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A Poética do Renascimento e as escritas de vida

2.3 MIMESE: LIVROS & DOCUMENTOS

2.3.2 A Poética do Renascimento e as escritas de vida

Como é bela a juventude que parte tão depressa! Quem quiser ser feliz, que seja: Do amanhã, não há qualquer certeza

LORENZO, IL MAGNÍFICO

Canti carnascialeschi

Cristianizada por João Filopono, a reflexão aristotélica desfrutava de grande circulação no mundo ocidental, após um dos eventos que marcou o fim das Idades Médias: a queda do Império Romano do Oriente (1453). Os árabes contribuíram significativamente para desvestir o filósofo de Estagira das maneiras de compreensão que tivera durante os medievos. Em paralelo, as histórias das Mil e uma noites alcançariam popularidade, muito embora os célebres contos orientais tivessem de esperar aproximadamente dois séculos para serem traduzidos a uma língua ocidental.42

Junto a Horácio e ao Anônimo, Aristóteles distinguia-se por seus traços lógicos ou analíticos, integrando a codificação da poética clássica, cuja rigorosidade preceptiva não seria olvidada. Redescoberto, seu método dialético tornava-se útil por viabilizar uma noção sistêmica do conhecimento, como visto. As reflexões platônicas igualmente se tornariam mais divulgadas, mas era preciso “esperar pelos derradeiros anos do século XV e pelo início do século XVI para se multiplicarem as edições corrigidas pelos filólogos e aparecerem numerosas edições de Homero ou de Platão” (FEBVRE; MARTIN, 2000, p. 331).

Ainda que se mantivesse a antiga confluência entre poética e retórica, a primeira recobrava autonomia, sob o nome de “retórica poética”. Os estudos a ela competentes, marcados por aspectos técnico-formais e integrados à ordem filosófica dos discursos, passariam a se diferençar daqueles que compunham a “retórica geral”. Os fundamentos retóricos de disposição, elocução e invenção deram corpo a seus objetivos pragmáticos, mais aplicados aos gêneros deliberativo e judicial.

42 Um ilegível manuscrito sírio do século IX traz a inscrição “livro que contém a história das mil noites”. O

acréscimo de uma noite mostra a coerência na organização daquele outro manuscrito, de 1455, a ser traduzido, organizado e aumentado pelo erudito francês Antoine Galland no século XVIII. Cf. JAROUCHE, 2006

A mimese transfigurava-se na Imitatio renascentista a partir de 1498, quando a Poética de Aristóteles era preparada para edição e, após um lustro, sairia em versão latina. Com o renovado interesse pelo texto aristotélico, vários tratados e traduções ressaltaram uma normatividade, de cujo rigor, nem o original se revestia. A lógica do estagirita se aparelhava para servir ao primado científico-racional, ao mesmo tempo em que as práticas históricas e poéticas ampliavam-se, coincidindo, pois, com a trajetória inicial da Modernidade.

A terminologia ao redor da palavra Hodiernus, bem como as discussões nas quais se envolveu, não encerrariam tanta novidade assim. O neologismo Modernus datava do século VI, a tomada de consciência quanto ao “modernismo” vinha da Renascença Carolíngia e, por fim, os conflitos dos antigos com os modernos procediam do século XII. No limiar dos anos de 1500, surgiriam em clima cultural idêntico, e diretamente conectados, vários movimentos a reivindicarem abertamente os tempos modernos: “o Renascimento perturba a emergência periódica do ‘moderno’ como oposto ao ‘antigo’, ao restituir a cultura greco-romana pagã da Antigüidade. Mas também estabelece uma periodização fundamental entre época antiga e época moderna” (LE GOFF, 2003, p. 182).

