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Um prólogo exuberante ao moderno romance

2.4 MENSAGEIRAS DO PASSADO: BÍBLIAS E BIBLIOTECAS

2.4.1 Um prólogo exuberante ao moderno romance

— Eu sei quem sou — respondeu don Quixote — e sei que posso ser não só os que eu disse ser, mas todos os doze Pares de França e, ainda, todos os nove da Fama, pois as minhas façanhas irão superar todas aquelas que fizeram eles todos: juntos, ou cada um por si próprio.

MIGUEL DE CERVANTES Dom Quixote de la Mancha

Durante o século XVI, contos, novelas e descrições aparentadas às formas do espaço biográfico tomavam sinais caracterizadores, rumo aos gêneros pelos quais hoje são conhecidos. O pórtico da 17ª centúria faria ornamentar-se pelo gênero romanesco moderno, a coroar uma já robusta prosa, antes marcada pela síntese ficcional. No contexto, Michel de Montaigne ansiava pela representação cotidiana, observando as ações privadas desde a própria experiência.

O humanista francês julgava os trabalhos históricos sobejamente unitários, quanto à configuração do elemento humano. Colecionadores quinhentistas de objetos artísticos, franceses e italianos, haviam desenvolvido métodos que permitiriam chegar à “história propriamente científica”. Em sua gênese, no quarto momento da ciência histórica, “o século XVII, com os bolandistas e os beneditinos de S. Mauro, lança as bases da erudição moderna” (LE GOFF, 2003, p. 111).

O barroco se manteria até por volta de 1730 e provava distintas ramificações nacionais ou regionais, que se distinguiam conforme o vigor político-econômico, ou dos nobres, ou dos burgueses. As diferenças entre os barrocos ainda dependeram, em grande sentido, da hegemonia religiosa local. Nos espaços de dominância católica, a arte se desenvolvia tanto em formas classicistas (mais pensamentos do que palavras) quanto cultistas ou culteranistas (mais palavras do que pensamentos).

Na Itália, tais expressões deveram o nome sob o qual se abrigaram — “marinismo” — ao napolitano Giambattista Marino (1569-1625), que dedicou a Luis XIII sua obra Adonis (1623). O barroquismo italiano se deslocou à Península Ibérica, onde foi nomeado “gongorismo” a partir do escritor Luis de Góngora y Argote (1561-1627). Nos lugares de economia mais débil ou de mentalidades mais conservadoras, como a Espanha, o controle do imaginário teria continuidade.

Os espanhóis tinham absorvido as idéias de Erasmo e se moldavam ao pensamento da modernidade inicial, possibilitando à igreja romana bloquear o reformismo protestante. Mais

tarde, as estratégias contra-reformistas e seu aparelho estético-ideológico vingariam sob a tutela da “ilustração” peninsular. Isso, porém, não significa uma absoluta inexistência de transgressões: um dos desvios à hegemonia, Dom Miguel de Cervantes ultrapassava os princípios exemplares e lógicos de seu tempo.

O ficcionista pôde concretizar os ardis do fingimento, transgredindo as limitações das novelas de cavalaria. Desse modo, fundava o romance moderno, com a primeira parte de seu livro

El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha (1605). As personagens centrais, Dom Alonso

Quijano (Quixote) e Sancho Panza, expressam a sátira do autor à cavalaria arruinada e ao feudalismo, em proposta que concilia o romance idealista de cavalaria e a novela picaresca vulgar.

El Quijote é visto pela ótica do maneirismo em função das afetadas figuras retóricas,

dos ritmos artificiais e da natureza deformada, extravagante. Além de submeter o real à transfiguração imaginativa, permite outras miradas maneiristas:

a comédia, cujo fulgor transparece em meio às densas trevas da tragédia; a presença do trágico no cômico; a natureza dual do herói, fazendo-o parecer ridículo ou burlesco num momento, e sublime ou augusto no momento seguinte. O fenômeno de ‘auto-sugestão consciente’ é também uma destacada característica desse estilo: as alusões feitas pelo autor ao fato de que o mundo de sua narrativa é fictício, a desenvoltura com que os personagens do romance saem despreocupadamente de sua própria esfera e penetram no mundo do leitor, a ‘ironia romântica’ com que faz referência, na segunda parte do livro, à fama dos principais personagens(HAUSER, 1995, p. 418).

