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Vita Memoriae: das virtudes, poéticas e confissões

1.3 METAMORFOSE: PÁGINAS E VIDAS

1.3.2 Vita Memoriae: das virtudes, poéticas e confissões

Se, em poesia e prosa, devemos preferir uma grandeza com alguns defeitos, ou uma mediocridade correta, em tudo sã e impecável?

LONGINO Tratado do Sublime

Roma pôde absorver o biografismo helênico, de modo que os discursos fúnebres sucederam as antigas deplorações (Naenia). Sob outra forma, o Prodigia consistia no presságio de felicidade ou desgraça da nação que, em suma, era o destino do chefe militar ou do ditador, equivalendo aos atuais princípios de talento, intuição e sucesso. Vinculada ao sentimento de casta, a família patrícia dava suporte a tais espécies que, em vez de se orientarem aos vivos, na praça pública, estabeleciam conexões entre os antepassados mortos e suas descendências (BAKHTIN, 1990, p. 249-252).

Uma vida romana — para ser contada — devia estribar-se na Virtus, ou melhor, na virtude. Originando-se do termo Vir (homem), essa qualidade moral acentuava o vigor, o poder e a determinação frente às conjunturas adversas. As Vitae exigiam certa retórica, para se capacitarem à propagação de uma modelaridade que pudesse reprimir os vícios ou elevar as virtudes. Quando se tratou de celebrar as glórias dos reis e dos césares, as Vidas receberam especial atenção (CORASSIN, p. 99-111, 1997).

No primeiro século antes de Cristo, Varrão tinha gerado aproximadamente 700 retratos de poetas gregos e romanos. O pensador de expressão latina evidenciava-se profícuo numa prática bastante disseminada:

Salústio utiliza esse recurso estilístico para evidenciar seus objetivos artísticos e de conteúdo, especialmente na apresentação dos indivíduos que deixaram sua marca na história. O autor, cabe observar, retrata tanto os homens bons como os maus, os que merecem ser imitados e os que não o devem, atendendo a seu gosto de construir a narrativa por antíteses [...] As próprias famílias romanas, nos átrios de suas casas, conservavam as máscaras de cera, retratos de seus antepassados, com o objetivo de lembrar aos netos e descendentes as suas façanhas, estimulando-os ao valor (DALPIAN, p. 268, 2000).

Nesses termos, as Vidas de Cornelius Nepos (c. 100-c. 24 a.C.) contam episódios acerca do general Aníbal e do poeta Ático, por exemplo, num molde que depois utilizaria Plutarco. Na passagem à era cristã, Nicolau de Damasco realizou as crônicas do rei Herodes e

a Vida de Augusto. No século I depois de Cristo, o historiador Quinto Cúrcio produziu a narrativa centrada em Alexandre Magno e o filólogo Marco Valério Probo, as Vidas, nas quais elenca diversos comentários a Virgilio, Horácio, Lucrécio, Plauto, Terêncio e Salústio.

Tácito (séc. I-II d.C.) elogiava o sogro em Sobre a vida e o caráter de Júlio Agrícola. A obra é considerada a primeira, dentre as Vidas, que teria se aproximado ao formato pelo qual hoje conhecemos o gênero biográfico. Na mesma época, Suetônio Tranqüilo (69-132) elaborava Sobre os homens ilustres e Vidas dos Césares. Como antes visto, Plutarco (c. 46- 125) teve lugar marcado entre os biodoxógrafos e igualmente seria um dos grandes modelos para os autores de biografias, na acepção mais estrita da palavra.

Em suas Vidas paralelas, desfilam altas figuras do mundo greco-romano, como Cícero. Para o autor, a exemplaridade nem sempre residiria naqueles feitos mais louváveis ou rumorosos. Muito pelo contrário, freqüentemente podia suceder que:

um fato comezinho, uma palavra, uma pilhéria, revelem bem mais nitidamente o caráter que os combates onde se contam milhares de mortos, os exércitos numerosos e os assédios mais espetaculares. Assim como os pintores captam a semelhança a partir dos traços do rosto, que denunciam o caráter e pouco se ocupam das outras partes do corpo, assim também nos seja lícito penetrar de preferência nos sinais distintivos da alma e, com ajuda deles, representar a vida em sua caracterização deixando para outros o aspecto grandioso dos acontecimentos e das guerras (PLUTARCO, 1992. p. 53).

Os terrenos poéticos e retóricos eram usualmente invadidos, um pelo outro. Transgressões foram observadas não apenas em seus já escassos limites, mas também nos distintos usos do vocábulo grego Poíesis. Roberto Acízelo de Souza (1987, p. 47-55) informa que a palavra se fez entender como: gênero veiculado em linguagem metrificada e sob a forma do verso; textos de qualidades artísticas ou imaginativas; conjunto de reflexões sobre o fazer poético, a fim de permitir que tais desenvolvimentos fossem expostos com certa clareza.