Ernest Cassirer (2001) ressalta que a modernidade inicial deu a conhecer uma nova idéia de indivíduo, assinalada pelo tensionamento moral entre a fundamentação de sua vontade e o seu conhecimento. Quer dizer, entre um total “voltar-se para” o mundo e uma total separação desse universo, do qual o sujeito não mais viria a ser uma simples partícula integrante. Mantida a dualidade espírito/natureza, o ser humano se via como excêntrico ao mundo natural e era conduzido outra vez a ele; a subjetividade ligaria o conhecimento e seu agente à esfera produtiva, do Todo, formando também uma noção de objeto do saber.

Como importante descoberta moderna, junto à imprensa, encontra-se o Novo Mundo. Pouco antes das grandes navegações, os reis católicos unificaram politicamente o reino espanhol e reconquistaram Granada. Caía por terra o reduto dos mouros, aí estabelecidos desde 711 d. C. Expulsos os judeus, ia por água abaixo a tolerância religiosa, característica da Península Ibérica que, dessa forma, qual se desincumbia dos laços anteriores, e produtivos, com a cultura oriental.

A cargo da empresa marítima espanhola, Cristóvão Colombo pisava o estranho continente, mas o nome da terra nova honraria o navegador florentino Américo Vespúcio, cuja carta Mundus Novus ganhava crédito, embora plena de falsificações. As Américas incutiam, na cultura renascentista italiana, os elementos culturais que a fariam mais espessa. O imaginário se apresentava altamente determinado, de forma negativa, pois “o fictício, como transgressão de

limites, não é substituível pelo real a que se refere, porquanto garante ao imaginário sua significação e, mais ainda, a condição de sua experimentabilidade, não só pela determinação de sua configuração, quanto por sua referência a algo real” (ISER, 1983, p. 411).

Na realidade, desde os anos finais do Quattrocento à terça parte do Cinquecento, a península itálica vivia turbulenta fase política, em vínculo direto com determinado enfraquecimento de seu poderio econômico. Ao norte, o continente europeu presenciaria diversas inovações, resultantes do acúmulo mercantil proporcionado pelas novas colônias. Em simultâneo, irradiava-se o humanismo neoplatônico, abrangendo a visão heliocêntrica de Nicolau Copérnico (1473-1543).

Entre tais humanistas, Marsílio Ficino (1433-1499) traduziu Platão ao latim, salientando as charneiras entre religião e filosofia, bem como se empenhou em revalorizar a escolástica, afirmando as características moventes da natureza humana. De acordo com Ficino, o ser humano era dotado de extrema liberdade para proceder a suas escolhas. Poderia exercer seu livre arbítrio para degenerar no mundo das coisas inferiores ou regenerar na ordem divina, superior. (HANSEN, 1986, p. 67).

Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494) reagiu a determinados excessos do humanismo. O pensador estudou a Cabala e o Talmud, harmonizar a filosofia platônica com a aristotélica, o cristianismo e a mística judaica. Seu sobrinho, Giovanni Francesco, além de carregar o mesmo nome, como ele, desempenhou-se nos estudos filosóficos, e produziria um relato sobre o tio: Ioannis Pici Mirandulae Vita (1496). Em meio a novidades tão impressionantes, como a Bíblia impressa e o continente americano, Pico se libertava dos traços sincréticos que vieram assinalando seu pensamento.

Ele combate a astrologia no Discurso sobre a dignidade do homem (1496), em que recupera o espaço do médico árabe Averróis e dos sábios hebraicos, deslocando a centralidade da tradição greco-romana. As esperanças que depositava no intelecto e na racionalidade incentivaram as reflexões de Erasmo Desidério (c. 1467-1536). Associado com as idéias de João Calvino (1509-1564) e Martin Lutero (1483-1546), Erasmo dava corpo à cultura renascentista da Europa setentrional, a realçar o sentimento religioso e a “verdade da fé”.

Em coetâneo aos passos iniciais do absolutismo monárquico, consolidava-se a reforma protestante. Seu ideário atentou às possibilidades humanistas de veicular as expressões contrárias ao dogmatismo da igreja católica e de educar os seres humanos, mirando ao

caminho da salvação. No reino espanhol, o “Erasmismo” destacava-se com Juan Luís Vives (1492-1540).