Devido a ilhas descontínuas, como a obra de Cervantes, o aparato de controle do imaginário não cabe na imagem dum arado devastador. Sob outra perspectiva, muito embora o fictício apresente vários atos de fingir, “esses podem ser também apreendidos porquanto suas funções são determináveis. Evidentemente, é necessário o concurso de várias funções para que se realize a ‘mediação’, no texto ficcional, do imaginário com o real” (ISER, 1983, p. 388).

À descontinuidade representada pelo Quixote, alia-se Tirant le Blanc (séc. XV), o livro mais citado pelo narrador da obra máxima de Cervantes e, não raro, colocado em nível próximo a ela, senão como seu arquétipo. Os dois textos explicitam a ambigüidade típica da palavra: como detentora duma vertente alegórica, a valer pelo que refere; ou como performativa, também cobrando valor pelas concretizações. O caráter ambíguo “cria uma tensão interna que se atualiza no ato da leitura e recebe soluções variáveis de obra para obra, de período para período” (COSTA LIMA, 1988, p. 362).

Expressões que vingariam no futuro também guardam bastante afinidade com o primeiro romance moderno. A partir do século XIX, tais aspectos do Quixote seriam notados

como afins à prosa ficcional corrente: diálogos baseados no falar cotidiano; saltos cinematográficos do discurso narrativo; introdução de novos episódios, comentários e divagações. De forma semelhante, os seguintes caracteres: apresentação do universo em mudança; desvios da rota romanesca; alterações de caráter das personagens; a falta de uniformidade no desenvolvimento da história romanesca.

Entre as duas partes de sua obra-mestra, e sob o signo barroco, Cervantes redigiu

Novelas ejemplares (1613). O escritor castelhano se mostrava consciente da importância que

passou a ter para as letras de seu país. No prólogo da coletânea, declara:

Meu talento e minha inclinação conduziram-me a esta escrita, e tanto quanto eu me considere, assim o é: sou o primeiro a novelar em língua castelhana, porque as muitas novelas que nela andam impressas, todas são traduzidas de línguas estrangeiras. No entanto, estas são de fato minhas, nem imitadas nem roubadas; meu talento as engendrou, e minha pena as pariu, e vão crescendo nos braços da imprensa (CERVANTES SAAVEDRA, 1994, p. 12).

O primeiro grupo de tais narrativas marca-se pelas personagens do mundo aristocrático e pelo estilo refinado. Junto a uma ótica idealista, esses traços impregnam “A espanhola inglesa”, que se ambienta durante a invasão de Cádiz pelos britânicos. Sua protagonista é levada a Londres, onde trabalha como dama da rainha Elizabeth I. A intenção do autor pode ser aferida por meio dos elementos que concretizaram a montagem do texto, quando vistos em suas relações com as séries contextuais.

Assim como essa novela, de corte italiano e traços realistas, “As duas donzelas” permite observar certo destaque à sociedade e ao subjetivismo. A liberdade formal se apresenta na ordenação fragmentária, que transita entre a ficção e a confissão, a novela paródica e as moralidades. As personagens centrais, Teodósia e Leocádia, ocultam damas andaluzas, cujos nomes verdadeiros, o autor afirma suprimir, por decoro (FUCHS, 2001).

No mesmo agrupamento das novelas cervantinas, duas narrativas referem-se à órbita espanhola: “A ciganinha” e “A criada ilustre”. Aquela idealiza a comunidade cigana por meio de Preciosa, sua personagem central. A outra coloca os temas da liberdade e da virtude no ambiente das estalagens castelhanas, onde a empregada de nome Constanza cuja origem nobre é revelada no final do enredo, provoca os amores dum jovem fidalgo, na contingência, a se desempenhar como garçom.

No segundo grupo das Novelas exemplares, “Rinconete e Cortadillo” distingue-se pela idealização de cenas da vida comum e gira em torno de dois ladrões assim apelidados. “O ciumento de Extremadura” enfoca o ancião indiano Carrizales, que mora em Sevilha e se

acomete de sentimentos doentios pela jovem Leonora. O caráter realista da novela não oculta suas referências: Orlando enamorado, Orlando furioso, Filocolo, Decameron e a quinta narrativa das Novelle escritas por Matteo Bandello (1485-1561).

“O licenciado Vidriera” privilegia Tomás Rodaja, a debater-se com a questão do pecado original, e cuja demência o leva a imaginar que seu corpo fosse de vidro. Os textos centrados no marido extremamente zeloso e no bacharel Vidriera evidenciam o conflito quixotesco sociedade versus indivíduo. Por sua vez, “A Senhora Cornélia” divide seus cenários entre aventuras de viagens, o mundo social da corte espanhola e o centro econômico da Espanha, radicado na zona de Sevilha.

