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Literatura e gênero romanesco no Século das Luzes

2.5 MIL E SETECENTOS: AS LUZES DA VERDADE ACESAS

2.5.2 Literatura e gênero romanesco no Século das Luzes

O conceito de particularidade realista é algo geral demais para que se possa demonstrá-lo concretmente: tal demonstração demanda que antes se estabeleça a relação entre a particularidade realista e alguns aspectos específicos da técnica narrativa.

IAN WATT A ascensão do romance

Desde que Colombo e os tripulantes de suas naus pensavam desembarcar no Japão, as sociedades ocidentais assistiam ao florescimento da narrativa ficcional ibérica. Muitas vezes

49 Récit écrit ou oral, en prose, qu'un narrateur fait de la vie d'un personnage historique (en mettant l'accent sur

la singularité d'une existence individuelle et la continuité d'une personalité). (MADELÉNAT, 1983, p. 18).

Em texto anterior, Le pacte aubiographique, Lejeune (p. 48, 1991) havia caracterizado a autobiografia como uma “narrativa retrospectiva, em prosa, que uma pessoa real faz de sua própria existência, dando ênfase à sua vida individual e, em particular, à história de sua personalidade.”

50 Um discurso se transforma em gênero a partir do momento em que já se torne conhecido por um público

considerável, assim, a gastar menos energias para decifrá-lo. Origem da temática e fonte de uma autobiografia, o autobiógrafo prepara seu processo narrativo acreditando nos acontecimentos a serem narrados, pois tem em mira o leitor. A essas normas persuasivas, junta-se o ato ilocutório: se o autor-narrador tem seus direitos a esquecer, obliterar e omitir determinados fatos, o receptor do texto tem igualmente o direito de adequá-lo a suas expectativas. Cf. BRUSS, p. 62-79, 1991.

fundamentados num só protagonista (como as biografias), diversos trabalhos da poética francesa recorriam à ficção espanhola. Inaugurado na Espanha, por um contínuo fluxo de narrativas ficcionais, o Siglo de Oro era sucedido pelo Grand Siècle, da burguesia mundana e do afrancesamento europeu.

Os preconceitos em torno ao barroco viam no exagero de sua arte uma condição fatigosa e suscitaram o retorno à formatação renascentista de Aristóteles. Ao mesmo diapasão, os valores dos novos heróis extraíam suas lições da moral estóica, basicamente, do entendimento de Sêneca. Herdeiro da religiosidade barroca, o neoclassicismo alçava-se a status hegemônico ao raiar do Século das Luzes, momento em que a cultura oriental despertava interesse através das novelas espanholas de temática moura e do manuscrito sírio das Mil e uma noites, traduzido ao francês por Antoine Galland (1646-1715).51

Centradas num herói, histórias que não pertenciam à coletânea originária foram incorporadas ao texto: “Ali Babá e os 40 ladrões”; “Simbad, o Marujo” (séc IX); “Aladim e a lâmpada maravilhosa” (séc. XI). A oferta do novo então afirmaria o indivíduo perante seus confrades, daí que o trabalho do orientalista servisse para exercitá-lo nos ofícios próprios a um erudito de fino gosto. Realizada como passatempo, a tradução de Galland se apresentava a um público ansioso pelo exotismo:

Todo o texto é um convite à sedução, a partir do título, equivocadamente traduzido de ‘várias’ ou ‘muitas’ para ‘Mil e uma noites’. Esta interferência, aliás, é bastante indicativa dos reflexos provocados pelo jogo de espelhos que se prenuncia a partir de histórias de amplo domínio popular. A tradução e os intervalos provocados pelo desconhecimento dos valores do chamado Oriente viabilizam uma leitura estranha ao espírito inicial dos contos. Não há exagero, pois, em se afirmar que o texto produzido pelo francês Galland é mais ocidental que ‘árabe’. Ademais, o tom ‘engenhoso’ e ‘de fábula’ serviu para garantir uma historicidade européia — bem francesa, por sinal — para as variadas histórias (MEMEIHY, 1987, p. 11).

Sob controle ou por vezes incontrolável, o imaginário se expressava em contos maravilhosos, fundados em arquétipos europeus e orientais. O ser primitivo e a criança passavam a ser vistos em contigüidade, devido às noções que teriam do real, supostamente aparentadas. Segundo Nelly Coelho (1991), os livros infantis alcançariam grandes tiragens no século XVIII, devido à recente compreensão da infância como período distinto na existência.

