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A ideologia alemã, os filósofos da história e a historiografia

3.1 MÉTODO: OS SABERES E OS PODERES

3.1.1 A ideologia alemã, os filósofos da história e a historiografia

Dois espíritos, é certo: a filosofia e a história. Dois espíritos irredutíveis. Mas não se pretende ‘reduzir’ um ao outro. Pretende-se, sim, agir de tal modo que, mantendo-se embora nas suas posições, não se ignorem a ponto de serem, se não hostis, pelo menos estranhos.

LUCIEN FEBVRE Combates pela história

A filosofia dos ilustrados culminaria na Independência das colônias norte-americanas (1776) e na Revolução Francesa (1789). O ideário divulgado por essas rupturas na ordem política mundial produziria uma onda libertária nos universos coloniais do império europeu. Recorrências a discursos cada vez mais orientados para o sujeito faziam com que a modernidade inicial desse lugar à modernização epistemológica, no interregno compreendido pelas décadas de 1780 e 1830.

No centro de tal processo, os 50 anos que medeiam os séculos XVIII e XIX equivalem à “crise de representabilidade”, definida por Michel Foucault (1999) e assinalada pelo desabrochar das ciências humanas. As humanidades passavam a analisar seus objetos conforme a evolução dos seres vivos, postura à qual se adequava a dialética, na mesma hora em que a lógica se robustecia. Ao afinar os métodos da crítica erudita, a história formava disciplina e instaurava a sexta etapa da ciência histórica.

Em território germânico, as reflexões histórico-filosóficas vinham-se ampliando a partir do Jusnaturalismo de Samuel Puffendorf (1632-1694) e do racionalismo conciliatório de Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716). Uma sinopse do método leibniziano pode concentrar-se na Realidade Suprema e suas conseqüências:

só é real a representação do universo tal como existe no nosso espírito. As entidades metafísicas, as unidades espirituais, ou mônadas, independentes mas solidárias, representam, cada uma por si, a infinidade desse universo, exprimindo uma

representação completa, embora desigualmente clara, dos seus atributos gerais. O

que distingue as mônadas entre si é o grau de clareza da representação, havendo, em todas, a mesma tendência para a maior clareza possível. Independentes entre si, estão todavia ligadas por uma harmonia pré-estabelecida e exterior a elas, em obediência à vontade e sabedoria da criação divina que determinou cada uma em função do maior bem do conjunto (DUCASSÉ, [s.d.], p. 74).

O pensamento alemão desembocava no Aufklärung, espécie de iluminismo a medrar de 1720 a 1754, em torno das contendas entre Christian Thomasius (1655-1728) e Christian Wolf (1679-1754). Seguidor do wolfismo, Alexander Baumgarten (1714-1762) mentava o conceito de estética, a englobar “as artes em geral, as experiências de conhecimento pela

sensibilidade, percepção e imaginação, tornando-se um dos ramos da gnosiologia, disciplina filosófica interessada em investigar a natureza do conhecimento” (SOUZA, 1992, p. 373).

A segunda fase do assim chamado esclarecimento prosperava no intervalo de 1755 a 1795. Tendo em Locke, Leibniz e Hume seu amálgama fundamental, caracteriza-se por subordinar a poesia às técnicas imaginativas e promover uma história da humanidade que seria produto da revelação divina. Dentre outros pensadores, essa linha representava-se por: Friedrich Schiller (1759-1805), Johann von Herder (1744-1803), Johann Salomo Semler (1725-1791) e Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832).

À época, o complexo mercantilista sofreu abalos, de alguma forma, relacionados às concepções desenvolvidas por Adam Smith (1723-1790) n’A riqueza das nações (1776). O intelectual escocês amparou-se na corrente que unia Grotius, Hobbes, Puffendorf, Montesquieu, Rousseau, Smith e outros iluministas. A se tornarem mais secularizadas com o passar do tempo, suas reflexões comuns abrangiam a vida social e se fundavam, em grande maioria, nos argumentos históricos, ainda que não resultantes de pesquisas empíricas:

A construção de um passado não como foi na realidade, mas como a razão exigia que devesse ter sido. Por conseguinte, um trabalho de teorização sobre a idéia de sociedade que, ao se acumular, colocava à disposição dos pósteros não propriamente uma história, mas sobretudo uma série de pressupostos, de esquemas mentais, para interpretar as ações dos homens e dos povos (NEVES, 2002).

O iluminismo juntava-se à prática dos revolucionários franceses, pelos direitos do cidadão e por tratamento mais humano aos infratores das normas jurídicas. Exoravam à liberdade de culto, imprensa e pensamento; lutavam contra os atos discriminatórios, a censura e o escravismo. Burke (1992, p. 16-19) infere sobre um movimento internacional ansioso por histórias que não se confinassem às nações ou aos feitos políticos, mas se relacionassem ao comércio, às leis, às maneiras de pensar das sociedades, com seus hábitos e costumes.