Vista principalmente na Poética (1966) de Aristóteles, a mimese traduzia-se por: imitação da natureza, tipo de conhecimento, representação, Techné (arte). Tais noções vigoraram por muito tempo no Lácio, em que a “poética clássica” desdobrava-se em torno a conceitos básicos para o estagirita: caráter mimético; verossimilhança; propriedades catárticas e universalidade. Embora demonstrem indícios normativos, as especulações platônico- aristotélicas desvelam-se mais abertas do que os tratados latinos de poética e retórica.

Dessa maneira, Horácio (65-8 a.C.) disseminou volumes capazes de reunirem estóicos e epicuristas, mas nos quais realçava o enfeixamento platônico-aristotélico, juntando suas formulações e a mundivisão romana à poética dos gregos. Quase ao fim da vida, o estudioso

produziu Epistola ad Pisones, batizada como Ars Poetica, na qual já percebia os traços construtivos da obra de arte. O pensamento não seria exclusivo da epístola horaciana, fazendo-se presente nas considerações de Cícero e Quintiliano (c. 35-c. 95).25

A idéia aparece no tratado Do Sublime cuja autoria credita-se ao suposto Longino ou Dionísio (1995), que muitos têm por anônimo: “requer-se nas estátuas a semelhança com o homem; na eloqüência, a superação das faculdades humanas” (p. 106). Principalmente nos mencionados tratadistas, e de modo similar noutros poetas ou pensadores antigos, as estruturas textuais guiavam-se pelo crivo de quem as organizava. Isso acontecia em virtude “do compromisso histórico entre forma e conteúdo, fato que não perceberam os repetidores e diluidores da poética clássica, que tomaram o acidental – as soluções dadas – pelo essencial: a busca de soluções adequadas a novas necessidades” (BRANDÃO, 1995, p. 1-18).

As energias criativas da poética teriam florescido num campo semeado às narrativas de assinalamento biográfico. Pessoas de real existência eram utilizadas como personagens na maioria das obras de Platão, cujos títulos carregam os nomes dos respectivos protagonistas:

Cármide; Crátilo; Crítias; Eutidemo; Eutífron; Fédon; Fedro; Filebo; Hípias Maior; Hípías Menor; Íon; Laques; Lísis; Mênon; Parmênides; Protágoras; Teeteto; Timeu. Ainda que

filosóficos, esses diálogos do século V a.C. inspiravam-se por um tipo de relacionamento mimético:

Eles são tipicamente compostos com inocente descaso pela documentação anterior; e se fossem privados dessa inocência jamais poderiam vir a ser o que são. É curioso e interessante o fato de que Platão, no correr do século IV, querendo apresentar credenciais de uma produção compatível com uma época letrada, sente-se, todavia, livre de inventar, em apoio de seu escrito, uma documentação do século V que, verossimilmente, nunca teria podido existir (HAVELOCK, 1996b, p. 32).

Um híbrido dos discursos filosófico e poético – as confissões – projetavam-se desde o “Livro de Jó”, do Primeiro Testamento, e do poeta grego Anacreontes (c. 563 a.C. –478 a.C.) para se firmarem na escrita de Platão.26 Também as cartas de Sêneca (4-65) e a obra Para

mim mesmo (171-180), do imperador Marco Aurélio (121-180), integrariam o gênero

confessional, a se marcar pela ascese cristã e a filosofia epicurista. Através de conselhos, ensinamentos, lições etc, o poder vigente garantia o domínio de “si sobre si mesmo”, ou “conhecimento de si por si”, conforme o pensador francês Michel Foucault (2002, 2004).

25 Vide: CÍCERO, 1899 I, § 18; QUINTILIANO, 1997-1999, Libri XII.

26 O gênero das confissões prosseguiria com: Santo Agostinho (354-430); Baruch de Espinosa (1632-1677);

Jean-Jacques Rousseau (1712-1778); Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Søren Aabye Kierkegaard (1813- 1855). Cf. ZAMBRANO, 1999.

Escritas como as de Plutarco igualmente desenvolviam “técnicas de si”, receitando normas que proporcionassem o estabelecimento das identidades individuais. Calcadas em

Mnémosyne, Memoria, tanto Bios quanto Vitae salientavam o predomínio das descrições

sobre as representações. Seus estilos, contudo, admitiam o tratamento poético de sucessos “verdadeiros” e suas funções pedagógicas não se iriam restringir a um testemunho do real, categoria da história, ou à verossimilhança, categoria da poética.

Segundo Bakhtin (1990, p. 237-242), “trabalhos sobre escritos pessoais” — de Cícero, Galeno e outros — foram tecidos por comentários autobiográficos e transpassados pelo “caminho do indivíduo que busca o conhecimento”, uma idéia platônica. Eles ainda se fizeram notar pela doutrina aristotélica da enteléquia, o último objetivo e, ao mesmo tempo, a primeira causa da evolução. Daí que os primeiros tempos da pessoa biografada se destinassem a anunciar e a reforçar o auge de sua maturidade.