51 Entre as traduções mais recentes das Mil e uma noites, encontram-se os seis volumes traduzidos diretamente

do árabe pelo professor brasileiro Mamede Mustafa Jarouche (2006); o texto estabelecido por René Khawan, que se baseou na retomada de versões dos séculos XVI e XVII (1986); uma adaptação de fontes alemãs para a língua francesa, por Armel Guerne (1966); a tradução ao espanhol, de Rafael Cansinos, publicada no México. Muitas edições ocidentais foram impregnadas do tom vitoriano, da infantilização das histórias ou da licenciosidade erótica. Para um histórico sobre outras traduções da coletânea, como a de Edward Lane, Enno Littmann, Gustavo Weil, Joseph-Charles Mardrus e Richard Burton, ver: BORGES, 1953, p. 99-134.

A mentalidade européia conformava novas posturas quanto ao ensino das crianças; usava e abusava de textos com fins pedagógicos. Edições desse tipo couberam a Charles Perrault (1626-1703) cuja narrativa maravilhosa intitulada Barba Azul se fundamentaria no suposto criminoso francês Guy de Laval, mais conhecido por Gilles de Rais. Contudo, a inocência do acusado viria à luz quando se procedesse a uma revisão de sua biografia.

Até meados da 18ª centúria, o termo latino Litteratura expressava o conhecimento relativo às técnicas de escrever e ler, a cultura da pessoa letrada, mas o erudito alemão Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781) empregou a palavra ineditamente, como grupo de textos reunidos, em Briefe, die Neueste Literatur Betreffend (1758). A partir daí, literatura significaria o trabalho do profissional em letras, fixando a base de suas acepções modernas. No sentido da produção escrita em dado período ou em uma nação, por exemplo, a “moderna literatura inglesa setecentista” não abarcava somente ficções ou “escritas criativas”.

Do contrário, abrangia textos investidos de valores ideológicos, fossem poéticos, históricos, filosóficos, ou ainda, ensaios e cartas, ao mesmo tempo em que o romance não gozava de boa reputação; questionava-se com freqüência se deveria integrar determinado corpus de leitura. Adequando-se às “belas letras”, as normas que podiam definir o cânone inglês teriam sido estritamente ideológicas. Circunscritas aos valores e gostos das classes mais favorecidas, essas regras nunca admitiam “uma balada cantada nas ruas, um romance popular, e talvez até mesmo o drama” (EAGLETON, 1983, p. 29).

Lado a lado com o estabelecimento do gênero biográfico, os romances ordenavam-se em torno de um só protagonista, ascendendo na produção e no gosto dos leitores. Na Grã- Bretanha, desde o início do século até 1740, produziam-se aproximadamente sete livros de tal espécie por ano, mas a cifra se elevou para cerca de 20 entre 1740 e 1770 e se duplicaria de 1770 a 1800. A narrativa romanesca modificou-se depois da forma impressa em França por Antoine Furetière (1619-1688), Paul Scarron (1610-1660) e René Alain Lesage (1668-1747).

Na Inglaterra, por Daniel Defoe (1660-1731), Henry Fielding (1707-1754) e Samuel Richardson (1689-1761):

O ‘realismo’ dos romances de Defoe, Richardson e Fielding é intimamente associado ao fato de Moll Flanders ser ladra, Pamela ser hipócrita e Tom Jones ser fornicador. Entretanto esse emprego do termo ‘realismo’ tem o grave defeito de esconder o que é provavelmente a característica mais original do gênero romance. Se este fosse realista só por ver a vida pelo lado mais feio não passaria de uma espécie de romantismo às avessas; na verdade, porém, certamente procura retratar todo tipo de experiência humana e não só as que se prestam a determinada perspectiva literária: seu realismo não está na espécie de vida apresentada, e sim na maneira como a apresenta (WATT, 1990, p. 12-13).

A demanda pelas reescritas de obras espanholas ou clássicas ainda vigorava, como indicam os episódios da história escrita em 1618 por Vicente Espinel — La vida del escudero

Marcos de Obregón — que seriam reapropriados por René Lesage no Gil Blas de Santillana

(1715-1735). Voltaire conheceu a nova prosa inglesa, por exemplo, com Jonathan Swift (1667-1745) e suas Viagens de Gulliver (1726). Aquele recorreria à ficção narrativa, com

Zadig ou o destino (1747), cuja referência contextual se dissimula por meio do protagonista,

um antigo filósofo babilônico, e do exotismo das terras distantes.