As intenções observadas nas referidas obras ficcionais não se encontram no sistema referencial que transgridem, nem na materialização do imaginário. Entre tal conceito e o mundo, a intencionalidade revela-se como figura de transição, com o estatuto da atualidade, segundo Iser (1983, p. 390). “Atualidade é a forma de expressão do acontecimento, e a intencionalidade possui o caráter de acontecimento na medida em que não se limita a designar campos de referência.”

Cervantes produziu ainda uma novela bizantina, editada postumamente: Los trabajos

de Persiles y Segismunda, historia septentrional (1616). Tematiza o amor e a peregrinação,

vividos por Auristela e Periandro cujos nomes supostos como reais figuram no título. Pérsiles e Sigismunda vinculam-se à mentalidade redentora do barroco:

Depois de comprovar o fracasso da utopia nos mundos construídos pela imaginação educada (quer dizer, o fracasso das utopias renascentistas), Cervantes lança suas personagens à busca da utopia barroca, dentro do mundo real ou, se assim desejado, fora dele, mas um ‘fora’ que não implica outro lugar, a não ser o não-lugar absoluto: o lugar de Deus. A ilha de Policarpo, em Pérsiles, equivale à venda de Juan Palomeque no Quixote. Ambas as cenas constituem o eixo dos respectivos romances. [...] Abandonada a esperança renascentista, a segunda parte do Pérsiles é uma incursão pelo mundo da contra-reforma. A partir de agora, não há lugar para mundos fora do mapa, ou hic sunt leones. A partir de agora, o Paraíso (ou o inferno) está aqui e agora; somos nós mesmos (BAENA, p. 136, 1988).

Uma narrativa espanhola de natureza bizantina era lida sob o prisma biográfico: El

peregrino en su patria (1616), escrita por Félix Lope de Vega Carpio (1562-1635). Gonzalo

de Céspedes y Menezes, com a novela Poema trágico del español Gerardo (1615-1617), deu vazão a expectativas semelhantes, procedendo à busca da unidade narrativa por meio dum considerável número de eventos particulares. Já Francisco López de Ubeda revelou-se pioneiro, ao encarnar a figura picaresca na personagem feminina de La pícara Justina (1605).

Por outro ângulo, raízes e interesses aristocráticos de Dom Francisco de Quevedo y Villegas levaram-no a eliminar o tema da ascensão social – um traço pícaro – de sua Historia

de la vida del Buscón Don Pablos, exemplo de vagamundos y espejo de tacaños (c. 1604).

Conforme declarações do autor, cristãos-novos, “gente baixa”, como seu protagonista, não se deveriam imbuir de aspirações pertinentes a outros estratos (MCGRADY, p. 239, 1968-69).

Salas Barbadillos era profícuo em novelas de protagonistas, cujos nomes geralmente constavam em seus títulos. O ficcionista misturou aspectos picarescos aos da novela cortesã madrilenha, todavia, mostrou-se fiel à picaresca com La hija de la Celestina o la ingeniosa

Elena (1612). Por seu turno, Vicente Espinel construía uma personagem que se dava como

biográfica, a partir da intitulação narrativa: La vida del escudero Marcos de Obregón (1618). Também a se valer de protagonista supostamente biográfico, o responsável pela Vida y

hechos de Estebanillo González (1646) parecia declarar seu nome real no título da novela,

mas ao se colocar como terceira pessoa, desvia qualquer expectativa de biografismo. Na obra, o desconhecido autor conflui ao narrador, dando conta de suas viagens e da participação na guerra dos 30 anos (1618-1648). Sob autoria de Céspedes y Menezes, Varia fortuna del

soldado Píndaro (1626) igualmente recai no jogo biográfico (MADROÑAL DURÁN, 1991).

No seio das miscelâneas “La Filomena” (1621) e “La Circe” (1624), que integram a coleção Novelas a Marcia Leonarda, Lope de Vega dedica algumas narrativas a sua ex- mulher, Marta de Nevares Santoyo (BLECUA, 1955, p. 28-67). A personalidade histórica volta a ser referida, sob o disfarce do nome Amarílis, na ficção em prosa e verso La Dorotea (1632). O intertexto com La Celestina é balanceado pela figura do autor, o qual se traveste em Fernando, enquanto veste a protagonista com referências a Elena Osório, uma paixão juvenil.

