero residia em: a) constituir uma ficção, mas sob a forma da prosa; b) não se referir, em tese, a qualquer “discurso verdadeiro”. As figuras de retórica já enformariam pequenas ficções: “seu caráter ficcional é atenuado, de certa forma, pelo exíguo de seu veículo e usualmente pela freqüência de seu emprego, que impedem perceber a ousadia de seu motivo semântico” (GENETTE, 2004, p. 19).

Da figura à ficção, e nos primeiros 200 anos da era cristã, Xenofonte de Éfeso produziu As Efesíacas, centrando-se nas personagens Habrócomes e Antíae. Entre a primeira e a segunda centúria, por igual em período impreciso, Caritón de Afrodisias narrou as aventuras dos amantes siracusanos Quéreas e Calírroe. No prefácio, explicava para virtuais leitores que a história narrada provinha de uma pintura; em tradução próxima, contudo inexata, significaria “escrever o que estava pintado”.

Brandão (p. 39, 1999) considera que tal sentido não faz jus ao assunto do qual se ocupa o proêmio, já que não abarca o duplo sentido dos vocábulos gregos Gravfein (escrever e pintar) e Grafhv (escrita e pintura). Entendendo-os mais livremente, trata-se:

de algo como contrapintar a pintura, o que se faz escrevendo, garantindo-se que a origem da obra está em algo que o narrador viu: não os próprios acontecimentos, senão uma representação figurada deles, ou seja, o que ele dá é um testemunho mediatizado, inclusive pela interferência de um intérprete do quadro. Finalmente, o objetivo da obra é constituir um ‘patrimônio encantador’ (kth'ma terpnovn, fórmula que ecoa o ‘patrimônio para sempre’ – kth'ma ej" aeiv – de Tucídides), cujos efeitos se pretende que sejam curar, consolar, fazer recordar e ensina.

Aquiles Tácio pareceu exercer-se numa função dos antigos historiadores – a de testemunha – quando ao contar em primeira pessoa sua história Leucipe e Clitofonte (séc. II). Luciano de Samósata produzia sátiras, em particular, contra Platão e os filósofos, estóicos ou cínicos. Neste caso, transforma Diógenes e Menipo de Gadara em personagens da conhecida obra Diálogos dos mortos. Ambos podem-se enquadrar à categoria da metalepse, que abriga um enunciado sobre si mesmo e “qualquer discurso, primário ou secundário, real ou ficcional, que implique ou desenvolva um tipo semelhante de enunciado. Essa forma de metalepse é sem dúvida menos ostensivamente fantástica do que as demais” (GENETTE, 2004, p. 129).

Luciano teria escrito Lúcio ou o asno, trabalho similar às Metamorfoses, ou O asno de

ouro, que circulou na órbita romana sob a rubrica de Lucius Apuleius. No livro XI dessa

ficção, o autor transfere circunstâncias da própria vida ao narrador-personagem Lúcio, algumas vezes, confundido com Lúcio de Patras, instância de mesma particularidade em

Lúcio ou o asno. Por intermédio da mentira, a narrativa “não é mais representada como um

derivado dos discursos verdadeiros, mas como um outro gênero de discurso autônomo que, em sua autonomia, põe em xeque os discursos verdadeiros” (BRANDÃO, p. 55, 1999).

O ficcionista Longo produziu a história sobre irmãos que se apaixonam, um pela outra, em Dáfnis e Cloé ou As pastorais (séc. II-III) e Heliodoro de Emesa trouxe à luz Teágenes e

Caricléia ou As etiópicas (séc. III). Em vista de tamanha produção, urge situar o “fictício”

como um ato intencional, dando relevo a sua característica de ato, para que “nos afastemos de seu caráter, dificilmente determinável, de ser. Pois, tomado como o não real, como mentira ou embuste, o fictício serve sempre apenas como conceito antagônico a outra coisa, com o que antes se esconde do que se revela a peculiaridade do ofício” (ISER, 1983, p. 413).