O modelo já se apresentava tanto em obras históricas sobre personalidades femininas quanto na história mundial alemã. No mesmo caminho, Christoph Meiner deu início à publicação dos quatro volumes de sua obra Geschichte des Weiblichen Geschlechts [História

do sexo feminino]. Na Inglaterra, William Alexander editou The History of Women, ao passo

que, na França do ano 1791, “Olympe de Gouges reivindicava para as mulheres exatamente os mesmos direitos dos homens” (GAARDER, 1995, p. 341).

A história enfrentou mudanças quando a homogeneidade dos tipos heróicos viu-se oposta a uma consciência sobre as diversas nuances de uma só personalidade. Para tanto, os últimos volumes do trabalho historiográfico Decline and Fall of the Roman Empire (1776-

1788) revelaram-se fundamentais, principalmente, através das várias fases na vida de Maomé, oferecidas por seu autor, Edward Gibbon (1737-1794). Foi com ele também que surgiu o emprego moderno da palavra “historiografia”.

Lucien Febvre (1989, p. 282) afirma que, no século XV, sem referir-se a um cargo específico, Alain Chartier utilizou o termo “historiógrafo”, no sentido de uma honrosa distinção. Significando “escrita da história”, a historiografia, assim como a biografia, encerra no próprio nome “o paradoxo — e quase o oximóron — do relacionamento de dois termos antinômicos: o real e o discurso. Ela tem a tarefa de articulá-los e, onde este laço não é pensável, fazer como se os articulasse” (CERTEAU, 2002, p. 11).

Gibbon articulou a clássica erudição com a história filosófica no Ensaio sobre o

estudo da literatura (1761) e na referida obra Declínio e queda do Império Romano. O

historiógrafo inglês sintetizou as correntes históricas que lhe antecederam, as quais não se deixam resumir pela Historia Magistra Vitae. A exemplaridade nelas avultante resistiu até o momento em que a luta entre “o sábio pedante e o gentleman bem-educado acabou com a vitória do erudito sobre o filósofo” (LE GOFF, 2003, p. 85).

Iniciada nos medievos, sólida no Renascimento, posta no coletivo pela erudição, a crítica de arquivo foi em síntese uma procura de autenticidade. No século XIX, incrementava- se a partir da universidade alemã de Göttingen, quando historiadores eruditos constituíram as bases da documentação histórica, difundindo novos métodos e seus resultados. Faziam isso através de publicações ou do ensino institucional, pesando sobre eles a força do “historicismo”.57

Em particular na Alemanha, a primeira fonte historicista revoltava-se contra o iluminismo. Desse modo, Humboldt veiculara uma “teoria das idéias históricas”, em resumido trabalho cujo título pode-se traduzir como O dever do historiador (1821). “Suas idéias não são metafísicas, platônicas, são idéias historicamente encarnadas num indivíduo, num povo (espírito do povo, Volkgeist), numa época (espírito do tempo, Zeitgeist), mas permanecem vagas” (LE GOFF, 2003, p. 89).

No bojo da revolta anti-iluminsta, o entendimento histórico ao qual visava Georg Wilhelm Hegel (1770-1831) pressupôs a dispensa das evidências em favor de abordagens

57 O termo historicismo é aqui utilizado no sentido da tradição histórica acadêmica, desde Wilhelm von

Humboldt (1767-1835) e Leopold van Ranke (1795-1886) a Ernst Troeltsch (1865-1923) e Friedrich Meinecke (1862-1954). Assinala-se por uma espécie de afetividade entre historiador e objeto, pela canonização da historiografia burguesa e a idéia de um tempo cronológico linear, “homogêneo e vazio”. Cf. BENJAMIN, 1994.

filosóficas. Para fins didáticos, a filosofia da história teria iniciado com Herder, em Idéias

para uma história filosófica da humanidade (1784) e terminaria pouco depois da morte de

Hegel, uma vez publicadas suas Conferências sobre a filosofia da história (1837).58

Sociólogos como Saint-Simon (1760-1825), Auguste Comte (1798-1857) e Herbert Spencer (1820-1903) tomavam as estruturas sócio-econômicas como foco central, integrando a segunda fonte historicista que, de certa forma, dava continuidade às Luzes. O historicismo assinalou as reflexões “do século XIX, conseguindo finalmente triunfar devido à teoria de Darwin sobre o evolucionismo em The Origin of Species (1859). O conceito central desta teoria é o de desenvolvimento, muitas vezes tornado mais rigoroso pelo apoio do conceito de progresso” (LE GOFF, 2003, p. 88-89).