Castillo Solorzano abrandou a narrativa pícara, dando-lhe fundo cortesão, como nestas novelas, construídas na órbita de protagonistas femininas: Las harpías de Madrid: historia de cuatro pícaras (1631) e La niña de los embustes, Teresa de Manzanares (1632). Nos seguintes trabalhos, o escritor continuou a usar estratégias biográficas: Las aventuras del bachiller

Trapaza (1637); Epítome de la vida y hechos del ínclito rey don Pedro de Aragón (1639); Los alivios de Casandra (1640); La garduña de Sevilla y anzuelo de las bolsas (1642).

Feminista temporã, María de Zayas y Sotomayor (1590-c. 1661) publicou em 1637 a primeira série de suas narrativas curtas: Novelas amorosas y ejemplares. Ainda que herdeiras do Exemplum medieval, de Boccaccio, de Cervantes e do estilo dos contos orientais, denunciam a situação feminina no mundo da nobreza espanhola. Na primeira delas,

“Aventurarse perdiendo”, Zelima, escrava moura, era reconhecida como a proceder duma pessoa real e, simultaneamente, como fruto da imaginação.

Em certo ponto da novela, a personagem anuncia que seu nome é Isabel Fajardo: Sua realidade não é nada mais nada menos do que aparência, mas sua aparência revela a realidade de sua condição feminina. É um emblema ambulante, mas seu relato enuncia uma total subversão dos valores do emblema. Uma denúncia. [...] Uma situação real que se expressa com tópicos literários e que se veste de ficção (RUIZ-GÁLVEZ PRIEGO, 2001, p. XXVI, XXXIII).

As Novelas amorosas seriam exemplares porque ilustravam os defeitos ou qualidades a serem observados pelas senhoras e senhoritas em suas relações com os homens, no que María de Zayas denominava “pacto erótico/sentimental”. Suas histórias se propõem como um lugar a mais onde aprender, daí os discursos moralizantes que dirigem às protagonistas, como acontece em “La burlada Aminta”. A escritora, e outras mulheres da época, tiveram acesso aos tratados de moral, principais veículos do “matrimônio-sacramento”.

Essa “teoria” se firmava por obra do Concílio de Trento, assim, o amor cortês e a dama idealizada como reflexo da beleza divina esbarravam na prosa cotidiana. Por isso, Zelima, em seu elo sadomasoquista com Dom Manuel, fosse “talvez a sombra, o duplo secreto e escondido de Dona Isabel, a nobre dama... Toda sua aparência e tudo o que diz ou que faz obedece à dinâmica do Paradoxo, união de contrários que se anulam reciprocamente” (RUIZ-GÁLVEZ PRIEGO, 2001, p. XXXVIII).

A segunda série das narrativas de Doña María se forma por Novelas y saraos (1647) e

Parte segunda del sarao y entretenimientos honestos (1649), reeditada como Desengaños

amorosos. Em “La esclava de su amante”, uma das histórias da última coletânea, aquela

mesma Isabel Fajardo é apresentada como natural de Múrcia, e a descender duma ilustre família. Usando estratégias diferenciadas, a autora recorre a nomes trazidos de outros textos seus, como Beatriz, Lisis e Lisarda.

Cervantes também havia processado mudanças, nada casuais, entre as duas partes do

Quixote (1605-1615). Na primeira, ele arriscava-se a trocar o aceitável modelo do “Sou quem

sou” por uma frase inventada: “Sei quem sou”. Poucos anos depois que o ficcionista espanhol apresentou o segundo tomo d’El Quijote, Gabriel Téllez — o Tirso de Molina (c. 1583-1648) — trouxe à cena o protótipo de todo e qualquer Dom Juan: El burlador de Sevilla y convidado

Um século antes de estrear o Don Juan de Tirso, Montaigne revelava-se ao mundo a partir de sua existência concreta; ainda que tivesse precursores, “tão suculenta, corpórea e espontaneamente, nenhum filósofo antigo escreveu, nem Platão quando representa Sócrates falando” (AUERBACH, 1971, p. 254). Da Grécia antiga à velha Europa e ao Mundo Novo, a estética barroca reafirmava seus pares contraditórios, orientando-se pelo modelo sincrônico dos florentinos quatrocentistas. Em outro rumo, a biografia e o espaço biográfico principiariam a se alimentar do auto-retrato esboçado pelo humanista francês.