Nas destacadas ficções, avultam heroínas e heróis, individuais ou aos pares. Algumas de suas marcas retornariam em obras posteriores, a exemplo do diálogo com a narração histórica. Sua ordem perigráfica teve paralelo em narrativas históricas e manuscritos diversos. O elemento periférico de uma obra, mesmo sob “apresentação mais simples, não deixa de ser também uma das espécies de representação, no sentido de que o único que importa, no nível textual, são as estratégias de enunciação que buscam estabelecer certos parâmetros capazes de orientar o entendimento e a fruição da obra” (BRANDÃO, p. 55-56, 1999).

O pacto de leitura, estabelecido pelos citados romances, implicaria na determinação de novos estatutos do narrador e da própria narrativa ficcional. O discurso filosófico, entretanto, permitia entrever “que a caça às ficções é guiada pelo esforço de que elas próprias não se convertam nos objetos daquela ‘realidade’ que representam. Assim também, no

autodesnudamento da ficção, se mostra que o texto, como um fingido, não é idêntico ao que por ele se representa” (ISER, 1983, p. 400).

Surgiu então a “hagiologia” ou “hagiológica”; com os calendários litúrgicos

e a comemoração dos mártires nos lugares de seus túmulos, a hagiografia se interessa, durante os primeiros séculos (de 150 a cerca de 350), menos pela existência e mais pela morte da testemunha. Uma segunda etapa se abre com as

Vidas: as dos ascetas do deserto (assim como a Vida de Santo Antonio, por

Atanásio) e, por outro lado, a dos ‘confessores’ e dos bispos: Vidas de São Cipriano (+ 258), de São Gregório, o Taumaturgo (+ cerca de 270), ou de São Martinho de Tours (por Sulpício Severo). Segue um grande desenvolvimento da hagiografia no qual os fundadores de Ordens e os místicos ocupam um lugar crescente (CERTEAU, 2002, p. 267).

A “imagem” ou “exemplo” se fundaria na incorporação de certas qualidades em figuras, algumas vezes, baseadas na existência duma pessoa; em outras, vindas da mitologia, das lendas, da história. As últimas situações seriam governadas pelo termo latino Fingere: “os substantivos fictio e figura, ancestrais de nossos ‘ficção’ e ‘figura’, derivam desse verbo, o qual designam melhor, na medida em que é possível estabelecer diferenças entre suas denotações, a ação e o produto ou efeito de dita ação” (GENETTE, 2004 p. 19).

O ramo das Vidas alcançava notória ampliação. Mikhail Bakhtin (1990, p. 250) destacaria os vínculos da narrativa ficcional com as espécies primordiais do espaço biográfico. Ele sublinha o papel desempenhado por “formas biográficas e autobiográficas notáveis que exerceram influência não só para o desenvolvimento da biografia e da autobiografia européias, mas também para o desenvolvimento de todo o romance europeu.”

Nos medievos, as primeiras narrativas históricas – anais e crônicas – adotaram

a escrita como veículo, assegurando, com isso, maior confiabilidade e distanciamento em relação aos sujeitos que constituem matéria de narração. História enquanto narração transforma-se em sinônimo da memória, compondo com a escrita, e seus suportes, uma aliança tão completa, que se converte em exemplo para as demais manifestações verbais. Não por outra razão, Walter Benjamin assinala que, na crônica histórica, e não no conto, está a origem do romance, dado o caráter de manifestação exclusivamente da escrita, compartilhado pelos dois gêneros (ZILBERMAN, p. 131, 2006b).

A ciência histórica e o espaço biográfico sentiriam o refluxo das práticas letradas, tanto quanto a filosofia, a poética ou a retórica. Durante o grande lapso temporal coberto pela Antigüidade tardia e pelas Idades Medievais, as línguas românicas ou “romance” puseram-se a recuperar alguns temas precedentes, reinterpretavam personagens já vistas, representariam histórias anteriores em novas imagens. Sob renovada ótica, os vernáculos moldavam uma sorte de globalidade que veio antecipando A galáxia de Gutemberg.