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Mirem-se no exemplo: fictício-imaginário-ficcional

2.3 MIMESE: LIVROS & DOCUMENTOS

2.3.4 Mirem-se no exemplo: fictício-imaginário-ficcional

Eu sou como o centro de um círculo — ao qual igualmente se referem —

todas as partes da circunferência...

DANTE Vida nova

Desde o início da Modernidade, os reinos de Espanha e Inglaterra viviam tempos áureos. Se nem tudo que reluz é ouro, suas criações imaginativas eram submetidas à tutela religiosa, em meio a um processo que se tornava cada vez mais agudo. Chegando até a ser tolerado, caso se harmonizasse aos mecanismos por intermédio dos quais sofria o exercício de severas regulações, o campo ficcional passaria a enfrentar maiores controles, nessa submissão ao império da verdade.

Nas culturas românicas, o domínio religioso sobre a ficção se prolongaria às adjacências da era iluminista, as narrativas balançando entre os modos fictício e ficcional. Na primeira de tais modalidades, o discurso sujeita-se ao domínio da verossimilhança para se subordinar à verdade. O segundo modo caracteriza-se como “uma forma discursiva que, pela ambigüidade de seu objeto e por sua insubmissão ao princípio da verdade empírica, se opõe ao princípio de atuação do fictício” (COSTA LIMA, 1988, p. 362-363).

Inserida nos tempos modernos, a reforma católica tomava corpo, desempenhando firme tutoria sobre a cercadura ideológica ocidental. Preocupado com a incrementação protestante, o contra-ataque do catolicismo elegeu a arte secular como um de seus alvos preferidos. As determinações do Concílio de Trento (1545-1563) guiavam suas atividades inquisitoriais no plano político; no estético, regulamentavam sua ação programática quanto ao controle das obras artísticas, das escritas e das leituras permitidas.

Marcada centralmente pela conjunção de antíteses, a lógica cultural da contra-reforma privilegiava o sobrenatural e o sublime, acentuando um retorno ao tema religioso. As rotas do espaço biográfico se bifurcavam entre a abstração do “caráter” e a concretude do anedotário, devedor dos “exemplos” de Cornelius Nepos. De acordo com Daniel Madelénat (1983, p. 45- 46), a pequena história vinha esboçando uma leitura ao avesso do sério fazer histórico.

Em seu estilo, as ficções demonstravam semelhança com as escritas de vida, diversas vezes, apresentadas fragmentariamente. Ambas detalhavam-se por fatos privados, tentando revelar a personalidade dos indivíduos cujas histórias eram focalizadas em pormenores (ANDERSON, 1984, p. 24-38). Dessa forma, o privilégio concedido às personagens referenciais no Siglo de Oro espanhol atingiu a coletânea editada pelo cronista Pedro Mexia, no estilo das antigas miscelâneas gregas e latinas: Silva de varia lección (1540).

Joan Timoneda seguiria esse caminho com “pequenos contos, mentiras, fábulas”, reunidos em seu anedotário El Patrañuelo (1567). O autor não descarta flashs de vida, uns clarões biográficos, como nas histórias de “Grisélida” e “Apolônio”. Relacionada por igual com o mundo greco-latino, a novelística pastoril enraizava-se nas tradições helenistas e no primeiro humanismo, como se sabe, desde o bucolismo de Teócrito e Virgílio aos trabalhos boccaccianos Ninfale D’Ameto e Ninfale fiesolano.

O gênero se acresceu das tonalidades que lhe forneceram as cartas de Vespúcio, bem como duas obras editadas no século XVI: Novae Novi Orbis Historia, de Girolamo Benzoni, e

Delle Navigationi et Viaggi, de Giovanni Battista Ramusio (NUÑEZ, 1972, p. 85). A pastoril

extraía seu molde preponderante do escritor italiano Jacopo Sannazaro (1456-1530). Trata-se dum compósito ficcional em prosa e poesia — Arcádia (1502) — que relata o percurso do jovem napolitano chamado Sincero, desde a frustração amorosa e o idílio junto a pastores arcadianos, ao retorno para sua cidade originária, onde toma conhecimento de uma tragédia.