Os humanistas italianos haviam inaugurado uma ciência histórica profana, sem fábulas nem intervenções sobrenaturais, que se estenderia de Leonardo Bruni (1404) aos historiadores franceses Etienne Pasquier, François Hotman, Claude Fouchet, Lancelot-Voisin de La Popelinière, Louis Le Roy e Nicolas Viguer. Própria ao humanismo, a erudição seria retomada na segunda metade do século XVI. O hábito daquelas coleções, reunidas na Itália e depois na França, difundia-se graças ao financiamento dos mecenas.

Herança involuntária dos antigos, o documento se apresentava especialmente como testemunho escrito. Mediando a propriedade, os registros da vida civil e a presença da autoridade, seu caráter objetivo parecia opor-se à marca intencional do monumento, conforme verificada n’O livro do cortesão (1516) de Baldesar Castiglione. Nesse tempo, reafirmava-se freqüentemente a distinção feita por Plutarco entre as ordens do biográfico e do histórico.

Entre os cronistas do rei espanhol Carlos V, destacaram-se Antonio de Guevara e Pero Mexia, o primeiro, com seu Libro Aureo de Marco Aurélio (1528). Os cronistas portugueses Damião de Gois e Rui de Pina deram tons lendários a suas narrações concentradas nos reis lusitanos. Os autores tentavam “disfarçar sua natureza de produto do imaginário. O fictício procura se vender como sendo o que não é: como estória sucedida, respeitosa do cotidiano, submetida ao critério da verdade” (COSTA LIMA, 1987, p. 488).

Tendendo ao fictício ou mirando à história, a biografia dava sintomas de alargamento numa obra com foco em São Jerônimo (1516), redigida por Erasmo de Roterdã. Esse pensador serviria de modelo ao texto de Beatus Rhenanus (1540) que, da mesma forma, protagonizaria uma narrativa biográfica. Também o “reformador Melanchton e o humanista Lipsius, todos tiveram seus biógrafos, para não falar nos santos, como Vicente Ferrer e Inácio de Loyola, cujas vidas foram escritas no novo estilo humanista por Ransano e Ribadeneira” (BURKE, p. 85, 1997).

Narrativas dessa espécie proliferavam na Itália, onde crescia o interesse pelas histórias com fundamento em soldados e sultões, de Paolo Giovio (1483-1552). Na mesma contextura, Giovanni Corsi retratou Marsílio Ficino (1505) e, na esteira da obra boccacciana, mulheres humanistas, como Isabella d’Este e Margarida de Navarra, viam-se contempladas por narrações de Giuseppe Betussi (c. 1512-1573). Vários casos biográficos transitaram do fictício ao ficcional, impondo relações dialéticas entre o imaginário e o vivido:

A compreensão de cada um dos dados (Gegebenen) já é uma transgressão, e o escalonamento dos diversos atos de fingir se manifesta como um processo de tradução gradual, no qual o dado correspondente — pertença ele ao contexto, à organização dos campos semânticos ou ao que se põe entre parênteses — é sempre algo transgredido. Se os atos de fingir encontram seu traço comum na transgressão, é então face a este que se mostra a atualidade das diversas particularidades (Besonderheiten), pois estas se realizam como operações complementares, que permitem o processo de reformulação do mundo, que não encontra seu idêntico no mundo, deixando aberta tanto a experiência, quanto, por fim, a compreensão (ISER, 1983, p. 411).