Nesse ponto, o poeta francês foi precedido pelas seguintes obras, de convizinho assunto: L’indienne amourese e Polexandre (1627), respectivamente, assinadas por Sieur de Rocher e Gombervile. No mesmo grupo, destacam-se a Viagem às Índias Ocidentais (1666- 1667), do clérigo espanhol Francisco Correal, e As aventuras de Robinson Crusoé (1719), contadas pelo ficcionista inglês Daniel Defoe. A temática em questão reincidiu no Manon

Lescaud do Abade Prévost (1733) e nas Cartas peruanas da Madame de Graffigny (1747).52

Impregnadas da linguagem satírica, e a simularem o biografismo, as Cartas de Juan de

la Encina (1732) haviam sido escritas pelo jesuíta espanhol José Francisco de Isla y Rojo

(1703-1781). O mesmo “padre Isla” demonstrou-se a serviço da efabulação biográfica na

Historia del famoso predicador fray Gerúndio de Campazas, alias Zotes (1758). No ano

seguinte, Voltaire expressava-se a respeito do terremoto de Lisboa, mesclando suas reações a temas da lenda do Eldorado,53 na prosa ficcional a que denominou Cândido ou o otimismo. A fidelidade à história não orientava nem essa, nem outras criações do enciclopedista francês, a exemplo do conto filosófico A princesa de Babilônia (1768).

De um a outro extremo da 18ª centúria, as expressões da arte transitavam pelo amor, a natureza, a intimidade. Esses temas podiam alternar-se entre o velamento e a desocultação, recorrendo a máscaras, fantasias, disfarces. O parque monumental e as vastas paisagens cediam espaço ao pitoresco jardim e às ruas estreitíssimas; a cultura abrigava o prazer hedônico, um erotismo “simultaneamente sensual e cerebral, tipificado em Casanova, réplica rococó ao D. Juan barroco” (MERQUIOR, 1975, p. 53).

52 Referidos textos dialogam com narrativas de Sir Walter Raleigh e William Dampier, da mesma forma, com o

relato do corsário inglês Woodes Rogers, intitulado A Cruising Voyage Round the World. Entre seus intertextos franceses, encontram-se os trabalhos dos viajantes Esquemelin de Oexmelin, Jacques Massé e Ravenau de Lussan. Cf. NUÑEZ, 1972, p. 100.

53 A mitologia em torno do Eldorado, lugar imaginário, deve sua construção ao mito anterior do El-Dorado,

monarca feito douro e, assim também, os europeus passaram a supor que fossem as ruas, as casas e as cidades dos reinos americanos. Cf. GALEANO, 1986, p. 158.

Instituições filosóficas ou históricas, academias de belas artes e belas letras, acumulavam os processos de redação e impressão conhecidos pela técnica erudita. O quadro foi-se alterando gradualmente, das notas, índices e dicionários à Grande Encyclopédie (1751). As referências começavam a ser dispostas, no “sentido de facilitar ao leitor a exploração da obra cujo conteúdo ele ignora, situação que corresponde precisamente ao papel desempenhado por uma memória externa” (LEROI-GOURHAN, 1987, p. 63).

A racionalidade ilustrada enfraquecia o absolutismo, a vigorar desde o século XVI. Rousseau alentava o conflito, ao propor um reino de inocência e virtude, em sua obra Emílio ou A educação (1762). Assim, teria oferecido a força dos sentimentos à ideologia burguesa:

A guerra civil não ameaça através dos descontentes e dos ilustrados; sua ameaça encontra melhor apresentação na figura do homem virtuoso. Seu veredito moral já não permanece no campo do politicamente facultativo e não-vinculante, mas o obriga, ao mesmo tempo, a levá-lo à realidade (KOSELLECK, 1965, p. 310).

Criticada por Voltaire n’O Ingênuo (1767), a idéia rousseauniana de “homem natural” transparecia nestes autores: Jean-François Marmontel (Los Incas, 1777); Gian Rinaldo Carli (Lettere americane, 1780); Bernardin de Saint-Pierre (Paulo e Virgínia, 1787). A selvagem inocência tanto poderia estar no Oriente asiático quanto nas Américas, meridional ou setentrional. Na via oposta da civilização, a venturosa sociedade americana era “um pretexto exótico para urdir uma trama correspondente à inquietude do homem da Ilustração, com um tema ajustado à sensibilidade dos leitores europeus desse momento” (NUÑEZ, 1972, p. 101).

De acordo com Louis Bergeron, François Furet e Koselleck (1989), progrediam as comunidades agrupadas pelas vias imaginárias da consciência nacional. Isso acontecia sob as distintas formas de adesões dinásticas ou patriotismos localizados. Preferido pelas classes médias e superiores, o romance “alcançou, depois de certo tempo, o estatuto de arte literária, enquanto que as demais modalidades, por contarem tão somente com a adesão dos grupos populares nas zonas urbanas em franca expansão, foram sendo aos poucos intelectualmente desprezadas” (ZILBERMAN, 1991, p. 23).