A ciência social marxista rejeitou a filosofia da história, porém, os vínculos entre questões filosóficas e históricas eram imanentes ao “materialismo histórico” de Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895). Nos Anais franco-alemães de 1844, Marx agradou-se do texto que aí publicara Engels, intitulado “Esboço para uma crítica da economia política”, e decidiu conhecer o autor, firmando com ele um verdadeiro pacto

de amizade, fraternidade, sobretudo, de radical colaboração teórico-metodológica na construção dos referenciais da ‘Concepção Materialista da História’, bem como na crítica à sociedade do capital. A colaboração resulta em textos fundamentais ao materialismo histórico, como A Sagrada Família e Manifesto do Partido Comunista, além das inúmeras correspondências redigidas. Contudo, o cerne da Concepção Materialista da História estaria posto na obra que, segundo Marx [Para a crítica da

economia política, p. 53], pela impossibilidade de sua publicação, foi entregue à

‘crítica roedora dos ratos, tanto mais a gosto quanto já havíamos atingido o fim principal: a compreensão de si mesmos’. O manuscrito, crítica da filosofia pós- hegeliana e seu caráter ideológico, só viria a público em 1932, com o título A

ideologia alemã (DANTAS JÚNIOR, 2005, p. 136).

Søren Kierkegaard procedeu a uma desleitura do idealismo de Hegel e da teologia luterana, criticando a poética e a filosofia clássicas. Por intermédio do pensador dinamarquês, lançavam-se as filosofias da existência, quer dizer, um enfeixamento de filósofos que comungavam das mesmas ferramentas analíticas, ao se indagarem sobre a existência do ser humano, a partir de suas ações no concreto da vida.59 A procura de um sentido para a vida na história filosófica veio agravar as clivagens entre biografia e historiografia.

Nem toda a história foi exemplar, nem toda a historiografia era historicista, mas geralmente, a política européia orientava-se por modelos históricos positivistas. Os mais

58 Cauvilla (20007) encontra uma filosofia da história “especulativa” em Comte, Marx, Spengler e Toynbee. Essa

perspectiva receberia os seguintes tratamentos: metafísico (Hegel), empírico (Toynbee) e religioso (Niebuhr).

importantes motivos para suas construções factuais residiam na moralidade, na exaltação da consciência nacional e na apologética religiosa. O parâmetro de Ranke – dos fatos “como realmente ocorreram na realidade” – constituiu-se no fio condutor de um fazer histórico ao qual se subordinariam as outras ciências sociais.

A poética occitana desempenhou importante papel no estabelecimento da filologia românica, disciplina a ser estudada por Nietzsche na Universidade de Bonn, quando se entusiasmaria com as leituras de Arthur Schopenhauer (1788-1869). Esse filósofo encantou-se como o pensamento oriental, mas as traduções por intermédio das quais os textos lhe chegavam eram de qualidade duvidosa, razão suficiente para que acorresse a uma proveitosa estatueta. “Sem conhecimentos para sondar as bases práticas do que tais livros continham, Schopenhauer dá-se por satisfeito ao ‘encontrar consolo no amável sorriso de Buda diante do absurdo da existência’” (ARTHUR SCHOPENHAUER WEB, 2006).

Se o racionalismo já dedicava maiores atenções à interioridade do que as filosofias precedentes, o acompanhamento cotidiano da vida íntima levaria o sujeito iluminista a outras visões. Desviado ao leste, o pensamento europeu alcançava relevo com Immanuel Kant (1724-1804). Durante os séculos XVII e XVIII, o platonismo era “quase exclusivamente literário: a partir do movimento idealista provocado por Kant, o estudo direto dos escritos do mestre retomou real importância” (TANNERY, 1978, p. 53).

Numa consideração extemporânea, assim falaria Nietzsche (1988, p. 35): “o ‘verdadeiro mundo’ acabou por se tornar uma fábula”. No futuro mais distante, Eric Hobsbawm intitularia como A era das revoluções (1996) sua obra historiográfica centrada no decurso entre a Revolução Francesa e um conjunto revolucionário de cunho liberal- nacionalista, instalado na Europa em 1848. Esse foi também o ano do Manifesto comunista, de Engels e Marx, o qual citava Hegel, dizendo que os fatos e as personagens repetem-se duas vezes na história: a primeira, em forma de tragédia; a segunda, como farsa.

De acordo com Edgard Morin (1997), o fenômeno da consciência do progresso já ocorria, mas ainda num plano mentado pelas elites. Cabendo divisar o farsesco da sociedade capitalista em seus períodos críticos e suas metamorfoses, o marxismo viria exigir a mediação concreta do ser humano e sua análise das reais condições históricas, a fim de superar ou manter as contradições do sistema. À primeira vista, iluminismo e filosofia da história pareciam irreconciliáveis com o espírito (crítico) desse tempo, fosse ele pronunciado como