Na Península Ibérica, as novelas pastoris incorporaram a melancolia portuguesa da

Menina e moça (1554) de Bernardim Ribeiro. O escritor bilíngüe Jorge de Montemayor, com

Los siete libros de Diana (1559?), evocava o idealismo utópico da vida natural. Os seguintes

autores procederiam da mesma forma em suas respectivas obras: Gil Polo, La Diana

enamorada (1564); Gálvez de Montalvo, El pastor de Fílida (1582) e Suárez de Figueroa, La constante Amarilis (1607).

Miguel de Cervantes e Saavedra adentrou na ficção narrativa por intermédio da novelística pastoril. Sua novela de estréia — La Galatea (1585) — disfarça como pastores

alguns seres históricos do tempo representado no texto ficcional. Assim ocorre com as seguintes personagens: Meliso (Dom Diego Hurtado de Mendoza); Australiano (Dom Juan de Austria); Larisleo (Mateo Vasquez); Siralvo (Gálvez de Montalvo) e Lauso (o próprio Cervantes).

Produzida por Nuñez de Reinoso, a Historia de los amores de Clareo y Florisea (1552-1565), como toda obra pertencente à novelística bizantina, possui enorme débito com a

Historia etiópica dos amores de Teágenes e Clariclea (séc. III). Desde a descoberta do

manuscrito grego e da primeira edição em Basiléia, no ano de 1534, esse texto foi traduzido ao latim e aos principais vernáculos. Atribuído a Heliodoro, motivou criações que passaram a mesclar seu caráter sentimental com o relato fundamentado em viagens ou peripécias.

Também circulavam novelas históricas sem autoria definida, como as mouriscas, entre as quais, Historia del Abencerraje y de la hermosa Jarifa (1565). A narrar o ambiente cortesão e cavaleiresco dos mouros granadinos, tal narrativa seria baseada em alguns fatos de seu passado recente. Do mesmo modo, parece referencial a Historia de los bandos de Zegríes

y Abencerrajes (1595-1619). Os textos em grifo reescreviam diversas histórias extraídas do

repositório cultural e inspirariam obras posteriores.

Na passagem ao século XVII, o judeu-espanhol Mateo Alemán contribuiu para dar forma ao subgênero da ficção picaresca, através da Vida del pícaro Guzmán de Alfarache (1599). Esse texto dá espaço às andanças do escritor por terras americanas, que se interpõem a fragmentos clássicos, expressões prosaicas e ditos populares. De semelhante modo, contempla intertextos com “Ozmín y Daraja”, da tradição moura; “Dorido y Clorinia” e “Bonifacio y Dorotea”, de motivos italianos.

Além dos Pirineus, Torquato Tasso (1544-1595) destacava o verossímil no lugar do imaginativo, submetendo a ordem ficcional ao domínio do fictício. O escritor italiano referiu- se às cruzadas e à cavalaria, sintetizando a Humanitas greco-latina com o nacionalismo em suas epopéias Jerusalém Libertada (1575) e Jerusalém Conquistada (1593). Na última, ressalta uma “orientação pós-tridentina, figurando alegoricamente a alma humana no herói Godofredo; o corpo, nos soldados; as faculdades, em Tancredo e Renaud; as tentações, em Armida e Ismen” (MONIZ, 2007).

Muitos leitores portugueses acessaram a cultura renascentista italiana por meio da língua espanhola. Entre os tais, havia de estar um qualificado leitor do poeta Virgílio — Luís Vaz de Camões (c. 1524-1580) — sobre quem, desde a data do nascimento, “tudo são

suposições e conjecturas na existência atormentada” (BUENO, [s.d.], p. 11). As intertextualidades firmadas com o mestre latino transparecem n’Os Lusíadas (1572).

A epopéia nacional da gente lusitana individualiza personagens da cavalaria, revigoradas pelo ideal cruzadista, como rei Artur e Carlos Magno. Do mesmo modo, fabrica suas próprias lendas, fundamentando-se em Bartolomeu Bueno da Silva, Borba Gato, Paes Leme etc. Tendo por núcleo a viagem de Vasco da Gama às Índias, entre 1497 e 1498, o poema camoniano trouxe à luz várias personalidades históricas, como Egas Moniz, Dom Manuel, Paulo da Gama e Inês de Castro, a paixão fatal d’El-rei Pedro I.