A estética burguesa subjetivista ocuparia o lugar da arte cortesã de motivação histórica e o êxito das narrativas romanescas ou biográficas justificava-se por suas concepções alternativas ao fazer histórico. Através do riso, a narração de uma vida se autorizava e se constituía em fonte histórica muito particular. “O jocoso, o risível, o ridículo, burlam a

vigilância exercida pelo poder e expõem, por meio de vidas individuais caricaturadas, as mazelas de toda a sociedade.” (CARINO, p. 161, 1999).54

Descerrado pela efervescência ficcional espanhola e inglesa, o período áureo da estética barroca terminava quase em simultâneo à morte do cientista francês Bernard Le Bovier de Fontenelle (1657-1757). Defensor dos tempos modernos, ele afirmava que a prova testemunhal de quem acredita numa coisa estabelecida “não tem força para apoiá-la, mas o testemunho dos incrédulos tem suficiente vigor para destruí-la” (FONTENELLE, 2005).

De tal forma, Colombo não inspirou nenhuma epopéia na Espanha, nem deu nome à América, batizando apenas uma parte do Novo Mundo. No entanto, sua primeira carta sobre a terra lançou a idéia do “bom selvagem”, a qual brotava particularmente nos escritos de Rousseau. Na virada do século XVII para o XVIII, outras experiências de viagens e conquistas tinham relatado as Américas como diversas do contexto oriental, numa espécie de rousseaunismo avant la lèttre.

Como se sabe, o universo interior já era considerado em tempos antecedentes. A noção de privacidade, todavia, ganhou força entre os anos de 1600 e 1770, com o advento da “filosofia moderna”. Movidos por fins reformadores, os livros e as bibliotecas, “além de caracterizarem a intimidade como passatempo da vida privada, facilitando a aquisição de conhecimentos, dão prestígio à leitura, como exemplariza A Tempestade, de Shakespeare” (GRAWUNDER, 1996, p. 79).

Localizado numa ilha distante, o cenário shakespeareano dessa obra, datada de 1623, firma seus intertextos com A República de Platão e a Utopia de Thomas More. Por outro viés, aí cintilam os relatos de viagem, pois o texto referia-se a um acontecimento da conquista platina, anteriormente, contado pelo navegador português Fernão de Magalhães (1480-1521). A temática e o nome dados à personagem Miranda enraizavam-se no mundo histórico, mas a arte renascentista aí se dispunha como um passado a ser vencido pela filosofia empirista, da mesma forma que a estética barroca se fazia suceder pela Ratio moderna.

As críticas de artes e letras traziam à cena, “dentro da república dos sábios, o confronto entre antigos e modernos, enformando a compreensão de tempo que geraria um abismo entre passado e futuro” (KOSELLECK, 1965, p. 20). Outra criatura do bardo inglês n’A

tempestade, Caliban espelhou a metáfora de um Outro que o próprio império desejaria

54 O romance enquanto prosa ficcional era apreciado pelos habitantes da América Portuguesa desde meados do

enxergar, em anagrama. Nas imagens do antropófago, de um escravo, dum bicho, “Canibal” justapõe-se a uma poética (sif)ilizadora.55

Por outra via, o fazer histórico não era contemplado pela revolução científica do Século XVIII. A Historia Magistra Vitae constituía-se num acervo de lições para os governantes, como na Grécia do historiador Políbio. Quanto à história como sucessão dos fatos humanos e sociais, o apagar das Luzes trocava um pensamento cíclico, “que torna efêmera a superioridade dos antigos sobre os modernos, pela idéia de um progresso linear, que privilegia sistematicamente o moderno” (LE GOFF, 2003, p. 184).56

Em tempos de continuada expansão ultramariana, o ato de narrar e suas estratégias pareciam revelar-se como eficazes para o domínio de qualquer entrave à compreensão da história. Índice do rápido prestígio alcançado pela biografia, o vocábulo com que os alemães a designaram na 17ª centúria – Lebensbeschreibung – cedeu lugar a Biographie. O romance individualizava suas personagens, ambientando-as num contexto em que várias naus ainda corriam a novos reinos deste mundo, à busca doutros frutos, d’ouro, do futuro.

55 Ver: BEVERLEY, p. 14-15, 1997.

56 Tal conceito fixava-se através do livro Esquisse d’un tableau des progrès de l’esprit humain (1793-1794),

obra-prima de Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat (1743-1794). Vulgarizado como o marquês de Condorcet, ele publicou as biografias Vie de Turgot (1786) e Vie de Voltaire (1787).

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