Na Scritta di Vita intitulada Lorenzo Vecchio de Medici, il Magnífico, Niccolo Valori (1464-1530) relata casos sobre o príncipe florentino, como as previsões de sua morte, que lembram Suetônio em Vidas dos Césares. Lorenzo faria parte da Istorie Fiorentine, de Nicolau Maquiavel, em que sobressai como adepto de “jogos infantis”, a mesma predileção de Augusto e Agesilau, conforme antes destacados por Suetônio e Plutarco. Já Maquiavel responsabilizou-se pela Vita di Castruccio Castracani da Lucca (1520), na qual retrata o chefe dos Guibelinos que tomaram Florença no século XIV, atribuindo-lhe frases ditas por Diógenes de Laércio, acerca do filósofo Aristipo de Cirene.

Ainda nos passos dos antigos biógrafos, Giovio imitava Plutarco e Cornelius Nepos. Traduzidas para os idiomas românicos, as Vidas gregas e romanas, bem como suas correntes imitações, sinalizavam a uma história que batia em retirada dos domínios da crônica. Neste sentido, o fictício qualificava-se como um veículo de movência entre universos reais e imaginários, “com a finalidade de provocar sua mútua complementaridade. Enquanto forma de passagem, o fictício seria um fato, porquanto por ele se realizam contínuos processos de troca, ainda que em si mesmo seja um nada, pois existe apenas por estes processos de comutação” (ISER, 1983, p. 411).

As narrativas biográficas e históricas inseriam-se na área da política e na identificação dum destino comum, a ser partilhado pela humanidade. Em tal espectro, de 1482 a 1579, apareceram epítomes dos manuscritos de Plutarco em grego, a partir dos quais, o autor seria vertido ao latim e traduzido aos vernáculos das maiores comunidades lingüísticas européias. Na Antigüidade, as Bioi e as Vitae haviam contemplado, de preferência, aos filósofos e governantes, mas concediam lugares a poetas e a generais e agora, sendo que agora o foco nos escritores e artistas era visivelmente ampliado.

As escritas de vida se abriam para outras personagens: mulheres, cavaleiros,

condottieri ou mercadores; pessoas de distintas esferas cortesã e religiosa. Além de Giovio

em Vita Tamerlanis (1553). As biografias renascentistas também contariam com Átila, do historiador húngaro Miklós Oláh (1537) e De Divi Mathiae Regis Laudibus Rebusque Gestis

Dialogus (1563).

No último texto, editado postumamente, Galeotto Marzio da Narni (1422-1492) biografara Matias Corvino, rei da Hungria. Por fim, Maomé reviveria no trabalho do filólogo austríaco Johann Widmanstetter (1543). Junto à profusão biográfica, as bibliografias sistemáticas iriam se apresentar sob forma narrativa e seguindo a ordenamentos cronológicos:

Bibliotheca Universalis (1545-1555), de Conradus Gesner, talvez seja o primeiro

exemplo. O interesse enciclopédico prevalece, embora mais restrito, no

Dictionnarium Historicum, Geographicum et Poeticum (1553), de Carolus

Stephanus. Os polígrafos chegam a compor dicionários biobibliográficos de autores de determinadas nações (CARPEAUX, 1978, p. 17).

Escritores clássicos, gregos ou latinos, davam fundamento às narrações de vida; seu modelo descritivo mantinha traços miméticos, desejando atender à compreensão aristotélica. No entanto, a Ars Poetica de Aristóteles era comentada, interpolada e reinterpretada diversas vezes desde 1527, quando Girolamo Vida publicou De Arte Poetica. Seu original enfrentaria inclusive recriações, como a de Ludovico Castelvetro: Poetica d’Aristotile vulgarizzata e

sposta (1570).

Fixando-se como disciplina normativa, a poética dominaria até o Século das Luzes. Em suas modernidades mal definidas, e pessimamente distribuídas, as culturas ocidentais apresentavam estilos tão díspares quanto o gótico medieval e distintas faces dum controvertido Renascimento, às quais se sobreporiam expressões maneiristas da maior importância. A consciência da fugacidade terrena dava lugar a muitas encruzilhadas de sentido, em face do incerto amanhã.