Em cima desse alicerce, ergueram-se duas espécies estruturais da antiga biografia: a) “energética”; b) “analítica”. A primeira teria por fundamento o conceito aristotélico de energia, representando a vida do sujeito como a revelação e o acabamento do seu caráter, através de atos, conversas e outras expressões humanas. É a forma adotada por Plutarco, tornando-se paradigma, nem tão somente para relatos biográficos, mas também a obras poéticas, acentuadamente, na arte dramática.

Por outra via, a espécie analítica distribui o material biográfico em rubricas específicas (sociedade, família, virtudes, vícios etc.), quebrando a ordem temporal e reunindo diferentes épocas de uma vida, sob o preceito orientador do caráter. Sua ordem sistemática caiu ao gosto de Suetônio, cujas influências foram exercidas sobre os biógrafos, em especial nas Idades Médias, e ainda se verificam em biografias que subdividem a existência por setores: como pai-de-família, como escritor, como político etc.

Todas essas formas passaram por modificações, transitando a expedientes mais “autobiográficos” quando começou a aparecer uma consciência privada do indivíduo. Teria sido esse apenas o princípio dum largo projeto de privatização do ser humano, que pode ser notado: a) pela representação satírico-irônica do sujeito e de sua vida (Horácio, Ovídio e Propércio); b) pelas formas retóricas íntimas, sobretudo, as epístolas aos amigos (cartas de Cícero a Titus Pomponius Atticus); c) pelas “consolações”, ou diálogos com a filosofia- consoladora (Consolatio e Ad Hortensio, de Cícero).

Iniciado em Simônides, o jogo memoralístico passou a se orientar pelas regras aristotélicas da experiência, do confronto e da analogia. A partir de Cícero, a mnemotécnica se transformava, de Techné grega em Ars romana, quer dizer, numa parte da retórica que servia de veículo à moral cristã. Nessa denotação pré-moderna, “arte” significava:

um objeto de saber sujeito a regras e por isso mesmo bom de aprender, de uma certa complexidade, que pede considerável esforço e paciência para ser aprendido, pois ‘a arte é longa, a vida breve (ars longa, vita brevis)’. Todas as associações românticas e pós-românticas com espontaneidade, criatividade e genialidade não existem, pois, nesse velho conceito de arte. Também não se pode ainda pensar em ciência (WEINRICH, 2001, p. 30).

No pensamento de Cícero, Exempla legados por seres de boa reputação e bom nome guiariam atos e reflexões dos futuros indivíduos. Esse orador identificou os componentes da virtude: Força, Justiça, Temperança e Prudência, dentro da qual, se localizariam a inteligência, a memória e a providência. Nos passos da filosofia platônica, o retórico determinava que um homem virtuoso seguisse aos princípios da razão e da ordem natural das coisas, harmonizando-os até se tornarem procedimentos habituais (YATES, 2005, p. 20).

Maria Luiza Corassin (p. 104-105, 1997) frisa que Cornelius Nepos e Plutarco reiteravam seus ofícios como escreventes de Vidas: a Historia, regida pelo verbo fazer, e a

Vita, pelo ser, teriam respectivamente caráter público e privado. Conciliados a uma filosofia

pragmática, os pressupostos de Cícero (1899) recomendavam que os “varões ilustres” fossem narrados através de feitos e virtudes, igualmente, das vidas exemplares. Uma definição ciceroniana se manteria por longo prazo: “a história é, na verdade, a testemunha dos tempos; luz da verdade; vida da memória; mestra da vida; mensageira do passado” (II, 9, 36).27

Seguindo rumo contrário à expressão socrática — “Conhece-te a ti mesmo” —, as verdades eram progressivamente internalizadas:

Paradoxalmente, a memória, antes de ser reminiscência, é apropriação; o presente, antes de ser volta ao passado, é mirada para o futuro; a vida, antes de ser balanço, é processo de transformação. A memória (o presente, a vida) se exercita sob a forma de ‘exercícios progressivos de memorização’, desde que nos entendamos sobre o sentido novo desta palavra (SANTIAGO, 2004, p. 205-212).

Idéias acerca do verdadeiro eram apreendidas individualmente, ainda que as lições do mais divulgado, entre os discípulos de Platão, não dessem convencimento da verdade como critério inabalável. Na seguinte passagem, Aristóteles (1966, 1461b, p. 105) parece entrar em acordo com o pensamento de Isócrates: “Em suma, o absurdo deve ser considerado ou em

relação à poesia, ou ao melhor, ou à opinião comum. Com efeito, na poesia, é de preferir o impossível que persuade ao possível que não persuade.”

A coincidir com um talvez anônimo autor Do Sublime, o estagirita refutou a mediocridade, preferindo magnitudes, embora defeituosas, ao medíocre bem apresentado. A força da reflexão aristotélica sobre a poética não foi prontamente sentida. Do mesmo jeito, as produções artísticas de sua predileção seriam acobertadas por um “controle do imaginário”,28 frente ao qual o sincretismo retórico-poético apresenta-se como bastante sintomático.