Camões tentou conciliar a virtude cristã com o legado platônico-aristotélico, reflexão que voltaria a se impor, conforme o processamento antes efetuado pelos feixes doutrinários da patrística e da escolástica. Para São Tomás e os escolásticos, a devoção amorosa seria complementativa. Ao ser “uma paixão, portanto, um apetite que busca o apetecível, o amor implica associação com o seu objeto. Ou, no caso extremo, o amor através do espelho do objeto amado reflete o próprio amante” (FRANCO JÚNIOR, 1986, p. 58-59).

A nobre galega Dona Inês transcenderia a própria morte da mesma forma pela qual Dom Sebastião ancorou a lenda que prometia seu retorno e lhe negava uma face da própria biografia. Ponteando a 16ª centúria, os tons cavaleirescos utilizados pelo escritor João de Barros na Crônica do Imperador Clarimundo (1524) tingiram o Memorial das proezas da

Segunda Távola Redonda (1567), por Jorge Ferreira de Vasconcelos. A demanda pelo

biográfico e o lendário atingiu a História da Província Santa Cruz a que vulgarmente

chamamos de Brasil (1576), do cronista lusitano Pero de Magalhães Gândavo, e ressuscitava

Dom Juan Manuel, por meio de seus contos do Conde Lucanor.

Não tardou para que o fictício se prestasse a fomentar o medo: um conceito universalista de arte, apenas a ensaiar os primeiros passos, logo predominaria. Em situações anômalas como essa, é que o procedimento mimético supõe a primazia da semelhança; na maior parte de suas incidências, o resultado obtido vem a ser completamente inverso, pois o “aprendiz aos poucos amalgama suas propriedades com as do modelo e de tudo, afinal, resulta menos a sua semelhança final do que sua própria diferença. A mímesis, por conseguinte, é produção da diferença e não o império da semelhança” (COSTA LIMA, 1988, p. 359-360).

Ao reordenamento do universo artístico, somavam-se as formulações do cético humanista Michel de Montaigne (1533-1592). Em seus Ensaios, o filósofo discute o ingresso da alteridade na construção identitária, dando centralidade à criatura humana. No segundo

livro do trabalho em destaque, louva Plutarco, em virtude das dimensões concedidas por esse biógrafo ao cosmos interno e à vida privada, no lugar da órbita externa e da coisa pública.45

Conforme o pensador francês, as Américas inverteriam a imagem da civilização, pois o indígena gozava de mais liberdade, saúde e igualdade social do que o europeu. A mitologia em torno ao “bom selvagem” atualizava o mito greco-latino da “Idade do Ouro”, na qual os seres humanos viveriam “segundo as leis da natureza, em harmonia com os outros animais e em fraternidade com seus semelhantes. Esse mito pode ser verificado em poetas como Virgílio e Ovídio ou em filósofos como Platão e Aristóteles” (SOUZA FILHO, p. 81, 2002).

A recusa dos mitos pseudo-históricos, inaugurada pelo humanismo italiano do

Quattrocento, encontrou continuidade no século XVI, por meio dos historiadores franceses,

em cujo grupo, a expressiva fração de juristas ia tomando distância dos eruditos. Os homens da lei e das letras deram contornos à crítica documental, mas não retiraram a história dos campos da poética. Essa disciplina instituía seu poder regulador, como se sabe, mas os domínios poéticos e históricos mal se distinguiam quando os historiadores de princípios do século XVII começaram a se afastar dos letrados.

O meio jurídico então prefigurava o saber histórico a ser capitaneado pelos filósofos do Século das Luzes. Os eruditos alcançavam expressivo progresso em seus trabalhos, sem que saíssem das raias dos colecionadores, da história-monumento. De acordo com Le Goff (2003, p. 527), a palavra Documentum, provinda de Docere (ensinar), e situada no mesmo campo semântico de Dóxa, evoluiria para o significado de “prova”, cobrando utilização no vocabulário legislativo.

No epílogo quinhentista, o terceiro círculo da ciência histórica findava com a idéia duma história perfeita, enquanto começara retomando aos antigos a noção de Historia

Magistra Vitae. Sob as abrangências da contra-reforma, a Renascença trilhava longo caminho.

Principiara com a redescoberta das culturas clássicas, mirou a tais exemplos e assistia às próprias extensões, hispanizada em diversos barrocos que variavam segundo as regiões e os receptores, contudo se orientassem pelo jogo religionário das celebrações tridentinas.